A inesperada disparidade de posições sobre os procedimentos, considerando a experiência parlamentar de quase 35 anos, fez arrastar o debate por horas. Acabou por ser ultrapassada com a votação de um recurso de uma decisão da Comissão Permanente.
Aparentemente tratava-se de uma substituição de rotina. Um ex-governante retomou o exercício do seu mandato como deputado e, de acordo com o nº2 do artigo 7º do Estatuto dos Deputados, o candidato não eleito que o estava a substituir cessou todos os poderes e imunidades. Ainda de acordo com o mesmo estatuto nº 3 do artigo 6º, que tem em epígrafe “Critérios de substituição”, o candidato deverá retomar o seu lugar na lista, para efeito de futuras substituições. Perante o estipulado, parece não ter sentido uma outra interpretação, como aquela subjacente à decisão da Comissão Permanente, que implica que um deputado, originariamente um candidato não eleito em substituição de um deputado titular do cargo, seja forçado a suspender o mandato para ceder lugar a um outro candidato. Para aí é que se inclinou o voto maioritário no plenário da Assembleia Nacional ao revogar essa decisão.
De facto, um deputado deixa de exercer o mandado em caso de suspensão temporária, se houver procedimento criminal e incompatibilidade, ou então em caso de renúncia. Tanto na renúncia como na suspensão temporária deve ser a pedido do próprio deputado. Não pode ser por imposição da direcção do grupo parlamentar. O mesmo deverá acontecer com o candidato quando substitui um titular do mandato porque, como foi anteriormente referido atrás, enquanto exerce a função, tem todos os poderes e imunidade do deputado. Assim deve ser para garantir a autonomia e a dignidade do cargo, não excluindo evidentemente a gestão política indispensável no seio dos grupos parlamentares para melhor se capacitarem no cumprimento das suas funções no parlamento.
Resolveu-se pontualmente o imbróglio, mas a impressão que deixou nas pessoas e na sociedade não foi a mais positiva. Se se considerar que os parlamentos em geral e também em Cabo Verde não gozam junto do público de grande credibilidade por várias razões, nem sempre as mais justas, o facto é que espectáculos do género não ajudam. Parecem justificar a crise de representatividade nas democracias em que os cidadãos não se revêem nos eleitos particularmente quando aparentam estar a servir-se do mandato para defender interesses próprios.
E é o pior momento para isso. Sempre houve inimigos da democracia e do parlamento como órgão vital do sistema democrático, mas agora os números aumentaram consideravelmente. Outrossim, no actual ambiente de activismo e política populistas, situações similares fazem crescer o descrédito ainda mais, em particular porque centrando-se nos proventos do deputado reforçam as acusações de corrupção dirigidas às “elites”. Daí que, para manter credível e funcional o órgão de soberania que joga um papel central no equilíbrio dos poderes e é essencial para o clima de liberdade e pluralismo no país, devia-se ter um especial cuidado na postura institucional e na imagem pública do deputado.
Nesse sentido não pode haver dúvidas quanto às condições de exercício do mandato do deputado no que respeita à autonomia e dignidade do cargo. São fundamentais para garantir que a democracia é representativa e que é possível ter estabilidade de governo.
Diz-se que o mandato do deputado é duplo porque é-lhe dado pelo povo que o elege e pelo partido político que o coloca na lista de candidatos apresentada ao eleitorado. Por isso, se é certo que no parlamento ele pode pertencer a grupos parlamentares da sua cor partidária, também é verdade que pode escolher ser deputado independente. A autonomia no exercício do mandato que a dualidade de mandato lhe permite é confirmada por outros poderes próprios que a Constituição lhe confere designadamente na apresentação de propostas de lei e de projectos de revisão constitucional e na criação de comissões de inquérito.
Saber conciliar a autonomia com a disciplina e lealdade partidária, é fundamental para a estabilidade política do país. Por essa via consegue-se não só manter a configuração parlamentar saída das eleições e constituir maiorias para apoiar governos, como também assegurar o contraditório no debate parlamentar, ter vozes plurais na fiscalização do governo e propostas alternativas na formulação das leis. O exercício digno do cargo também está nesse equilíbrio, ponderação e engajamento com o interesse público que não conjuga bem com a imagem de deputados atrelados exclusivamente a interesses partidários, fungíveis nas mãos das directorias dos partidos que os procura gerir via suspensão temporária e substituição por candidatos.
É uma imagem que cada vez mais constitui uma das razões da descredibilização do parlamento que vêem o debate parlamentar a degradar-se com manifestações de partidarismo agudo, impasse na constituição dos órgãos externos e em certos casos incapacidade de formação de governos estáveis. A isso há ainda que juntar o espectáculo de órgãos legislativos a praticamente anularem-se face a derivas iliberais a favor do poder executivo, esvaziando os checks and balance do sistema político e abrindo caminho para o autoritarismo e a tirania. A cena de um senador americano a ser atirado ao chão, algemado e detido pela polícia indicia o quanto já se desequilibrou o sistema democrático na América a ponto de dirigentes congressistas, para mostrarem alinhamento com o presidente, aconselharem que ele fosse censurado pelo Senado.
Infelizmente, o facto se de saber que os múltiplos ataques aos parlamentos protagonizados pelos próprios titulares, pelos partidos, pelos médias e pelo público, irão desembocar em instituições democráticas mais frágeis e no fim da separação de poderes com crescente supremacia do poder executivo e correspondente perda de direitos dos cidadãos, não parece que até agora tenha sido impedimento para os continuar a fazer. De facto, o extremar de posições na política, o narcisismo que tem caracterizado a intervenção política de muitos e a falta de razoabilidade que tem acompanhado as reivindicações, dificultado negociações e comprometendo o processo de procura da verdade são simultaneamente a causa e efeito de uma degradação acelerada do papel dos parlamentos. É precisamente o que os modernos populistas querem para materializar a autocracia que sonham impor.
Quando se descredibiliza o parlamento, está-se a abrir caminho para a desvalorização da liberdade, do pluralismo e da procura colectiva do bem comum. Os inimigos da democracia sabem disso e associam-se a todas as iniciativas que resultam em descrédito das instituições. Não é de se juntar a eles, mesmo em momentos de indignação, de repúdio ou de pura conveniência partidária.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1229 de 18 de Junho de 2025.