De facto, no dia 21 de fevereiro? ano após ano, sucedem-se anúncios, declarações, mensagens e posicionamentos de entidades políticas, entre outras.
Um dos traços marcantes de todos esses clamores é serem, na maior parte das vezes, desgarrados de uma política linguística coerente e que respeite o quadro constitucional. Um outro, o de se substituírem à definição de objetivos claros e duradouros. A excessiva insistência com que se bate na tecla da “valorização da língua materna” é, então, justificada como sendo a superior defesa dos interesses do cidadão.
Ora, esse viés ideológico não passa de um incumprimento da Constituição da República (CRCV) e, neste sentido, representa um retrocesso a um estádio anterior à constitucionalização da LCV, ou seja, à I República.
De facto, os primeiros quinze anos da I República (1975-1991), atentou-se nas línguas de Cabo Verde e, muito especialmente, na LCV, mas enquanto instrumentos didático-pedagógicos e de cultura, em detrimento da respetiva dimensão política.
Foi, pois, nesse período, que o ideal da Independência, de fazer de Cabo Verde um país onde o Estado e a Nação se deviam encontrar, partilhar os mesmos valores e as mesmas línguas, acabou por ser adiado. Perpetuou-se o desfasamento entre a língua do Estado e a da maioria da população, tanto mais que a situação se coadunava com a natureza não-democrática do regime, o qual, obviamente, não aceitava a participação dos cidadãos na coisa pública. Pelo contrário, o condicionamento ao direito de liberdade, entre outras, de expressão, de informação, de imprensa, de criação artística, era incompatível com a possibilidade de se considerar a problemática linguística como uma exigência de cidadania.
Atualmente, parece que se quer voltar a dissociar a situação linguística da construção da democracia. Um dos sinais dessa tendência, a qual se vai propagando, é a crescente subestimação do papel da escrita no modelo cultural e político cabo-verdiano.
Ora, a relação entre os cidadãos e as instituições republicanas, do mesmo modo que a ação do Estado de Cabo Verde, como de qualquer Estado moderno, realiza-se, fundamentalmente, através da palavra escrita.
E é, precisamente, por ser um valor fundamental do nosso sistema político que, desde 1999, o artigo 9° da CR-CV prevê uma configuração linguística que tenha em conta a escrita como pilar do Estado de direito democrático, da Escola cabo-verdiana e da nossa história cultural, de matriz cristã.
O problema é que, no espaço desses quase vinte e cinco anos, surgem, cada vez mais, iniciativas que põem em perigo esse princípio.
Um caso emblemático é a decisão da Presidência da República, em março passado, de patrocinar traduções da CR-CV em todas as variantes [sic] da LCV, com o objetivo de “contribuir para o acesso integral de todos os cidadãos à CRCV na sua própria forma de expressar e para a padronização da língua”.
Ou seja, perante a inexistência, por enquanto, de uma norma-padrão para a escrita da LCV (o que, note-se, inviabiliza, de momento, a oficialização), o Presidente da República (PR) propõe a criação de uma Babel crioula, onde os cidadãos cabo-verdianos serão segmentados e diferenciados pela “forma de expressar”.
Quanto à Carta Magna (logo, qualquer outra lei da República), ela passa a ser adaptável, ao gosto do falante. Chegados a aqui, pergunta-se a quem se destina, então, a versão oficial em língua portuguesa.
Mas o verdadeiro cerne da questão é este: se o PR, enquanto garante da coesão nacional e do cumprimento da CR-CV, em vez de promover o igual acesso de todos os cidadãos cabo-verdianos à língua portuguesa e oficial, a que o Estado está obrigado, opta por relegar os cidadãos cabo-verdianos à oralidade e, simbolicamente, por exclui-los do espaço comum da língua oficial, qual é a lógica de se conhecer a CR-CV, em que língua for?
Estas são algumas questões cujas respostas seriam bem-vindas no próximo dia 21. Este será, seguramente, menos enredado se se recomeçar a tratar a LCV como parte integrante do nosso regime democrático e, não, parte de um desastre onde alguns projetos nos podem conduzir.
No calendário deste ano, o Dia Internacional da Língua Materna e o Carnaval vão-se encontrar no espaço da mesma terça-feira. Possa tal coincidência ser inspiradora e proporcionar aos cabo-verdianos a mesma criatividade demonstrada nos desfiles carnavalescos, para a procura das melhores soluções para as línguas de Cabo Verde.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1107 de 15 de Fevereiro de 2023.