Para uma Declaração de Voto, tem a palavra…

PorAmílcar Spencer Lopes,18 abr 2022 7:55

Costumo afirmar, com alguma segurança, que já pouca coisa me espanta, no mundo em que vivemos. Não estivesse, por norma, habituado a observar, com atenção, respeito e espírito de compreensão, os modos, atitudes e acções das pessoas, no seu dia-a-dia, e de estudar, com curiosidade e proveito, as lições da História.

Confesso, ainda assim, que foi com alguma estupefacção, que soube, hoje, que Cabo Verde, ou melhor, a República de Cabo Verde votou abstenção, na Assembleia Geral da ONU, que se pronunciou pela suspensão da Federação da Rússia, como membro do Conselho dos Direitos Humanos, daquela organização, face à invasão da Ucrânia, por parte do exército russo, há cerca de mês e meio, e aos acontecimentos dramáticos que se têm seguido, desde então, nomeadamente, a carnificina que ocorreu na cidade de Bucha, mostrada pelos canais de televisão do mundo inteiro.

Lembre-se que Cabo Verde votara, anteriormente, pela condenação da invasão. A decisão onusiana de agora equivale, assim, a uma sanção, de carácter e efeitos políticos.

Geralmente, a política externa de um país é definida em função dos valores que enformam a sua sociedade, enunciados, não raras vezes, na Constituição da República (CR) que rege o país, e pelos interesses que esse país considera relevantes para a preservação da sua soberania e materialização do bem-estar do seu povo, razão primeira de qualquer regime político e do exercício do Poder Político.

Mesmo com algum esforço, de imaginação e apesar daquilo que fui aprendendo ao longo dos meus já mais de setenta anos de existência, não consigo descortinar que valores e que interesses poderão ter justificado essa tomada de posição “neutra”, por parte de Cabo Verde. Porque, perante um conflito, uma coisa é a independência e isenção na sua resolução, outra coisa é a neutralidade. De facto, esta última é já uma tomada de posição a favor do infractor. Utilizando a linguagem futebolística, é “beneficiar o infractor”… E, no caso em apreço (permitam-me este parêntese), creio não haver dúvidas e ser consensual que, independentemente das razões que o senhor Putin possa invocar para ter invadido a Ucrânia, trata-se de um acto gratuito, desmedido e injustificável de agressão, sem contar com a crise internacional, que essa acção militar desencadeou e as nefastas consequências económicas, sociais e humanitárias, que vem provocando. Se o posicionamento agora declarado de Cabo Verde expressa, realmente, o espírito e o querer dos cabo-verdianos, é que tenho muitas dúvidas.

Voltando aos valores e interesses que norteiam a política externa de qualquer país, no nosso caso eles podem e devem ser identificados, cotejando o texto da CR e o Programa do Governo, bem como a história, a cultura e o pensamento estratégico da nação cabo-verdiana.

É verdade que a então União Soviética, tão cara, enquanto império, ao senhor Putin, posicionou-se, na época, contra o colonialismo Português, em África e a favor da Independência de Cabo Verde, em particular. E terá, certamente, ponderado as suas razões ideológicas e os seus interesses geoestratégicos, para tal.

É também verdade que, depois da Independência Nacional ela ofereceu a Cabo Verde a possibilidade de formação média e superior para centenas de jovens, nos mais variados sectores, designadamente, nos domínios militar, relações internacionais, engenharia, entre outros.

Mas fê-lo, repito, em função dos valores e dos interesses estratégicos que propugnava, a médio e longo prazo.

E, talvez esteja aí a explicação, em parte, do porquê da actual tomada de posição de Cabo Verde, na Assembleia Geral da ONU. Efectivamente, a política é definida e feita por pessoas de carne e osso. E as pessoas sofrem influências do meio e das sociedades onde nascem, crescem, são educadas, se desenvolvem e se realizam, enquanto tal. Ora, a actual classe dirigente pertence, na verdade, a uma geração que nasceu, cresceu e foi educada sob a batuta da Guerra Fria, do Não alinhamento, do Internacionalismo socialista, da luta contra o Imperialismo americano, etc, etc.

Boa parte têm, assim, uma certa dificuldade ou inibição em abraçar os valores inscritos na CR e uma certa confusão mental em identificar, claramente, os interesses nacionais. Ou então, ainda não deu conta de que estamos no século XXI; os tempos são outros, com novos desafios e novas exigências, e que globalização exige alianças estratégicas e participativas.

