É como se o Ocidente tivesse de responsabilizar-se pela estrondosa falência do sistema político, económico e social da antiga URSS e seja obrigado a falar baixinho, a respirar silenciosamente, para não acordar o monstro.
Os que têm enveredado por certa narrativa desvalorizam a circunstância de os países outrora subjugados por Moscovo quererem exercer uma soberania inteira, livres de fazerem as opções que melhor entendam. E fazem vista grossa à arrogância de Putin quando, numa leitura própria, esconsa e viciada da história, afirma que a Ucrânia não tem razão de existir por ter sido parte integrante da Rússia. Mesmo que o tenha sido em épocas recuadas de flutuação e indefinição de identidades nacionais, domínios e fronteiras, a Ucrânia tornou-se uma república independente em 1917 e desde então afirmou e consolidou uma forte e inconfundível consciência nacional, tendo sido membro fundador da União Soviética em 1922, a que pertenceu até 1991. Aliás, se dúvidas houvesse, elas desfazem-se perante a evidência clara da sua indómita resistência ao invasor e agressor.
Outro facto que os escribas de certa tendência esquecem é que, pelo Memorando de Budapeste de 1994, a Ucrânia aceitou prescindir do arsenal nuclear que tinha no seu território, sob a condição de “ser garantida a sua segurança contra ameaças ou uso da força contra a sua integridade territorial ou a independência política”. É mesmo muito estranho que a esses escribas passe despercebido dado tão relevante, enquanto nada lhes fica em branco nos seus escrúpulos de filigrana para responsabilizar o Ocidente.
Talvez seja excessivo rotular de “putinista” ou “comunista” os que privilegiam o discurso incriminatório do Ocidente para explicar a invasão da Ucrânia. E se refiro o último nominativo − comunista − é porque os dirigentes do PCP parecem comprazer-se com uma nostálgica confusão da geografia com a doutrina política, como se o regime de Putin não fosse uma feroz e fria autocracia estribada num capitalismo escandalosamente cleptocrata. Mas quem, de consciência livre e esclarecida, não reconhece os graves erros e equívocos cometidos pelos EUA/ NATO na sua política de intervenção externa? A diferença entre o mundo livre e as ditaduras é que no primeiro existe consciência crítica e disponibilidade para um arrepiar de caminho.
Contudo, as narrativas que, no presente conflito, têm surgido a apontar o dedo ao Ocidente pecam por grosseiras simplificações. Seleccionam a espuma dos acontecimentos que melhor caucionam as suas teses, comparam o que não é de comparar, fazem extrapolações sem distinguir entre o imediatismo e o mediatismo dos contextos. Por exemplo, o major-general Carlos Branco inicia um seu artigo citando: “Tudo o que está agora a acontecer lembra as recentes palavras de John Matlock, o último embaixador dos EUA na URSS: estas lideranças parecem não estar à altura daquelas que resolveram a Crise dos Mísseis de Cuba.” Esquece o articulista que a situação da guerra fria em 1962 (crise dos mísseis) era tão linearmente distinta da actual situação internacional, como bem diferente era a personalidade de Khrushchev da de Putin, assim como de natureza diversa eram os respectivos regimes. De modo algum se pode presumir que o então jovem Kennedy era mais experiente e sabedor do que o sénior Biden. E é mais confiável um Khrushchev que denunciou os crimes de Stalin e, num gesto teatral, puxou e bateu com o sapato na Assembleia Geral da ONU, do que um Putin esfíngico, frio e mentalmente insondável, que não mexe um músculo facial quando anuncia decisões que sabe de antemão vão resultar no sofrimento e na morte de milhares de seres humanos.
Portanto, é erro crasso admitir que a racionalidade clássica tem utilidade instrumental no diálogo com uma criatura da estirpe de Putin, essa mesma racionalidade que funcionou no dramático confronto entre Kennedy e Khrushchev, assim se evitando uma guerra nuclear. Creio que o Ocidente teve sinais mais do que claros e suficientes para, em sede institucional qualificada, ter de criar um gabinete de especialistas credenciados em psicologia para estudar cientificamente o perfil mental de Putin e interpretar os seus actos e decisões, no sentido de se prever o futuro. Os avisos não faltaram. Em 2008, num artigo publicado, Mário Soares criticou as intervenções da NATO, é certo, mas logo depois comentava que o Putin era “um homem perigoso”. Num artigo de 2015 publicado no Público, Vasco Pulido Valente escreveu: “O autocrata de hoje já não é o czar Nicolau II, nem Lenine, nem Stalin, nem Khrushchev, nem Brejnev. É um antigo membro da polícia política, e, por consequência, um dissimulador, um mentiroso, um torcionário e um assassino, que dá pelo nome de Putin e que preside a uma cleptocracia”.
Zelensky tem razão ao afirmar que o problema não é apenas com a Ucrânia, mas com a Europa livre e democrática. E eu diria que tende a ser com o mundo todo. A superficialidade ambígua de alguns analistas turva-lhes a sua lucidez quando evitam uma formulação delicada e pertinente como esta: as repúblicas do Báltico estariam hoje livres e independentes se não fossem membros da NATO? No entanto, tenho dúvidas sobre a verdadeira preocupação de Putin, e aqui estará porventura o cerne do problema. O que é que irradia um efeito mais letal sobre o seu regime? Ser-se membro da NATO ou uma democracia liberal e fonte de prosperidade? A proximidade de um míssil que sabe não vai disparar contra si, ou a fronteira com países onde se vive em liberdade e se cria riqueza? Sim, a vizinhança com democracias liberais será porventura a maior dor de cabeça para um regime autocrata, repressivo, assassino e cleptocrata. Os países do Ocidente podem ter, e têm, muitos defeitos, mas é onde genericamente se frui da liberdade de pensar, de criticar e de opinar e manifestar, sem o risco de ser-se encarcerado, perseguido e, mesmo à distância, ser-se assassinado com veneno ou arma de fogo, como sucedeu com opositores políticos, dissidentes e jornalistas russos.
Não, o problema não é só com a Ucrânia. Nenhum homem ocidental de boa mente pode continuar psicologicamente refém do arsenal nuclear de Putin. Porque, no fundo, é a civilização humana que está em causa. Ou se salva o que ela tem de transcendente e justifica a existência humana, ou esta perde sentido. Por isso, é inevitável fazer tudo para travar a barbárie que desabou sobre esse país.
Sobre o autor: Adriano Miranda Lima, Coronel reformado do Exército Português, natural de São Vicente, é autor dos livros “Forças Expedicionárias a Cabo Verde na II Guerra Mundial” e “Dr. José Baptista de Sousa – O Homem, o Médico e o Militar”.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1059 de 16 de Março de 2022.