Tão preocupada em continuar na sua actuação diária a fazer o mais do mesmo, talvez considere que afinal se trata somente das duas primeiras semanas do novo governo americano e que as coisas dificilmente irão piorar ou desviar-se do expectável. A realidade prenhe de consequências que está a emergir não parece constituir suficiente alerta para provocar mudança de atitude que permitisse enfrentar os novos desafios e eventualmente beneficiar de oportunidades abertas.
A confirmar que se continua na mesma linha das velhas disputas fracturantes, nota-se que do ambiente mundial a configurar-se de forma diferente foi a questão da relação de Cabo Verde com a NATO é que atraiu mais atenção e causou mais polémica. E não por razões de disparidade de políticas dos sucessivos governos quanto à Aliança Atlântica. De facto, a NATO já foi autorizada a instalar bases temporárias no país para conduzir exercícios militares (operação Steadfast Jaguar 2006) e a cooperação na segurança marítima no Atlântico Médio tem vindo a aprofundar-se ano após ano em governos de cor política diferentes. A polémica tem mais uma base político-identitária que aproveita discussão de matérias como SOFA, NATO, Ucrânia e Israel para alardear posições antiamericanas e anti-imperialistas datadas dos tempos da Guerra Fria e, por essa via, uns, ditos patriotas, apontar o dedo a outros, supostos vendedores da terra.
É o atiçar da chama que se sabe que cria crispação, exacerba o discurso político e retira espaço para se fazer política com normalidade para enfrentar os problemas do país. O resultado é que se deixa instalar o que Samuel Huntington, na sua conhecida obra A Ordem Política nas Sociedades em Mudança, chama de fenómeno de politização geral das forças sociais nos países subdesenvolvidos. Segundo o autor, “em tais sociedades, à política falta autonomia, complexidade, coerência e adaptabilidade”. Isso porque todas as forças sociais (corporações, sindicatos, universidades, igrejas, empresas, associações, ONGs) se engajam na política, e a tendência é para não ficarem claro os procedimentos a serem usados para resolver as disputas, para nomear para cargos e para definir políticas.
Em Cabo Verde, vêem-se sinais desse fenómeno notado por Huntington no que, em geral, as pessoas chamam de excessiva politização da sociedade. Tudo parece envolver política, as pessoas movem-se por conveniência, calam ou omitem-se para se protegerem e as causas sociais e laborais parecem sempre ter motivações políticas ou são acusadas de as ter. A relação entre verdade e mentira e entre factos e opiniões enfraquece num ambiente no qual cada um reclama ter a sua verdade e a sua opinião. O problema que vem logo a seguir é que, nesse relativismo próprio do mundo pós-verdade ampliado pelas redes sociais, o excessivo individualismo que é gerado acaba paradoxalmente por propiciar a tribalização da política e a emergência de líderes absolutos, rodeados de fiéis seguidores.
Uma das vítimas directas desse processo são os partidos políticos que perdem grande parte da sua vida interna, devido às exigências de subordinação ao chefe, e que, apanhados pelas suas próprias narrativas, diminuem a disponibilidade para ouvir os anseios da sociedade e aumentar a participação política dos cidadãos. Com tudo isso, fragiliza-se a democracia e incentivam-se tendências iliberais e anti-sistema. É só ver a facilidade com que se procura descredibilizar o sistema democrático perante insuficiências das democracias em resolver problemas de desigualdade social e de pobreza, ou então a enfrentar dificuldades de sobrecarga no sistema de saúde em parte devidas a mudanças epidemiológicas e demográficas. É o proverbial acto de querer deitar fora o bebé com a água do banho.
Não se vê é um igual esforço em forçar os partidos a cumprir com o seu papel de promover o pluralismo, a apresentar propostas de políticas credíveis e a ter candidatos a cargos públicos devidamente preparados. Muito menos se nota a pressão para os partidos defenderem a ordem constitucional, seguir os procedimentos democráticos e manter funcional os pesos e contrapesos do sistema político. A qualidade da democracia depende da qualidade da prestação dos seus actores e da vontade de todos os cidadãos em reger-se pelo princípio de respeito pela dignidade humana, pela honestidade e decência. Como disse Edmund Burke: “A única coisa necessária para o triunfo do mal é que os homens bons não façam nada”.
Sendo a democracia um sistema suportado no pluralismo e no exercício do contraditório no processo de tomada de decisões, espera-se iniciativa, criatividade e capacidade de adaptação dos actores políticos face a situações complexas e a imprevistos. Algo não vai bem quando, com o mundo em mudança rápida e muitas incertezas a ensombrar o futuro, o partido no governo (MpD) tarda em mostrar que tem uma perspectiva de como ultrapassar as dificuldades que se anunciam e que está preparado para as enfrentar. A urgência é maior se acabou de perder as eleições autárquicas e se as legislativas vão acontecer num futuro próximo. Infelizmente, é uma urgência que não demonstrou reconhecer com a aparente falta de acção, seja do partido que levou mais de um mês depois das eleições para se reunir numa direcção nacional, onde o líder foi reconfirmado por aclamação, seja do primeiro-ministro que tomou tempo quase igual para remodelar o governo.
Com isso o país perdeu tempo com o partido a seguir e a aclamar o chefe em vez de reflectir e renovar-se. Voltou a perder tempo com o governo a cumprir a sua agenda como se as eleições, revelando descontentamento da população com as políticas governativas, não tivessem acontecido. Deixou-se um vazio que poderá ser um incentivo para a oposição não se cuidar também de pensar os problemas actuais e futuros do país e apresentar políticas alternativas adequadas. Pode simplesmente cair na tentação de se limitar a arregimentar apoios políticos para a conquista do poder sem preocupação em saber o que vai fazer no dia seguinte. E o que o país menos precisa é de governantes a querer fazer gestão corrente de um modelo já esgotado, como reconhecido pelo próprio Banco Mundial, particularmente com as mudanças a acontecer na economia global.
Um mau sinal de que é a conquista de poder pelo poder que se pretende, é a proposta de substituir as eleições internas do PAICV por uma sondagem de opinião pública que seleccionaria um único candidato a presidente do partido e a primeiro-ministro. É geralmente reconhecido que primárias e eleição directa do presidente serviram em vários países para sufocar a vida democrática dos partidos e permitir a ascensão de populistas, demagogos e caciques. Os órgãos colegiais dos partidos deixaram de ser palco de grandes debates partidários e de servirem para a selecção dos melhores candidatos a deputados e a governantes. O uso de sondagens para a escolha de candidatos, em que o MpD foi pioneiro, não parece que melhorou a prestação nos cargos eleitos nem tão-pouco enriqueceu a vida interna dos partidos.
Infelizmente, as vias preferidas, tanto pelos partidos políticos como por certos titulares de órgãos de soberania na conquista e manutenção do poder, não têm contribuído para a diminuição da politização das forças sociais, referida por Huntington, que retira eficácia à política. Pelo contrário, a tentação é potenciá-las, mesmo com prejuízo para os envolvidos e aumentando a conflitualidade social. Neste momento de necessidade e de viragem no mundo, seria benvinda uma outra atitude que pusesse em primeiro lugar o bem-comum.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1210 de 5 de Fevereiro de 2025.