A propósito dos salários da primeira-dama a presidência deixou claro que “num quadro de explicitação das motivações todas as informações foram prestadas ao sr. primeiro-ministro”. E é assim porque é o entendimento da presidência que o estatuto da primeira-dama existe ainda que disperso e lacunoso. Uma das lacunas seria relativamente à compensação a atribuir à primeira-dama. Não parece interessar que compensação ou salário de primeira-dama não existe em nenhuma democracia por não ser um cargo público.
De qualquer forma ficou-se à espera que o governo avançasse com a legislação nesse sentido. Segundo o comunicado, o documento foi entregue em mãos pelo presidente da república ao primeiro-ministro. Começam os problemas quando se faz por ignorar como se legisla na democracia cabo-verdiana. Primeiro, a iniciativa só pode ser do governo ou dos deputados e grupos parlamentares. Sendo do governo, a proposta de lei teria que ser aprovada em conselho de ministros. Partindo dos deputados ou de um grupo parlamentar implicava uma consensualização prévia. Em qualquer dos casos teria que ser discutida e votada na Assembleia Nacional por se tratar de matéria absolutamente reservada.
Um outro aspecto central é que não se pode legislar contra a Constituição da República. O presidente da república é um órgão singular e não há qualquer referência à primeira-dama e às suas funções no texto constitucional. Também não seria de ignorar a actual lei orgânica de 2007 que na presidência da república limitou-se a criar um gabinete de apoio ao cônjuge do Presidente. Uma simples declaração pública do PR a apresentar a “primeira-dama” não devia ser suficiente para pôr o gabinete a funcionar e muito menos para desencadear requisição de quadro de origem ou processamento de salários. Por tudo isso, devia ser evidente que, enquanto uma nova lei orgânica da presidência não fosse aprovada, essas medidas, ainda que provisórias, não podiam ter como suporte bastante a Diretiva nº1/02023 assinado pelo Chefe da Casa Civil.
Nem é de argumentar como faz o comunicado que tais medidas não foram questionadas, nem foram sugeridos caminhos diferentes por outras entidades como o Fisco e a Previdência Social. Ou então que se procurou criar respaldo financeiro para uma nova lei orgânica a aprovar. Muito menos culpar o “sistema” por despesas injustificadas, mas autorizadas por quem tem o grau de autonomia administrativa e financeira próprio de uma estrutura de apoio ao órgão de soberania, o presidente da república. Aparecendo a apontar o dedo à volta e a disparar para todos os lados, sem assumir a responsabilidade primeira de ter executado despesas indevidas, pode ser entendido como sinal de quem se acha acima de qualquer dever de prestação de contas. A verdade é que nem se conseguiria atribuir as irregularidades e ilegalidades à inexperiência dos principais decisores considerando o longo currículo dos mesmos na governação do país e na direcção de estruturas do Estado.
A intenção manifestada na parte final do comunicado de aguardar serenamente o pronunciamento do Tribunal de Contas poderá ser entendida como mais um estender do tempo de não assunção de responsabilidades. Aliás, foi o que aconteceu durante o meio ano após as revelações de finais de Dezembro quando foram realizadas as inspecções e elaborado o relatório. Mas a realidade é que a responsabilidade política não se esgota na responsabilidade jurídica conformada no controlo dos actos pelo tribunal de contas ou tribunais administrativos. É de a exigir aos titulares de cargos políticos e deve ser assumida pelos próprios sempre que se verificar quebra nas relações de confiança. Não se pode num momento suspender salários indevidos e uso de viatura e depois, sem uma preocupação de regularização da condição de cônjuge, manter a participação em actividades oficiais do Estado no país e no exterior como se nada tivesse acontecido.
Está com os titulares de cargos políticos a responsabilidade primeira de evitar o desgaste da sua imagem e o condicionamento da sua intervenção política. Em situações de perturbação na confiança não é ao público, à imprensa ou às redes sociais que se vai pedir responsabilidade. Particularmente, tratando-se do presidente da república que não pode ser destituído nem exonerado e não responde perante outros órgãos políticos, as exigências são maiores porque só está sujeito ao que os constitucionalistas chamam de responsabilidade difusa que realmente apenas significa censura pública. Ou seja, a sua imagem e a sua capacidade de influenciação dependem fundamentalmente de como desempenha o seu papel de árbitro e moderador do sistema político. A sua função de garante da unidade está associada à autoridade moral que advém da defesa activa dos bens e valores da ordem constitucional.
Um dos chamados deveres autónomos, o dever de pagar impostos, está ligado ao comprometimento do cidadão com a existência do Estado e na origem das democracias modernas foi traduzido na expressão da revolução americana de que há não tributação sem representação (no taxation without representation). Mas, assim como pela via do orçamento democraticamente aprovado, as receitas devem ser legais também tem que se assegurar a legalidade das despesas públicas. Ou seja, a sua conformidade em termos administrativos de competência e forma, e em termos financeiros de cabimento orçamental. É evidente que com qualquer falha, particularmente ao nível mais alto, no compromisso central de se ter receitas e despesas legais corre-se o risco de uma ruptura na confiança no Estado que deve ser assumido e reparado o mais rápido possível. Na Suécia, em 1996, a utilização indevida de um cartão de crédito governamental levou à demissão do vice-primeiro-ministro no chamado escândalo do Toblerone.
As crises recentes nas democracias têm demonstrado que disputas partidárias, conflitos institucionais e mesmo a ascensão de políticos populistas só conseguem criar instabilidade e abrir caminho para derivas iliberais e autocráticas se da parte da sociedade civil e da maioria das pessoas não houver uma defesa activa da ordem constitucional e dos procedimentos democráticos necessários para evidenciaram os ganhos da política e do pluralismo. Se, pelo contrário, os actores políticos se se limitarem ao tacticismo político, ao jogo de conveniência e à conquista e manutenção do poder, a todo o custo, a crise pode aprofundar-se com resultados imprevisíveis. Nesse sentido, a reacção de vários actores políticos quanto aos últimos acontecimentos na presidência da república não tem sido encorajador. Não é na busca de pequenos ganhos pessoais e de grupos que se serve o bem comum e se constrói um futuro de liberdade e prosperidade para todos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1186 de 21 de Agosto de 2024.