Contra a corrente e a maré

PorJosé Tomaz Wahnon Veiga,23 jun 2023 16:37

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O Governo propõe-se investir 518 milhões de euros em energias limpas, entre 2018 e 2030, para atingir uma taxa de penetração de 50% ou mais no horizonte 2030. Ou seja, pretende o Governo que dentro de sete anos, pelo menos metade da energia eléctrica produzida em Cabo Verde provenha de fontes renováveis, especificamente energia eólica e solar.

O anúncio foi feito em entrevista concedida ao Expresso das Ilhas de 24 de maio pelo Ministro da Indústria, Comércio e Energia.

O volume de investimento previsto para chegar à meta de 50% em 2030, 518 milhões de euros, ou 57 milhões de contos, é muito dinheiro para Cabo Verde. Representa quase um terço do Produto Interno Bruto de Cabo Verde em 2021, a preços correntes, e um investimento de cerca de 8 milhões de contos em média, em cada um dos sete anos até 2030 (descontando os investimentos em electricidade realizados entre 2018 e 2022). Comparando estes 8 milhões de contos anuais com o investimento médio anual no período 2016-2022 em educação (1,5 milhões de contos), na saúde (878,1 mil contos), em segurança e ordem pública (678 mil contos), e se considerarmos que desde 2016 até 2022 o investimento público total foi de 94,2 milhões de contos, cerca de 13,5 milhões de contos anuais em média, temos de reconhecer que o Estado de Cabo Verde decidiu transformar a questão ambiental na sua principal prioridade, em matéria de investimento público, bem à frente do investimento público em Educação, Saúde e Segurança Interna (nota: as fontes dos dados são a Conta Geral do Estado, 2016 a 2022, este último ainda provisório, retirados do site do Ministério das Finanças. O tratamento dos dados é da minha autoria).

Por mais meritória que seja esta opção do Governo (tenho opinião contrária, como se verá mais adiante), não constitui novidade.

Na verdade, em 2011 o Governo do então Primeiro-Ministro, José Maria Neves, já tinha fixado a meta de 50% de taxa de penetração das energias renováveis na produção de electricidade até ao ano 2020 (EI nº 510 07/09/2011, página 6). Ou seja, o actual Governo está a programar a mesma taxa de penetração para um horizonte 10 anos mais tarde do previsto pelo Governo de José Maria Neves em 2011.

Esta meta de 50% de penetração das renováveis constava do chamado Plano de acção “Cabo Verde 50 por cento Renovável em 2020”. Pretendia, ainda, o mesmo Governo, atingir uma «capacidade instalada de 100 megawatts de energias limpas», «ligar as ilhas de S.Vicente e Santo Antão via cabo submarino para transportar energia do vento da primeira para a segunda ilha» (este projecto foi considerado o «projecto mais emblemático»), e tornar a ilha Brava 100% renovável.

E todo esse ambicioso plano seria concretizado mediante um plano (mais um!) de investimento de 300 milhões de euros, ou seja, 33 milhões de contos em dez anos, em média 3 milhões de contos /ano.

Ninguém sabia ao certo como é que esse plano seria financiado e o que representaria em termos de dívida externa. O que interessava era ter um Plano que estivesse na onda das modas da ONU, das instituições financeiras internacionais e da chamada “Comunidade Internacional”. Afinal, não se pretendia que todos contribuíssem para reduzir as emissões de CO2 que estão a acelerar o aquecimento global do planeta, o que irá provocar a curto prazo os maiores desastres e mesmo o fim do mundo? Como Cabo Verde “estava na moda” nessa altura, tínhamos de seguir as pisadas e a agenda das organizações internacionais que vivem dessas modas.

Estamos agora em 2023. Que resultados foram obtidos desde 2011 em termos de penetração das energias renováveis? É sempre bom submeter as políticas concebidas e executadas pelos poderes públicos ao crivo da informação empírica. Qual é o peso actual das fontes renováveis na produção de energia eléctrica, e como evoluiu entre o anúncio de 2011 e o fim do mandato do Governo em 2015? E como evoluiu desde 2016 até ao presente? Quanto investiu o governo do então Primeiro-Ministro José Maria Neves nessas fontes renováveis nos 4 anos em que ainda esteve no poder? A forma como os números são apresentados nas Contas do Estado não permite escrutinar a informação pretendida, mas pelo menos temos o valor total dos investimentos públicos em electricidade (note-se que, neste caso e no que anteriormente ficou dito, refiro-me ao investimento público e não aos gastos de funcionamento das instituições públicas). Assim, entre 2012 e 2015, o investimento público em electricidade (todas as fontes confundidas) foi de 1,4 milhões de contos, seja cerca de 345 mil contos anuais, em média, pouco mais de 10% dos 3 milhões de contos anuais previstos no Plano de acção “Cabo Verde 50 por cento Renovável em 2020” de 2011. E quanto aos resultados em termos de penetração da energia renovável e realização de outras estruturas importantes?

