Já não somos o que éramos.
Hoje muita gente tem receio de andar à noite; a televisão, quase diariamente, nos faz entrar, pela casa adentro, imagens de violência; já não surpreende aparecerem taxistas mortos; já não é notícia assustadora um motorista de autocarro ser assassinado em pleno posto de trabalho; já não causa espanto a proliferação de cenas de tiroteios nos bairros entre grupos rivais; já é prática comum que grupos de energúmenos vandalizem automóveis e bens dos cidadãos cumpridores das suas obrigações.
É isso e muito mais!
Verdadeiramente, já não somos o que éramos”.
(Extrato de um artigo meu publicado em 2008, no jornal A NAÇÃO)
O liberalismo que se instalou em Cabo Verde não aconteceu apenas na esfera política e económica, também se operou a sua integração no plano dos costumes, normalizando muitas situações que antes o conservadorismo predominante não permitia a sua emergência.
Aconteceu que a sua integração não ocorreu de forma programada, previsível e com uma base ideológica consistente. A sua incorporação se fez de forma voluntarista, apolítica, em jeito de moda e de um seguidismo acrítico.
O liberalismo nos costumes traduz-se numa atitude do Estado em não intervir, em não impor padrões de conduta e a não estabelecer regras morais à sociedade, deixando que cada um aprenda o que é necessário aprender e o mercado social faça o seu trabalho de regulação.
Ocorre, no entanto, que o espaço de socialização por excelência que é a família deixou de desempenhar o papel de ente integradora e de modelização, fruto da transformação diversa que sucedeu, nomeadamente na estrutura do modelo da família, na relação de poder intra-familiar e na quebra de afetividade de laços de parentesco.
Importa não se esqueça que os valores que desaparecem, fruto das dinâmicas sociais diversas, devem ser substituídos por outros validamente sustentáveis, que permitam o novo se ancorar em alicerces sólidos e resistentes a erosão temporal.
Em Cabo Verde, o que sucedeu é que o velho, o tradicional, foi substituído pela novidade, pelo modismo, pela importação acrítica de padrões ou modelos que não têm nada a ver com o nível de maturidade social e organizacional do país. A abertura e a incorporação de modelos referenciais estranhos à nossa realidade social e cultural, a ausência de qualquer filtro que pudesse permitir uma absorção crítica e a sua transformação num novo elaborado, a opção(?) do Estado em não intervir em questões de natureza ético-moral, recusando-se a modelar padrões sociais, conduziu-nos a um certo vazio, a um mal-estar difuso, em resultado da ausência de referenciais, e a uma encruzilhada paradigmática, na qual se reivindica uma sociedade de valores, mas em que não se faz ou se desconhece como se faz para se ter uma sociedade ideal e socialmente aceitável e em paz consigo própria.
Escrevia eu, num artigo publicado no extinto jornal Horizonte, em 2002, sob o título “Liberalização de Costumes”,e cito: “Afirma-se, aqui e acolá, e com tom mais ou menos dramático que a família cabo-verdiana se encontra em crise; que há uma crise da autoridade do Estado cujos sintomas já nem os responsáveis pela gestão pública escondem a sua existência, quanto mais a sua propagação, quase «epidémica», bem como os efeitos perniciosos que a sua presença tem tido sobre o desempenho do próprio Estado; que há uma crise de princípios e padrões ético-morais, cujas manifestações mais visíveis são o culto pelo banal, pelo superficial, pelo egoísmo, pela mediocridade, pelo consumismo desenfreado e pelo salve-se quem puder.
Ilusoriamente ou não, parece haver um afrouxamento de exigência, de rigor, de avaliação e de responsabilização. Rapidamente parece querer-se instalar o deixa andar, o faz de contas, o tudo bem e o «bom-gajismo» de toda a espécie. Este texto, escrito há 20 anos, chamava atenção para o que estava a acontecer, e alertava para o que estávamos a plantar e que agora, infelizmente, estamos a colher alguns frutos.
Hoje temos os problemas que temos, e continuamos a lidar com eles de forma superficial, muitas vezes, tendo já elaborado respostas para os problemas que sequer ainda entendemos a sua génese.
