A luta entre os concorrentes é desigual. Por um lado, porque dois deles recentemente saíram vencedores em eleições autárquicas, tendo um deles renovado o mandato no município da capital. Nota-se isso nas sondagens vindas a público e na capacidade de mobilização de activistas. Também é desigual porque enquanto os restantes três candidatos se posicionam, como seria de esperar em eleições intrapartidárias, o candidato que também é presidente da Câmara da Praia tem a postura e o discurso de quem funciona com outras regras. A forma como se move mobilizando alguns milhares de novos militantes mais parece um assalto para a captura do partido do que uma competição normal para ganhar a presidência.
Aliás, já no dia da vitória autárquica na Praia a 1 de Dezembro, a sua mensagem principal foi que iria assumir o partido e apresentar-se como candidato a primeiro-ministro nas eleições de 2026. O país, algo estupefacto, apercebeu-se logo disso, assim como o próprio partido e o seu presidente, que com os resultados inéditos das eleições supostamente deveria estar a gozar o seu momento de glória e eventualmente a projectar-se para o futuro. A desistência em se recandidatar já se pressentia nesse dia e veio a confirmar-se pouco depois. A vitória surpreendente na Praia tinha servido para lançar o partido para outros caminhos e para uma outra liderança.
A carreira aparentemente excêntrica de um político iniciada nas últimas autárquicas recebia um impulso que o catapultava para a esfera nacional quase que automaticamente. As candidaturas que vieram atrás dão a impressão de ser um esforço de uma parte do partido em conter o que parece inevitável. De facto, a caminhada para chegar ao que existe hoje começou cedo e a surpreender ao mexer, pública e ruidosamente, com o que seria normal e expectável. Para o seu protagonista importava construir uma imagem anti-elites, feroz contra a corrupção e não subordinada à liderança tradicional do partido.
Nesse sentido, serviu-lhe bem acusar de corrupção vereadores do seu partido, posicionar-se contra o cumprimento do acordo prévio da CMP com o Clube de Ténis da Praia e recusar-se a aceitar a mediação do partido no conflito com a maioria do PAICV na Câmara da Praia. Afirmava-se acima de todos os órgãos do município, forçando a interpretação da Lei para passar o orçamento da CM e nada lhe acontecia. Toda a tentativa de responsabilização política e de fiscalização das contas e do funcionamento do município que é expectável num Estado de Direito democrático foi construída como sendo perseguição e bloqueio.
À imagem de irreverência soube juntar a de vítima do Estado e do poder judicial quando, na realidade tinha, o poder e os recursos da CM para construir uma base própria de apoio junto da população que o permitia, ao mesmo tempo, autonomizar-se em relação ao seu próprio partido e pressioná-lo de fora. Com a aura de impunidade perante todas as acusações e com o apoio do Paicv assegurado sem dever nada à sua liderança foi às eleições e renovou o mandato. Como seria de esperar, a seguir devia vir o controlo do próprio partido para o qual a entrada de elementos da sua base de apoio como novos militantes iria contribuir. Aparentemente, é o que vai acontecer ao partido no próximo domingo.
Vêm-se tornando frequentes nas sociedades democráticas os casos em que partidos tradicionais são capturados por políticos que primam por projectar uma imagem de outsiders, anti-partido e anti-elites. A autenticidade da sua imagem como populistas confirma-se com a sua disponibilidade em violar as regras, em pôr em causa as instituições e a mostrarem-se irreverentes face a práticas e figuras de autoridade geralmente aceites. A impunidade de que vão beneficiando, de confronto em confronto, cimenta a aura de invencibilidade e até de predestinados ou messiânicos. O exemplo paradigmático dessa figura é Donald Trump que, como presidente dos Estados Unidos, está à frente do país mais poderoso do mundo, cujos efeitos transformadores, no mau sentido das suas políticas, já se fazem sentir em todo o mundo com consequências que vão arrastar-se provavelmente por muitos anos.
O populista aproveita-se de situações em que há alguma quebra de confiança nas instituições e uma diminuição de esperança no futuro para encontrar o seu “povo”. Prontamente oferece-se para o liderar na luta contras as “elites”, que supostamente monopolizam todos os recursos, são insensíveis às necessidades das pessoas e já não têm soluções para o país, e no processo, excita paixões, reforça frustrações e fomenta ressentimentos. O populista apresenta as suas próprias soluções que geralmente são simplistas e por isso constituem mais apelos a emoções do que respostas compreensivas a situações complexas. Trump chama-lhes common sense, mas na prática são políticas incoerentes que põem em causa a ordem política e socioeconómica sem resolver as questões de fundo e sem salvaguarde da liberdade, da dignidade e da autonomia das pessoas.
Em Cabo Verde ensaia-se criar um “povo” a partir da realidade da desigualdade social existente no país. Em vez de forçar os partidos a agir e a sociedade civil a exigir mais das reformas que devem ser feitas para que país tenha mais crescimento, mais emprego e mais oportunidade, há quem queira uma espécie de luta de classes entre uma suposta elite e os “excluídos” do sistema. Para os populistas tudo se resolveria tirando de uns para dar aos outros numa espécie de Robin dos Bosques. As armas preferidas nessa luta são o medo do futuro e o ressentimento em relação ao presente.
Como se pode imaginar, ir por esse caminho só levaria ao empobrecimento geral numa sociedade carente de ordem ao nível político-institucional e socio-económico. Uma especial responsabilidade deve ser assacada aos partidos que têm obrigação de oferecer políticas inovadoras e ousadas capazes de ir além do mais do mesmo e da gestão corrente. Partidos que mostrem vontade tanto na procura de eficiência como na prática de solidariedade e que ao construir resiliência para lidar com adversidades apostem no conhecimento e valorizem a iniciativa e a criatividade.
Evitar que na actual conjuntura partidos sejam objecto de captura por forças populistas não é tarefa fácil. A não renovação das lideranças, a falta de imaginação e a ambição desmedida têm minado os partidos impedindo-os de desempenhar o papel que lhes é reservado. Isso pode levar as pessoas a um estado de desesperança e a pensar que qualquer outra solução que não a convencional é boa. Restaurar a confiança nas instituições e o sentido de pertença apostando na solidariedade é fundamental para impedir que Cabo Verde enfrente os tempos incertos e potencialmente difíceis que vêm aí com partidos capturados por populistas.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1217 de 26 de Março de 2025.