Não há memória do famoso cabo submarino que iria transferir a energia do vento de S.Vicente para St Antão, a ilha Brava parece que ainda está à espera do 100% renovável, e a taxa de penetração das fontes de energia renovável na produção de electricidade em finais de 2015 foi de 20.6% (18,9% eólica e 1,7% solar) conforme o Relatório e Contas da Electra, 2015. Em 2022 a mesma taxa foi de 16,8% (fonte: Electra Relatório e Contas ,2022) ou seja apenas 34% da meta fixada para 2020. Note-se que esta taxa de penetração de 2022 é inferior à de 2015 (20,6%). Em vez de aumentar, a penetração das fontes renováveis de energia eléctrica diminuiu. Tendo-se registado um aumento da produção global de electricidade, isso significa que a contribuição das fontes térmicas, que usam combustíveis fósseis e emitem gases de efeito de estufa, aumentou em termos absolutos e relativos. Consequentemente, as nossas emissões de CO2 aumentaram, como seria de esperar.

E a capacidade instalada de produção de energia eléctrica a partir de fontes renováveis, os 100 megawatts prometidos? Bem, a capacidade instalada da Cabeólica desde o início de actividades até hoje é de 25,5 MW e as centrais fotovoltaicas da Electra têm uma capacidade de apenas 6500 kW, e uma taxa de penetração de apenas 1,5%. Ou seja, a capacidade total de produção de energias renováveis não se aproxima minimamente da meta de 100 MW fixada em 2011 para valer em 2020.

Agora, o Governo retoma a meta do Governo anterior, mas estende o prazo por mais 10 anos. As declarações do Ministro da Indústria, Comércio e Energia, sugerem uma abordagem menos propagandística e mais ponderada. Faz anúncios com alguma prudência, refere estudos, adjudicações de obras e, embora de forma algo evasiva, também se refere ao financiamento. Ficamos, assim, a saber que, tal como no Plano do Governo anterior, a maior parte do financiamento será de origem externa e irá seguramente agravar ainda mais a dívida pública.

E é neste ponto que se insere o cepticismo e a interrogação. Por que razão deverá o Estado de Cabo Verde investir tanto dinheiro no aumento da taxa de penetração das fontes de energias renováveis? O que justifica essa urgência, emergência mesmo? Estaremos, nós Cabo Verde a contribuir de forma tão desproporcional para o aquecimento global do planeta e, deste modo, para todas as desgraças que aí vêm, segundo a visão catastrofista que domina a narrativa ambientalista neste momento? Ou estaremos a seguir cegamente, de novo, as agendas da ONU e outras instituições internacionais, sem cuidar de ponderar as alternativas? Os economistas afirmam que os recursos são escassos e têm usos alternativos. Os 57 milhões de contos que se prevê investir em “energias limpas” não terão usos alternativos mais urgentes e necessários? Teremos nós ponderado essas alternativas e o seu efeito no desenvolvimento do país?

As mudanças climáticas são um tópico constante e permanente na cena internacional. A julgar pelos biliões de dólares, a cobertura mediática, e o número de vezes que a expressão “mudanças climáticas” aparece no discurso dos políticos em todo o lado, conter o aquecimento global deve ser a prioridade número um do mundo, ultrapassando o combate à pobreza, a promoção da saúde, da educação, do desenvolvimento económico, a prevenção ou eliminação das guerras e dos conflitos que ensanguentam o mundo. Será mesmo?

O que explica que, apesar dos biliões gastos no combate às emissões de gases de estufa que estão a aquecer o planeta, apesar das grandes cimeiras mundiais que começaram no Rio de Janeiro em 1992, passando depois por Quioto, Copenhague e Paris, apesar dos compromissos assumidos pelos líderes mundiais de reduzirem as emissões de CO2 e outros gases com efeitos de estufa, o que explica, dizia eu, que mesmo assim as emissões continuem a aumentar de ano para a ano? O que justifica esta ineficácia das actuais políticas ambientais, nesta questão-chave que é o aquecimento global provocado pelas emissões de CO2, metano e outros gases de efeito de estufa? Em 2022, segundo a fonte https://ourworldindata.org/ apenas 7,52% da energia eléctrica produzida no mundo é proveniente do vento e 4,52% provém da energia solar, perfazendo um total global de 12,04%. E as emissões, em vez de diminuírem ou estagnarem, aumentaram de 22,58 biliões de toneladas em 1992 para 37,12 biliões de toneladas em 2021, um agravamento de 64% em 30 anos!

