No processo político eleitoral e também de agitação sindical assim criado nota-se cada vez mais o extremar de posições, a falta de disponibilidade para o compromisso e o enfraquecimento do engajamento esperado de políticos, de titulares de cargos públicos e das classes profissionais com o interesse colectivo. A ênfase é colocada em protagonismos pessoais, no discurso emocional e em ganhos rápidos na política e na carreira em detrimento da lealdade à ordem constitucional, da ética e da procura do bem público.
O resultado é que cada vez mais reina menos razoabilidade e serenidade no tratamento das coisas públicas. Acontecimentos recentes apontam para o pior. Ilustrativos disso são os casos de inspecção e de auditoria que identificam irregularidades e ilegalidades nos serviços da presidência da república. Publicados os relatórios, de imediato foi lançada a suspeição de práticas similares em toda administração do Estado. Seguiram-se ataques político-partidários dirigidos em especial ao Tribunal de Contas, questionando a sua competência e legitimidade.
Até da presidência da república, a propósito de um pedido de nulidade do relatório da auditoria do TdC, se argumentou que o mandato de cinco anos dos juízes não pode ser estendido até à tomada de posse do novo titular. Provavelmente o mesmo deveria aplicar-se ao Tribunal Constitucional que tem mandato de nove anos a terminar a 15 do corrente mês. Interessante que um recurso similar foi dirigido ao tribunal constitucional em Portugal a pedir a nulidade de uma decisão por um dos juízes ter tido seu mandato terminado um ano antes. O recurso foi recusado em Julho de 2023 pelo colectivo dos juízes com uma única voz discordante.
Também revelador é o súbito e estridente questionamento do sistema de saúde na sequência dos casos de dengue e de outros chocantes que vieram a público na semana passada de gestantes que perderam a vida devido a eventuais falhas ou negligência dos serviços.
Percebe-se que, com a diminuição de confiança das pessoas nas instituições, fica fácil fazer um discurso político que acentue os receios das pessoas, aprofunde a desconfiança e espevite os ressentimentos. Em todas as democracias, neste momento, há quem faça esse papel. Não se espera é que seja feito pelos principais actores políticos e pelos titulares de cargos públicos, considerando a responsabilidade que lhes é exigida de garantir a estabilidade e a credibilidade do sistema político. Em Cabo Verde, também o abaixamento do nível do discurso político acaba por extremar posições, por tornar extremamente difícil negociar e firmar acordos, e inevitavelmente, por impossibilitar qualquer discussão do futuro que vá além das disputas para obter ganhos rápidos.
Paradigmático é o que se passa com os professores e as suas lutas sindicais com o governo. Vêm do ano lectivo anterior, com os inevitáveis prejuízos sobre o processo educativo e sobre os alunos, e persistem no novo ano sem perspectiva de chegar a acordo. Rondas sucessivas de negociações não resultaram em acordos e muito dificilmente poderiam ressoltar com a conversa entre as partes feita na comunicação social pontuada por ameaças de paralisação de aulas e sempre tentada a cavalgar agendas políticas, particularmente, quando eleições se aproximam. Ao parecer aceitar o pedido dos sindicatos e vetar o Plano de Carreiras, Funções e Remunerações, o PR introduziu-se nas negociações entre o governo e os sindicatos, alterando as regras do jogo e eventualmente tornando um desfecho mais árduo. O diálogo ficou mais difícil e na prática sequestrado por agendas político-partidárias como se vai ter oportunidade de presenciar no parlamento a partir de hoje. Entretanto, os problemas dos professores e o objectivo central de se ter uma educação de qualidade ficarão efectivamente adiados.
Paradoxalmente, nota-se que o facto de não terem conseguido os resultados desejados ou prometidos com o extremar de posições e protagonismos deslocados e intempestivos não parece dissuadir os sindicatos de continuar com essa postura. Agrava-se a situação, mas insiste-se em fazer o mesmo. Algo similar contribui para fazer crescer a extrema-direita nas democracias contemporâneas sem que os supostos opositores revejam as suas posições, aparentemente esquecidos que os extremos se reforçam mutuamente. Evidentemente que o grande sacrificado é o centro que se define pela liberdade, pelo compromisso e pelo pluralismo que viabiliza a busca pela verdade e torna possível um futuro comum construído na base de soluções democraticamente encontradas.
Se a dinâmica dos extremos partidários e dos populismos demagógicos constituem um enorme perigo para as democracias, não é menor o perigo que pode resultar de um conflito aberto entre os órgãos de soberania. Tensões entre órgãos de soberania são normais e salutares na medida em que contribuem para o equilíbrio do sistema político. Dificuldades surgem quando não se respeita o princípio da separação dos poderes e tornam-se mais graves se se instalar o sentimento de impunidade. O caso do Donald Trump nos Estados Unidos é paradigmático a esse respeito. Escapou de dois processos de destituição (impeachment), sendo o segundo na sequência de um acto considerado de insurreição para impedir a transferência de poder para o presidente eleito. Com sentido de impunidade, atropelou normas estabelecidas, impôs-se ao Congresso e mudou a composição do Supremo Tribunal a favor dos conservadores. O resultado é que a democracia e o Estado de direito na América estão hoje em perigo, particularmente, se ele for (re)eleito em Novembro próximo.
Em Cabo Verde não há fiscalização política do presidente nem processo de destituição. Em caso de falhas graves, o sistema parece contar com o alto grau de adesão do PR aos princípios e valores da Constituição e à ética republicana para encontrar a melhor saída. O pior que pode acontecer é de, na ausência de amarras políticas legais e éticas, se instalar um sentimento de impunidade que ameace tornar o sistema caótico. Como se vê da experiência de outros países, não é um espectáculo bonito.
Um papel fundamental é esperado do governo e dos governantes em manter a confiança necessária das pessoas e da sociedade nas instituições para que o jogo de equilíbrio dos poderes garanta a estabilidade do todo. Hoje percebe-se que as incertezas em relação ao futuro, por um lado, incentivam à emigração e, por outro, tendem a lançar as pessoas numa corrida para se acomodarem junto ao Estado. A imagem de rigor, de sobriedade na gestão dos recursos públicos é essencial para se manter o contrato social que faz as pessoas se sentirem incluídas e parte da colectividade nacional. A erosão que se vem verificando na confiança é um sério aviso quanto à actual qualidade e eficácia das políticas públicas. Há que mudar a atitude e mostrar serenidade e razoabilidade na condução dos assuntos públicos para que todos os sobressaltos do caminho sejam ultrapassados e os desafios enfrentados com sucesso.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1193 de 9 de Outubro de 2024.