Os motivos para tal, podem ser muitos. Desde os mais superficiais, aos mais profundos. Sempre injustificados, porém, do ponto de vista constitucional, já que a isso está amarrado, institucionalmente e por juramento.
Não deixa, assim, de incomodar ao pacato cidadão que Sua Excelência o Presidente da República tenha aparecido, na semana passada, em directo, na Comunicação Social, a queixar-se de que não iria à Cimeira da CEDEAO, por ter sofrido um corte substancial (cerca de 90 mil escudos, segundo ele), no orçamento da Presidência.
O que já provocou enorme ruído nas redes sociais e debates acalorados na rádio, bem como declarações na televisão, tendo o senhor Vice Primeiro-ministro e Ministro das Finanças vindo à liça, para dizer que não houve redução, mas sim um aumento considerável de despesas, da Presidência. Um espectáculo, a todos os títulos, deplorável.
É engraçado que, na semana anterior a essa, o senhor Presidente da República tivesse estado, igualmente, na Comunicação Social, a recomendar contenção nacional, nas despesas e no consumo, face às dificuldades financeiras do País, por via das consequências da pandemia, agravadas pela guerra, agora, no Leste europeu.
Não obstante essas recomendações, soube-se que os seus serviços lá iam alugando avião para deslocações de rotina de Sua Excelência, às ilhas, ou adquirindo viaturas novas, de gama alta, para os novos incumbentes da Presidência, porque, de facto, um Presidente da República não é um cidadão qualquer e não é todos os dias que se é eleito para tal cargo…
Embora se possa dizer, como se disse, que as declarações do Presidente da República, relativas ao corte orçamental da sua casa oficial terão mais a ver com a vontade, nunca ignorada, de confrontar o Governo, criando alguma crispação nas relações entre esses dois órgãos de soberania, uma coisa é certa: essa atitude e o meio utilizado para a exprimir eram desnecessários de todo, face aos encontros semanais do Presidente com o Primeiro-ministro e, certamente inoportunos, dada a situação de crise económica e social que assola o mundo, com efeitos negativos e altamente condicionantes, para Cabo Verde.
Por vezes, no entanto, a tentação de aparecer é mais forte do que a moderação e o bom senso. É sabido, aliás, o poder que Mefisto exerce, sobre as almas sensíveis…
Como não se trata, todavia, de um acto isolado e, provavelmente, a procissão ainda vai no adro, há que voltar atrás e analisar o passado recente, para nos podermos situar e, por outro lado, perspectivar o que está para vir.
Não há muitos anos, confrontado pelos jornalistas sobre a hipótese de vir, um dia, a candidatar-se à Presidência da República, o actual inquilino do Palácio do Plateau afirmou que o cargo de Presidente da República não tinha, para ele, qualquer atractivo.
Foi mais longe, e disse que o que ele defendia para Cabo Verde era o regime de chanceler, como o alemão.
A verdade é que isso não obstou a que, ao que tudo indica, ele viesse a arrepiar caminho, pelo menos no que toca à candidatura presidencial. E nem se diga que foi uma decisão repentina. Não! Foi uma candidatura pensada e preparada com antecedência. E é por isso mesmo que ela foi bem-sucedida. O mérito deve ser atribuído, seja dito e reconhecido, ao promotor e à sua equipa.
Porém, agora estamos perante um Presidente da República que queria mas era ser Chanceler. E suportado por uma troupe que vê nele a ponte, ou melhor, a mão providencial, para voltar ao Poder Executivo e governar o País, pelos tempos mais próximos.
Ora se olharmos para outras paragens, algumas bem próximas, histórica e culturalmente falando, mas com cambiantes constitucionais ligeiramente diferentes, e porque em Cabo Verde pretendemos, felizmente, estar num processo constante de aprendizagem e aperfeiçoamento político-democrática, talvez seja momento para se questionar se os antigos Primeiros-ministros, que ali chegaram através de um percurso político-partidário comprometido, competitivo e triunfante, estarão em condições psicológicas e emocionais de exercer, a seguir e em tempo breve, as funções de Presidente da República, no modelo que a nossa Constituição prevê e o Sistema de Governo exige.
Se acontecer o PR ser oriundo da família política que suporta o Governo, o confronto não se nota. Mas há, seguramente, um outro prejuízo: o exercício da função de moderador, que a Constituição da República prevê, acaba por pecar por omissão, como aconteceu, de certo modo, na primeira década deste século.
Acresce, que no caso de Cabo Verde, não se poderá nunca falar em coabitação, por isso que o Presidente da República não tem funções executivas ou de governação, nem depende de uma maioria parlamentar para fazer valer as suas decisões.
À la limite, dependerá muito do carácter e sentido de Estado de cada um. Porém, perante factos tão controversos, é um debate que valerá, a meu ver, ter lugar, desde que feito com serenidade, abertura de espírito e rigor.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1071 de 8 de Junho de 2022.