O fator Mulher

PorLígia Dias Fonseca,26 abr 2022 7:34

Há uns anos, num encontro internacional sobre a situação da mulher em África, que decorreu no Mali, fiquei horrorizada, quase petrificada com os relatos que eram feitos sobre o uso das mulheres como armas de guerra.

Desde as violações de meninas (incluindo bebés), com todos os requintes de malvadez, até ao cativeiro e sistemática violação com o objetivo de engravidar as vítimas com propósitos raciais, tudo foi descrito na primeira pessoa ou por organizações de defesa dos direitos humanos que trabalhavam nas áreas em guerra e que acolhiam as vítimas.

Era a primeira vez que eu ouvia falar nesse fenômeno de usar as mulheres propositadamente como armas de agressão ao inimigo. Já não era uma manifestação de degradação humana dos soldados, como aconteceu sempre na história da humanidade, mas uma estratégia de guerra pensada e programada. Um horror. O mesmo horror de pegar em crianças pequenas e transformá-las em soldados assassinos. Até hoje, esta é uma situação que me abala só de ouvir falar.

Infelizmente, nos últimos dias, temos ouvido falar muito nisto, na recente guerra na Ucrânia. Mais uma vez, as mulheres são submetidas às mais vis agressões, algumas acabando por ser mortas. E outras desejando que antes tivesse sido esse o destino.

No início da invasão (ilícita e brutal) da Ucrânia pela Rússia, vimos as mulheres a abandonarem as suas casas, com os filhos, para fugirem à guerra. Vimos os locais de fronteira cheios de mulheres e seus filhos despedindo-se dos maridos, pais, irmãos. A elas cabia cuidar da proteção dos filhos e dos idosos e a eles o dever de ficar para defender o país. Muitas vezes senti um nó na garganta ao ver essas cenas de despedida, imaginando o que passaria na cabeça de cada um. Só imaginar a possibilidade de aquele ser o último momento em que toda a família estava junta, já causava dor.

Essas mulheres fizeram-me lembrar um alto responsável do ACNUR que uma vez referiu que as mulheres que sobrelotavam os campos de refugiados de guerra eram o recetáculo da cultura e das tradições dos seus países e seriam elas a manter viva a alma do país mesmo que o conflito armado durasse anos e anos. Por outras palavras, as Mulheres refugiadas, longe da sua terra, preservariam a cultura que os invasores queriam destruir. Um sinal de esperança, num cenário de total miséria humana. Também as mulheres ucranianas que foram obrigadas a abandonar o seu país manterão viva a alma da Ucrânia Livre e dela falarão aos filhos e estes transmitirão, por sua vez, aos seus próprios filhos, e, mesmo que a Ucrânia sucumba ao poder irracional dos invasores, liderados por um comando ditatorial, haverá sempre, num canto do mundo um ucraniano que não desistirá de querer lutar pela liberdade do seu país. Com este lado romântico, vamos acompanhando as histórias de acolhimento e integração dos refugiados ucranianos.

Porém, a guerra não tem nada de romântico (mesmo quando noticiam sobre os casais que decidem casar no meio/no intervalo de um bombardeamento) e pouco tempo após início das ondas de gente a abandonar a Ucrânia atacada, as organizações de direitos humanos fazem soar o alarme do tráfico humano. Mulheres e meninas corriam o risco de ser enganadas e desviadas para destinos de exploração sexual. Novamente a condição de mulher se transformava num elemento de risco!

Gillian Triggs, Alta Comissária Adjunta para Proteção do ACNUR alerta sobre isto dizendo que a crise dos refugiados ucranianos é também uma crise de proteção para mulheres e crianças. De acordo com esta responsável, apesar da natureza bem oculta do tráfico humano, estão conscientes de que o cenário é propício para a atuação das organizações criminosas e têm vindo a prevenir os refugiados sobre os riscos de predadores e de redes criminosas que podem tentar explorar sua vulnerabilidade ou atraí-los com promessas de transporte gratuito, acomodação, emprego ou outras formas de assistência.

Mas se os casos confirmados de tráfico de mulheres e crianças ucranianas são ainda muito reduzidos e, por isso, passíveis de deixar os menos informados sobre o modus operandi destes traficantes menos preocupados, nos últimos dias, as revelações sobre a violação (e estupro) e outras formas de agressão sexual de mulheres pelos soldados russos na Ucrânia têm-nos revoltado até ao mais íntimo do nosso ser.

Dizem-me: isso acontece em todas as guerras; Os soldados tomam drogas para conseguirem combater e por isso perdem toda a humanidade. Porém, nada disto é ou pode ser justificação para um ato tão bárbaro! O estupro e toda a violência sexual que está a ocorrer na Ucrânia merecem o nosso total repúdio e proclamação pública de indignação. Um país que tem soldados que praticam estes atos tem de ver os mesmos e os seu dirigentes mais altos sentados no banco dos réus para responder por estes crimes.

Para que possa haver essa responsabilização é necessário investigar com rigor todas as participações apresentadas, recolher todas as provas e ter a coragem de não omitir nada. Uma investigação independente conduzirá à condenação efetiva de todos os responsáveis por estes crimes de guerra. Felizmente, as notícias dão-nos conta de organizações da União Europeia que estão a trabalhar nesse sentido.

Não sei se no nosso continente, perante situações idênticas, que infelizmente continuam a ocorrer (tenho bem presente a dolorosa situação do norte de Moçambique) houve capacidade da sociedade civil para dinamizar esta exigência de responsabilização. E neste momento, vem-me a imagem da mulher moçambicana a correr nua perante as gargalhadas dos soldados! Face a todos estes horrores, e porque ainda no domingo passado celebramos a Páscoa, só a certeza de que a Luz do Ressuscitado é capaz de iluminar os corações mais sombrios nos mantém motivados e confiantes no triunfo da justiça e da liberdade, enfim… da dignidade da pessoa humana. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1064 de 20 de Abril de 2022. 

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Autoria:Lígia Dias Fonseca,26 abr 2022 7:34

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  8 jan 2023 23:28

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