A explicação é relativamente simples e ao mesmo tempo perturbadora: as emissões continuam a aumentar porque há um conjunto de grandes países que aceleraram o seu crescimento económico e, para isso, precisavam e continuam a precisar de energia eléctrica abundante, confiável e barata, ou seja, precisam e utilizam fontes de energia fóssil, carvão, combustíveis líquidos, gás natural. A China é o principal “poluidor” mundial, apesar de estar na vanguarda do investimento em energias renováveis e na produção de veículos eléctricos. Porquê? Porque a China se transformou na fábrica do mundo, dispõe de enormes reservas de energia fóssil, nomeadamente carvão, e utiliza essas fontes, além da energia nuclear e combustíveis líquidos importados, para produzir energia eléctrica necessária ao seu desenvolvimento económico. E com esse processo acelerado de crescimento e desenvolvimento económico, a China foi capaz de retirar mais de 700 milhões de seres humanos da pobreza mais extrema. O preço pago por retirar este número impressionante e sem precedentes de pessoas da situação de extrema pobreza, foi e continua a ser o aumento das suas emissões de gases de efeito de estufa. A China está a construir um número crescente de centrais térmicas movidas a carvão, com novas tecnologias, é verdade, mas são unidades que emitem CO2 e contribuem para aumentar a concentração dos gases de estufa na nossa atmosfera. A índia, a Africa do Sul, o Brasil e outros países, tentam seguir as pisadas da China. A verdade é que nenhum país do mundo conseguiu desenvolver-se sem aumentar o seu nível de consumo de energia per capita. Sem energia barata não há desenvolvimento, não há combate à pobreza. Os países com maior nível de consumo de energia de origem fóssil por habitante são precisamente os países mais desenvolvidos, nomeadamente os EUA (62.365 kWh), Austrália (53.369 kWh), Alemanha (31.834 kWh), Europa (30.030 kWh) e China (25.403 kWh), dados de 2021, fonte https://ourworldindata.org/. Certamente, não será obra do acaso.

A atmosfera não respeita as fronteiras. Por isso, as emissões da China, EUA, India e outros, afectam o clima a nível global, incluindo Cabo Verde. E se os países mais desenvolvidos, como os Estados Unidos, Japão e União Europeia reduziram significativamente as suas emissões nas últimas décadas, através do usso de novas tecnologias e políticas apropriadas, essas reduções são globalmente mais do que compensadas pelas emissões da China e outros países que querem desenvolver-se e têm o direito de usar os seus recursos energéticos para alcançarem níveis de desenvolvimento que permitam maior bem-estar aos seus cidadãos.

Neste jogo de titãs, onde é que Cabo Verde se situa? De acordo com o site https://ourworldindata.org/ o total mundial de emissões de CO2 de fontes fósseis foi de 37,12 biliões de toneladas em 2021; a China emitiu 11,47 biliões de toneladas, quase um terço do total mundial, os Estados Unidos emitiram 5,01 biliões de toneladas, correspondentes a 13,5% das emissões mundiais em 2021. E Cabo Verde? A mesma fonte indica que no mesmo ano Cabo Verde emitiu 668 mil toneladas de CO2, que representam 0,0018% do total mundial, ou seja, uma irrelevância em termos relativos. O nosso contributo para o aquecimento global e as consequentes mudanças climáticas é praticamente nulo. E nesse caso, a pergunta que vem à mente é a seguinte: por que razão conceder prioridade tão acentuada à diminuição das nossas emissões de CO2? Porque não seguir o exemplo de Singapura e utilizar os 518 milhões de euros, ou parte significativa desse montante, na qualificação dos professores e na criação de instituições para o efeito? Não é verdade que as pessoas são a única riqueza real do país? Não é verdade que um elevado nível de qualificação dos professores é essencial para assegurar um alto nível de formação aos alunos das nossas escolas? Não é verdade que um alto nível de formação e qualificação dos chamados recursos humanos é essencial para aumentar a produtividade da economia e, por essa via, o desenvolvimento económico e a consequente melhoria das condições de vida das populações? Porque não redistribuir os 57 milhões que se pretende mobilizar, reduzindo as ambições em termos de penetração das energias renováveis, aumentando concomitantemente a qualidade do nosso ensino, via maior qualificação dos professores a todos os níveis? Não há investimento mais rentável para o país do que o investimento na qualificação dos seres humanos. Porquê então esta fixação, esta extrema urgência, esta obsessão tão condicionadora, quando os recursos são escassos e têm usos alternativos que podem mitigar o impacto das mudanças climáticas nas pessoas e na economia? Eu sei que as agências da ONU e as instituições financeiras internacionais, e alguns países mais desenvolvidos, condicionam os seus financiamentos ao respeito pelas prioridades ambientais dessas agências, instituições e países. Mas não teremos um mínimo de autonomia que nos permita equilibrar os investimentos em áreas cujos efeitos no desenvolvimento económico e bem-estar das sociedades são de longe superiores aos investimentos nas energias renováveis para produção de electricidade? Sei que não é politicamente correcto avançar com este tipo de pergunta, mas não me importo. É certo que o tema das mudanças climáticas está na moda. Da última vez que nos deixámos embalar pela ilusão de que “Cabo Verde está na moda” os resultados foram muito negativos. Estamos preparados para repetir?

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1125 de 21 de Junho de 2023. 

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Autoria:José Tomaz Wahnon Veiga,23 jun 2023 16:37

Editado porAndre Amaral  em  19 mar 2024 23:28

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