O Médio Oriente e o Leste da Europa estão a ferro e fogo, este belicismo aqueceu as relações entre a Presidência da República e o governo e este último mês do ano foi pródigo em ataques e contra-ataques entre as duas instituições.
O PR condenou abstenção de Cabo Verde em votação da ONU sobre o cessar-fogo em Gaza, e afirmou que tal posição não é justificável, dada a gravidade da situação. “Considerando a magnitude do que está a acontecer no Médio Oriente, com uma escalada de violência que se tem traduzido num cenário de absoluta catástrofe humanitária, ceifando já mais de 18 mil vidas humanas, sendo 70% crianças, entende o Presidente da República que o posicionamento de Cabo Verde na votação da Resolução, na Assembleia Geral das Nações Unidas, dia 12 de Dezembro, tendente a um cessar-fogo imediato, jamais poderia ser o da abstenção”, lia-se no comunicado da Presidência da República.
O Chefe do Estado argumentou que a crise no Médio Oriente inquieta a consciência da comunidade internacional e da sociedade cabo-verdiana, indo ao encontro dos valores fundamentais da Declaração Universal dos Direitos Humanos e do Direito Internacional Humanitário.
Já o Governo justificou a abstenção com “uma questão de coerência relativa à sua posição inicial, Cabo Verde votou favoravelmente as propostas de emenda apresentadas pelos EUA e pela Áustria”, mas estas não foram integradas, pelo que Cabo Verde “votou abstenção”, lia-se no comunicado do Governo. As emendas visavam incluir na resolução uma condenação aos ataques do Hamas contra Israel no dia 7 de Outubro, apelar à libertação de reféns e à abertura de corredores humanitários.
Cabo Verde já tinha optado pela abstenção perante o texto adoptado pela Assembleia-Geral, no final de Outubro, que obteve o apoio de 120 países e que apelava a uma trégua humanitária imediata, duradoura e sustentada. Na altura, a posição agudizou a crispação política, com o Presidente da República, José Maria Neves, a dizer que não compreendia a abstenção perante valores humanitários e acusando o Governo de agir sozinho em matérias de política externa, aproximando-se da “deslealdade constitucional” na relação com o chefe de Estado.
A Guerra entre a Rússia e a Ucrânia também teve uma frente no arquipélago, com o PR a apontar a ausência de procedimentos habituais por parte do Governo na escala que o presidente Zelensky fez no Sal. José Maria Neves afirmou que nenhuma comunicação prévia chegou à Presidência da República sobre o encontro entre o Primeiro-ministro e o Presidente da Ucrânia.
“No que se refere à escala do Presidente Ucraniano, nenhum dos procedimentos costumeiros foi realizado. Não houve comunicação à Presidência da República nem quaisquer articulações. No encontro com o Primeiro-ministro, na sexta-feira, 8 de Dezembro, ele limitou-se a informar-me de que no dia seguinte iria ao Sal receber o Presidente da Ucrânia, que solicitara um encontro”, escreveu o Chefe de Estado na sua página de Facebook.
Pela sua parte, o governo disse que o encontro entre Primeiro-ministro e presidente ucraniano era do conhecimento do PR. Numa nota, o governo explicou que o “Presidente da República da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, solicitou através dos canais diplomáticos, no dia 7 de Dezembro, de forma expressa, um encontro com o Primeiro-ministro de Cabo Verde para o dia 9, encontro que deveria acontecer durante escala no aeroporto do Sal em viagem para a Argentina”. Na mesma nota o governo referia que no dia seguinte “o Primeiro-ministro informou o Presidente da Republica que o Presidente da Ucrânia solicitou-lhe um encontro e que iria deslocar-se ao Sal no dia seguinte para o efeito”.
O Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, fez uma escala técnica de uma hora na ilha do Sal, tendo mantido, nesse tempo, um encontro de cortesia com o primeiro-ministro Ulisses Correia e Silva.
O “caso” Primeira-Dama
O último mês do ano trouxe também outra situação polémica envolvendo a Presidência da República, quando o Expresso das Ilhas avançou que a Primeira-Dama recebia um salário, no valor de 310.606$00, pago pelos serviços da Presidência.
Questionada sobre o tema, a Presidência explicou, através de um comunicado de imprensa, que a “Cidadã e Profissional Débora Katisa Carvalho é, desde a investidura do Presidente da República José Maria Neves, a Primeira-dama de Cabo Verde, dedicando-se exclusivamente a esta condição”.
Garantindo que Débora Carvalho “não assinou nenhum contrato com a Presidência da República” e que esta se encontra “desligada das suas actividades profissionais na CV-Móvel” a Presidência esclarecia que Débora Carvalho “encontra-se na Presidência da República em licença especial do seu quadro de origem”.
Quanto ao salário, a Presidência da República afirmou que assegurava a Débora Carvalho “nos termos da lei, o mesmo estatuto salarial que tinha no seu quadro de origem, que é o mínimo que se garante a qualquer Profissional fora do seu quadro de origem: a manutenção do que já tinha”.
Dias depois, o Presidente da República anunciou a suspensão do pagamento do salário da Primeira-dama e a requisição ao Tribunal de Contas e à Inspeção-Geral das Finanças um pronunciamento sobre a matéria. “No termo dessa apreciação”, acrescentou o Presidente da República, “se se entender que haverá algum montante a repor, evidentemente, tal será feito de imediato”.