A simplificação da complexidade, a que se tem assistido, pode conduzir à não compreensão da realidade e à adoção de medidas que apenas servem de paliativos. Tratar a febre, sem se preocupar em saber o que está a provocar a febre, é meio caminho andado para não curar a doença existente, muito embora a ação sobre a febre possa momentaneamente fazer desaparecer os sintomas. Mas isso é só por uns momentos. Passados os efeitos antipiréticos, volta tudo de novo.
Não restam quaisquer dúvidas que temos violência na nossa sociedade, bem como as suas manifestações com diversas colorações, e disso, parece, que ninguém tem menor dúvida! Como também ninguém duvida que todos estão preocupados com esse fenómeno e que todos o querem combater.
O problema começa neste ponto essencial que é, o como combater a violência.
E nesse particular, ninguém pode tirar pedras a ninguém!
Socorrendo-me de um texto escrito em 2005 no extinto jornal Horizonte, já lá vão uns 17 anos, escrevia então o seguinte: “O combate ao «fenómeno violência» tem sido sempre mal colocado: na maioria dos casos, nas estratégias de combate à violência, o enfoque tem sido colocado essencialmente sobre as suas consequências e não sobre as suas origens.
Tem havido pouca preocupação, dos diversos poderes, em procurar saber quais são as razões que produzam e conduzam à violência. Ouvimos, de forma reiterada, falar-se da violência contra as crianças, contra as mulheres, sobre os detidos nas prisões, violência urbana, violência nas escolas... etc.”
Poucas vezes, ou senão nunca, ouvimos falar ou questionar a razão por que ela acontece.
Qual a razão de termos tanta violência doméstica e no seio familiar?
Por que motivo temos violência urbana e quem são os seus principais agentes?
Quais são as causas para que haja abuso sexual de menores, e em que tipo ou ambiente familiar isso maioritariamente ocorre?
A delinquência e a criminalidade acontecem com maior frequência em que espaços territoriais e quais as condições de sociabilidade e de integração social nesses espaços?
Nos perfis dos delinquentes e criminosos existem relação com o álcool e as outras drogas?
Quais são os motivos para o início de atividades sexuais nos jovens cada vez mais precoce?
Qual é a razão e a extensão da maternidade, cada vez mais precoce, nos adolescentes?
O nível das desigualdades e de acesso aos bens sociais essenciais estão num parâmetro socialmente aceitável?
Devemos ainda acrescentar outros tantos questionamentos, nomeadamente, se:
Temos educação à vida familiar nas escolas e nos espaços de educação de adultos?
Temos educação sexual nas escolas?
Temos desporto escolar em espaços apropriados destinados à população estudantil?
Temos espaços de socialização e integração dos jovens nos bairros problemáticos, nomeadamente áreas para a prática de desporto, de teatro e de animação cultural, etc.?
São estas e muitas outras perguntas que são necessárias ser feitas e para as quais importam encontrar as respostas, antes da formulação de políticas de combate à violência sob suas diversas manifestações.
Para as perguntas e as respetivas respostas são necessárias políticas e medidas de políticas, algumas de longuíssimo prazo, visando a transformação da sociedade.
Nenhuma política de combate à violência, alicerçada apenas na repressão policial e judicial, logrará obter sucessos, se não for acompanhada de políticas de promoção de valores éticos-sociais positivos, de promoção da cidadania ativa, de promoção do bem-estar e de harmonização e integração sociais.
Já se ouviu falar, e há quem defenda mesmo, medidas duras para se pôr cobro à situação, nomeadamente:
a) Endurecimento da repressão policial;
b) Aumento da moldura penal;
c) Transformar em crime público a relação sexual praticada com menores;
d) Castração química e física dos violadores de crianças;
e) Prisão para os pais que não assumam a paternidade;
f) Prisão para os que têm relação sexual com menores de idade.
Cada um “chuta” o que lhe parece ser a medida certa, e ninguém se preocupa em prever os seus efeitos colaterais.
Ora, se algumas dessas medidas forem adotadas, o país teria de construir mais prisões para albergar todos os que iriam para a reclusão, como teria de mobilizar recursos financeiros substanciais para alimentar toda essa gente que povoaria os estabelecimentos prisionais do país.
Um exemplo acabado para demonstrar como alguns estão a viver numa realidade paralela, prende-se com o início de atividade sexual no país.