De facto, a ideia que se fica é que certos actores políticos estarão virtualmente sitiados por paradigmas de outrora ou então não conseguiram libertar-se dos grilhões ideológicos, de um passado recente.

Insistindo nos valores propugnados pela Nação cabo-verdiana, a CR, no seu Preâmbulo, assume, expressamente, a “dignidade da pessoa humana como valor absoluto e sobrepondo-se ao próprio Estado”.

Prossegue, estatuindo na PARTE I, PRINCIPIOS FUNDAMENTAIS, TÍTULO I (DA REPÚBLICA), artigo 1., número 1, que a República de Cabo Verde “garante o respeito pela dignidade da pessoa humana e reconhece a inviolabilidade e inalienabilidade dos direitos humanos como fundamento de toda a comunidade humana, da paz e da justiça”.

O artigo 3., número 2 reafirma que “o Estado subordina-se à Constituição”.

Sob o TÍTULO II – RELAÇÕES INTERNACIONAIS E DIREITO INTERNACIONAL, artigo 11., número 1 vem prescrito que “o Estado rege-se, nas relações internacionais, pelo respeito do direito internacional e pelos direitos humanos”; o número 2 afirma, designadamente, que “o Estado de Cabo Verde apoia a luta dos povos contra qualquer forma de dominação ou opressão política ou militar”; o número 3 que “o Estado de Cabo Verde preconiza a abolição de todas as formas de dominação, opressão e agressão, o desarmamento e a solução pacífica dos conflitos…”; e, o número 5, que “…apoia todos os esforços da comunidade internacional tendentes a garantir o respeito pelos princípios consagrados na Carta das Nações Unidas”.

Quanto ao Programa do Governo – na senda do aprovado em 2016, que previa “o enquadramento positivo de Cabo Verde em sistemas de segurança colectiva”, a “densificação e concretização da parceria especial com a União Europeia” e a afirmação categórica de que “os Estados Unidos da América, país onde reside a maior comunidade cabo-verdiana emigrada e onde ocorre uma maior concentração de conhecimento e de competências da nossa diáspora, revela-se um parceiro histórico e incontornável” – o programa aprovado em 2021 vem reafirmar aquelas directivas e acentuar que “Cabo Verde deve promover uma inserção positiva no sistema da segurança colectiva, priorizando alianças e parcerias, com o objectivo de manter o país como “sujeito útil, de confiança e participativo na configuração de um clima de estabilidade e segurança internacionais”.

Por outro lado, proclama que “Cabo Verde deve distinguir-se no concerto das Nações, pela confiança nos valores da democracia, da liberdade e do respeito pelos direitos humanos”.

Tirando uma certa retórica, que normalmente acompanha o discurso político, julgo que essas directivas programáticas não podem ser ignoradas e devem ser tidas em conta, na materialização da nossa política externa.

É minha opinião, pois, que perante a omissão que o voto nacional agora manifestado nas Nações Unidas revela, o Parlamento, que é um sujeito colectivo em todos os sentidos (inclusive, gramaticalmente falando, já que Parlamento/Assembleia/Nação são palavras singulares de significação plural) e perante o qual o Primeiro-ministro é responsável, politicamente, devia chamar o Governo a capítulo.

De igual modo, parece-me líquido e transparente que o Presidente da República, que vem pautando o seu mandato por um acentuado e mediático protagonismo e que durante a campanha eleitoral fez questão de deixar claro que, em matéria de relações internacionais e defesa nacional, não prescindiria de exercer a sua quota-parte de poder político, que a CR lhe atribui, não pode deixar, outrossim, de assumir as suas republicanas responsabilidades.

Porque estão, afinal, em causa o respeito pelos valores, princípios, direitos e deveres enunciados na Constituição da República, como está em causa os interesses, lato senso, de Cabo Verde.

Da minha parte e enquanto cidadão da República de Cabo Verde fico, pois, a aguardar a Declaração de Voto do senhor Ministro dos Negócios Estrangeiros e Cooperação ou um pronunciamento de Sua Excelência o Presidente da República, “garante da unidade da Nação e do Estado…” e do “cumprimento da Constituição e dos tratados internacionais” (cfr, artigo 125., da CR).

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1063 de 13 de Abril de 2022.

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Autoria:Amílcar Spencer Lopes,18 abr 2022 7:55

Editado porA Redacção  em  30 dez 2022 23:28

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