Ante todo o aparato publicitário em torno deste, anunciado como o ‘primeiro código de procedimento administrativo da história do país’, fica evidente que verbas de uma magnitude considerável foram alocadas, comparáveis talvez àquelas destinadas à realização da controversa conferência que o Governo, com igual zelo, qualificou como internacional, realizada na paradisíaca ilha do Sal, num dos hotéis mais requintados do arquipélago. Afinal, em Cabo Verde, “há dinheiro que nunca mais se acaba”.
Toda essa fanfarra apenas para que o Governo assegure aos utentes dos serviços públicos que, “com o CPA, Cabo Verde alcançará a máxima transparência e segurança jurídica nas relações entre os cidadãos e a Administração Pública, promovendo procedimentos mais céleres, desmaterializados e desburocratizados.” Este código foi ungido como uma espécie de messias jurídico, missionado a inaugurar uma nova era na relação entre cidadãos e Administração Pública; uma era de clareza imaculada, em que a opacidade dos corredores burocráticos seria dissipada pela luz da lei, e a eficiência, outrora sufocada pelo peso das papeladas, floresceria livre e desimpedida. Certo é que, no meio desse circo de vaidades, o Governo finalmente admite o que qualquer cidadão comum, desprovido de influências, já sabia há muito: na administração pública nacional, a transparência e a segurança jurídica são meras exceções à regra.
A burocracia, longe de promover a organização e a eficiência dos serviços, tem servido predominantemente como um obstáculo, criando dificuldades frequentemente desnecessárias para aqueles que buscam os serviços públicos — serviços que, cabe lembrar, operam exclusivamente graças aos tributos do povo. Na prática, apenas os que não são meros “simples mortais” — aqueles agraciados com privilégios régios, dotados de padrinhos, compadres, camaradas ou colegas de partido dentro da administração — conseguem escapar dos embaraços e percalços das deslocações às instituições públicas. Estes nobres, ao contrário dos comuns súditos que enfrentam intermináveis filas e esperas prolongadas, desfrutam do acesso pelas portas dos fundos da administração. O atendimento é personalizado, o processo é despachado com uma agilidade notável, muitas vezes sem sequer ser formalmente requerido, e as decisões são tomadas com a celeridade dos decretos régios, contrastando fortemente com a morosidade habitual que os demais enfrentam. Ao contrário do que o órgão supremo da administração pública e muitos outros possam pensar, a questão central não reside na ausência de boas leis. Na verdade, a realidade que permeia a administração pública revela-se substancialmente desviante do quadro jurídico-administrativo idealizado. Recordo-me com uma melancólica nostalgia dos tempos em que me imergia no estudo do Direito Administrativo, no segundo ano do curso de Direito no Instituto Superior de Ciências Jurídicas e Sociais. Nas aulas, desvendávamos os princípios que orientam a atuação da administração pública e garantem a proteção dos particulares frente à Administração, conforme preconizado nos artigos 240.º e 245.º da Constituição da República. Naquela época, eu alimentava a visão de uma Administração Pública idealizada, quase utópica, uma entidade regida pela eficiência e justiça. Contudo, ao emergir do ambiente acadêmico, o choque com a realidade se mostrou inexorável. A administração pública que observei, à medida que interagia com ela, não espelhava o ideal descrito na Constituição e em outros diplomas, agora codificados e adaptados ao longo do tempo.
A verdade é que a administração pública enfrenta um abismo entre o ideal teórico e a prática real. Esse descompasso não decorre da falta de boas leis. Os descompassos na administração pública são o reflexo de uma intrincada teia de fatores sociais, culturais e econômicos que permeiam a nossa realidade. Primeiro, é preciso pontuar que Pois, para que a administração pública se alinhasse com o ideal traçado pela Constituição da República de Cabo Verde de 1992, ela deveria fundamentar-se no princípio da meritocracia, ao invés de sucumbir à partidarização. É crucial lembrar que a administração pública é formada por pessoas, e, portanto, é pertinente questionar os métodos de recrutamento para os centros de decisão e poder. Que critérios são utilizados nesse processo? Que princípios realmente tem orientado essas escolhas ao longo dos anos? No entanto, a situação atual é marcada por uma partidarização tão intensa que o então Primeiro-Ministro e atual Presidente da República não hesitou em reconhecer a profunda e excessiva partidarização que afeta a administração. Esta admissão não é uma mera observação pontual, mas sim uma manifestação clara de uma distorção grave dos princípios constitucionais e de uma falha na aplicação dos valores que deveriam, idealmente, guiar a administração pública. A par deste reconhecimento, que poderíamos considerar como uma rara admissão de falhas sistêmicas, resta-nos a pergunta: o que se seguirá? A retórica política tem o hábito de pintar um quadro otimista e, frequentemente, distorcido, da realidade. No entanto, por mais leis que se promulguem e diplomas que se alardeiem, o cerne da questão reside na implementação. Será que o CPA, ainda que delineado com os melhores princípios e intenções, conseguirá transpor a barreira cultural e prática que define a administração pública em Cabo Verde? Ou será este código mais uma vítima da tradicional inércia que permeia a máquina administrativa? Há um provérbio popular que afirma: “Não basta falar, é preciso fazer.” E neste contexto, ele revela-se particularmente pertinente. A verdadeira transformação não virá dos discursos inflamados ou das campanhas publicitárias dispendiosas, mas sim de uma vontade política sincera e de um compromisso inabalável com a mudança. Isso implica um esforço concertado para desmantelar as redes de clientelismo, instaurar uma cultura de meritocracia e responsabilização, e garantir que os princípios de transparência e equidade sejam mais do que meras palavras em documentos legais.
Para que o CPA não se torne um monumento vazio à boa vontade, é necessário um investimento contínuo em formação e capacitação dos funcionários públicos, garantindo que estes compreendam e apliquem os princípios do código em suas atividades diárias. Mais ainda, é imprescindível que os cidadãos sejam informados e capacitados para exigir que seus direitos sejam respeitados, sabendo exatamente quais são os canais apropriados para reclamar quando esses direitos são violados. Em última análise, o CPA deve ser visto não como um fim em si mesmo, mas como uma ferramenta — um meio para alcançar a administração pública que todos desejam. A história dirá se este novo Código de Procedimento Administrativo será o marco de uma nova era de justiça administrativa, ou se se perderá nas teias da burocracia que pretendeu combater.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1188 de 4 de Setembro de 2024.