Num estudo realizado pelo CCS/SIDA, em 2013, com os Profissionais de Sexo (TPS) dos principais centros urbanos do país (Praia, São Vicente, Sal, Santa Catarina e Santa Cruz) foram identificados e contados um total de 1096 TPS, distribuídos em 1051 mulheres e 45 homens. Na Cidade da Praia concentrava-se mais 61% do efetivo total, ou seja, 646 mulheres profissionais do sexo. Em São Vicente havia cerca de 193, seguido de Sal 95, Santa Cruz 90 e Santa Catarina 72.
Relativamente à idade média nas primeiras relações sexuais, o estudo, que incidiu sobre uma amostra de 377 profissionais do sexo, sendo 9 homens e 368 mulheres, apontava para os 15 anos de idade, sendo que metade das entrevistadas iniciaram a vida sexual mesmo antes de atingirem essa idade. Ainda, segundo o estudo, a situação era agravada pelo facto de meninas muito jovens viverem num ambiente propício ao comércio sexual, e esse facto influenciava grandemente a idade de iniciação e a venda do sexo.
Segundo os dados produzido pelo Ministério da Saúde, através do Programa Nacional de Saúde Reprodutiva, a taxa de gravidez na adolescência em Cabo Verde tem oscilado, e com tendência a aumentar, entre os 14% e 19%, no período de 2013 a 2018. Se considerarmos que a população adolescente em Cabo Verde representa 18.9%, o que significa que em cada 5 mulheres, 1 é adolescente.
Ora seria muito interessante para os que defendem que a relação sexual com menores seja considerada crime público ou os que pretendam que sejam presos todos os pais que não assumam a responsabilidade parental, saber deles como seria a gestão do país com toda essa gente presa, e o que não se teria de trabalhar para dar de comer, vestir e lavar a essa gente toda que deixaria de trabalhar e de produzir.
É preciso que se desenvolva trabalho de prevenção desses males sociais com políticas assertivas, baseadas em estudos e diagnósticos detalhados que permitam intervenção sobre os fatores que alimentam e promovem a sua emergência e evolução.
Não se pode combater e inverter fenómenos sociais negativos de natureza estrutural com medidas e políticas de carater conjuntural.
A violência nasce e desenvolve-se em ambientes que pautam pela ausência de regras e de limites, pelo caos relacionais e organizacionais, pela quebra de hierarquia e pela menorização de valores ético-morais e pela desigualdade e exclusão social. Não se trata aqui da defesa de nenhuma tese determinista, mas sim de destacar os fatores que favorecem, alimentam e potenciam a violência. Quando esses fatores se conjugam, associados a uma certa predisposição do indivíduo para práticas anti-sociais, estar-se-á perante uma condição ótima e suficiente para eclosão da violência. E quando isso ocorre, numa cadência regular e numa abrangência grupal significativa, capaz de gerar insegurança e mal-estar social, chegados aqui, estar-se-ia perante uma sociedade em crise, onde as regras de convivência social tendem a não ser minimamente respeitadas.
Importa, contudo, sublinhar que o estar em crise não é o problema central e mais grave, porque as crises, uma vez identificadas, pode-se sempre serem adotadas medidas para a sua superação. A questão-chave e existencial coloca-se quando não se sabe para onde se quer ir ou que sociedade se quer construir.
É preciso estar atento de que as coisas não acontecem por acaso: há países que face à degradação dos valores ético-morais nas suas sociedades decidiram enfrentar o problema de forma determinada. O caso da Noruega é um exemplo paradigmático: o governo desse país escandinavo, há alguns anos atrás, decidiu criar uma Comissão Governamental de Valores Humanos, com os seguintes objetivos: primeiro, criar na sociedade uma consciência crescente sobre os valores e os problemas éticos; em segundo lugar, contribuir para um maior conhecimento do desenvolvimento de valores humanos na sua cultura contemporânea; terceiro, identificar desafios atuais em matéria de ética da sociedade e discutir possíveis respostas; e em quarto lugar, promover a integração dos diferentes sectores nesse debate.
Pois bem, é assim que se faz quando se quer enfrentar e resolver um problema que preocupa uma comunidade ou um país. O primeiro passo é estudar para se conhecer o problema, e só depois tomar as medidas.
Navegar no escuro é caminho certo para o insucesso.