O Parlamento
Em Novembro, o OE2024 foi aprovado na globalidade com votos favoráveis do MpD e contra do PAICV e da UCID. Com o valor de 85.948.752.206 escudos, a proposta teve 36 votos favoráveis do Movimento para a Democracia (MpD) e 24 votos contra sendo 21 do Partido Africano da Independência de Cabo Verde (PAICV) e três da União Cabo-verdiana Independente e Democrática (UCID).
Por outro lado, em Julho, o Parlamento chumbou a moção da censura do PAICV. Foram 38 votos contra da bancada do MpD, 32 votos a favor sendo 28 da bancada do PAICV e quatro da UCID e sem nenhuma abstenção.
Durante o discurso do encerramento, o Primeiro-ministro classificou a moção como desnecessária e desprovida de fundamentos consistentes e afirmou que a moção não teria impacto significativo chamando os argumentos apresentados pelo PAICV de “requentados”. No seu discurso, o deputado do PAICV, Rui Semedo, esclareceu que a moção de censura apresentada pelo partido não tinha como objectivo derrubar o Governo, mas sim cumprir compromissos com os cabo-verdianos em relação à transparência.
Já a “autoestrada” Dacar-Abidjan mereceu luz verde da Assembleia Nacional, que deu o sim ao tratado que em 2017 criou o “Corredor Rodoviário Dacar-Abidjan”, projeto multimodal de 3.164 quilómetros, após a garantia da incorporação da componente marítima “Praia-Dacar”, de 500 quilómetros
O país
Em Novembro, durante a apresentação do programa habitacional, a ministra das Infraestruturas, Ordenamento do Território e Habitação, afirmou que Cabo Verde enfrenta um défice de mais de 40 mil residências que precisam de reabilitação além de cerca de 14 mil que precisam ser construídas.
Já o novo Relatório de Desempenho do Sector Público Empresarial, que detalha uma agenda de processos a concluir, indicou que o Governo tem como prioridade implementar privatizações e outras parcerias estratégicas.
Como divulgou a Lusa, a agenda tem como objectivo “concluir os trabalhos técnicos e lançar os processos” de alienação da participação do Estado na Caixa Económica através da Bolsa de Valores de Cabo Verde (BVC), da privatização das operações portuárias da ENAPOR, a par de outro ponto, a privatização da Emprofac/Inpharma (sector farmacêutico) e da CV Handling (gestão de carga aeroportuária) a parceiros estratégicos, incluindo alienação a trabalhadores e emigrantes, também através da BVC.
Está também na lista a alienação da participação social detida pela Empresa Nacional de Aeroportos e Segurança Aérea (ASA) e Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) na CV Telecom e a reforma institucional e reestruturação do sector energético, com a privatização da Electra “na modalidade de cisão, bem como alienação das acções representativas do capital social de duas empresas, de produção e de distribuição de electricidade”. A reestruturação dos Estaleiros Navais de Cabo Verde (Cabnave) e a estabilização das operações da Transportes Aéreos de Cabo Verde (TACV) e sua privatização também fazem parte da lista.
Em Setembro saiu a informação que o país tem taxa de analfabetismo de 11 % para população com mais de 15 anos e de 2,1% com idade inferior aos 15 anos, afirmou o ministro da Educação, em declarações à imprensa.
Em Junho, outra polémica, com uma inspecção ao Fundo do Ambiente a concluir que a sua gestão é “deficiente e apresenta riscos que podem comprometer os objectivos do programa”, pedindo mais rigor, também aos municípios, nas adjudicações de obras financiadas.
O relatório, denominado “Ação de controlo ao Fundo do Ambiente” e relativo aos anos de 2018 e 2019, foi conduzido pela Inspeção-Geral de Finanças, concluído em Janeiro de 2022 e homologado “com reservas” pelo Governo, após várias trocas de acusações e críticas da oposição.
Em Abril, Ulisses Correia e Silva venceu as eleições internas do MpD, com mais de 90% dos militantes a optarem pela continuidade do presidente do partido.
De fora para dentro
Em Outubro, o ministro dos Negócios Estrangeiros anunciava que o Governo ia procurar parcerias para deixar de acumular, em 2024, a dívida à Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) que já ultrapassa o equivalente a 28 milhões de euros.
Em Agosto, o primeiro-ministro, dizia esperar que o acordo com Portugal, para conversão de dívida em financiamento climático, se tornasse um exemplo “contagiante”. “São precisos mecanismos que criem círculos virtuosos: a transformação da dívida em financiamento climático é um deles”, sublinhou Ulisses Correia e Silva. Este e o então seu homólogo português, António Costa, assinaram, no dia 20 de Agosto, em Lisboa, um acordo de criação pelas autoridades cabo-verdianas de um Fundo Climático Ambiental, em que Portugal assume o compromisso de participar com 12 milhões de euros.
Para terminar, regressamos a Dezembro, e à Mensagem de Natal do Primeiro-ministro: “Não nos conformamos com a pobreza. Por isso estamos a investir forte para erradicar a pobreza extrema. Sabemos que a pobreza mora em casa de muitos cabo-verdianos. A situação da habitação de muitas famílias é um retrato real. Temos investido e estamos a reforçar o investimento na reabilitação de casas e na construção de casas sociais. Mas também investimentos no acesso à água, ao saneamento e à eletricidade. Somos resilientes e determinados”, disse Ulisses Correia e Silva.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1152 de 27 de Dezembro de 2023.