Voltando novamente a um texto meu de 2011, publicado no Jornal A Nação, sob o titulo, Violência Social, dizia: “A violência poderá ser a expressão de um mal-estar da sociedade, fruto de desajustes, de insuficiências, de fraturas, de contradições, cujos sintomas se manifestam de diversas formas: homicídios, suicídios, assaltos, agressão física e psicológica, desprezo pelas regras de convivência...
… A violência não surge por geração espontânea, ela está ligada ou é inerente às dinâmicas sociais e ao seu processo de complexificação, sobretudo quando este não abranja mecanismos de amortecimento. Quanto mais complexas e menos mediadas forem as relações sociais numa dada sociedade, mais tensões e conflitos ela é suscetível de gerar, bem como maior é a possibilidade de acontecer fraturas com implicações diversas.
… Por isso, uma estratégia bem concebida não poderá dispensar um bom diagnóstico; e é necessário atacar as causas da violência, porque atacar apenas as suas consequências é literalmente enfrentar somente uma parte do problema, e é porventura eternizá-la ou mantê-la sempre ao mesmo nível”.
Houve uma preocupação minha, em vários momentos e de há muito tempo a esta parte, em alertar, em chamar atenção e em identificar problemas que estavam em germinação e em evolução contínua.
Tínhamos os problemas que tínhamos outrora, e continuamos a os ter agora, sem aparente solução à vista.
Cabo Verde tem de começar a produzir conhecimento e saberes endógenos sobre a sua realidade, e as universidades já deveriam estar a desempenhar esse papel fundamental.
A atitude liberal dos cabo-verdianos face aos costumes deve ser objeto de estudo e de análise. Vivemos e convivemos com problemas gravíssimos como a precocidade no início da atividade sexual, a aceitação tácita do liberalismo sexual, a maternidade precoce, a violência doméstica, a maternidade e a paternidade irresponsáveis, perda de autoridade parental, vazio familiar, enquanto espaço de socialização, ausência de referências ético-morais na educação e formação do cidadão, e ninguém se dá conta disso ou se incomoda com isso.
Temos de saber, e é imperioso que saibamos, que sociedade queremos, e lutemos todos para sua construção.
Uma sociedade de valores? Então trabalhemos para sua edificação.
Uma sociedade mais justa e menos desigual? Então lancemos políticas para sua construção.
Em 2010, ao participar como orador num FÓRUM NACIONAL DE CONSENSO POR UMA CULTURA DE PAZ E TOLERÂNCIA, promovido pelo então primeiro-ministro Dr. José Maria Neves, deixei vincado alguns pontos essenciais que continuam atuais no combate à violência.
Propunha então as seguintes soluções:
1) “No combate à violência, temos, sem dúvida, que conhecer o problema, a sua magnitude, natureza e consequências a diferentes níveis, para que possamos definir um plano de ação, contendo os objetivos a atingir, as estratégias a desenvolver, as metas a alcançar num tempo e espaço definido;
2) Para além de um plano de ação integrado, o país deve dispor de um mecanismo de coordenação e monitorização da problemática da violência, de forma a se saber, permanentemente, o que se faz, como se faz, por que se faz, que ajustes são necessários fazer e para que direção se está a caminhar;
3) No combate à violência, todos os atores da sociedade devem participar, designadamente: as instituições públicas como os Ministérios da Saúde, da Educação, da Justiça, da Administração Interna, da Solidariedade, da Formação Profissional e Emprego, ICCA, ICIEG, FCS, CNDH, etc.; as organizações da sociedade como a Verdefam, Associação Zé Moniz, A Ponte, OMCV, Morabi, Plataforma das ONGs, as Igrejas, ACRIDES, Associações Comunitárias, Associações Desportivas, etc.;
4) As instituições devem organizar-se por níveis de intervenção, primário, secundário ou terciário, de acordo com a sua vocação;
5) O país deve assumir uma estratégia de combate à violência assente nos princípios de saúde pública, atuando e desenvolvendo atividades de prevenção a nível primário, secundário e terciário”.
Esta estratégia proposta permitiria, não só atacar o problema, mas também promoveria a sua prevenção, exercendo o controlo da situação de forma contínua, conhecer e acompanhar as tendências, contrariando e antecipando os acontecimentos quer reais, quer potenciais.
Infelizmente, o plano de ação previsto não chegou a ser executado, e perdeu-se uma grande oportunidade para se desenvolver um combate, a sério, contra a violência em Cabo Verde.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1075 de 6 de Julho de 2022.