A oscilação entre o antigo regime e a democracia desune o país e não deixa focar no futuro

PorA Direcção,24 jan 2025 8:37

Donald Trump tomou posse na segunda-feira, dia 20, e confirma-se que o mundo mudou. A ordem política e económica instituída na sequência da segunda guerra mundial vai dar lugar a uma outra ordem cujos contornos ainda não se vislumbram. A presidente da Comissão Europeia Ursula von der Leyen já veio dizer que a economia mundial já começou a fracturar ao longo de novas linhas e que em relação ao comércio global é de se evitar uma corrida para o fundo.

Outros observadores referindo-se à perspectiva de Trump em controlar o Canal do Panamá, de comprar a Gronelândia e fazer do Canadá o 51º Estado da União falam de uma nova era imperialista de mudança de fronteiras e de aplicação da Doutrina Monroe, não excluindo o uso da força. Também há países a se prepararem para receber os deportados expulsos no seguimento da aplicação das políticas de controlo das fronteiras e do combate aos ilegais nos EUA.

A estas medidas vão somar-se outras com impacto global nas organizações internacionais como é o caso da saída dos EUA da OMS logo no primeiro dia do mandato. O mesmo deverá acontecer com outras organizações multilaterais devido a posicionamentos do governo Trump em relação à chamada ideologia do género, às políticas de diversidade, equidade e inclusão e à luta contra as alterações climáticas. Por aí vê-se que as transformações na política global devidas ao princípio agora adoptado de “América em primeiro lugar” não irão afectar só aliados (NATO, UE, Japão, Coreia do Sul) e potenciais rivais como a China e outros dos BRICS. Também o efeito desse reposicionamento será sentido nos países dependentes da cooperação multilateral, como é o caso de Cabo Verde.

São razões mais do que urgentes para a nação cabo-verdiana se focar na compreensão dos problemas que têm limitado o seu desenvolvimento designadamente na atracção do investimento externo e expansão do turismo, mas também na diversificação da sua economia e na capacitação do seu capital humano. Tudo isso num quadro de crescimento insuficiente que o FMI, no seu mais recente documento (17 de Janeiro de 2025) projecta para uma média de 4,8% do PIB até o fim da década. E sabe-se que a falta de perspectivas tem consequências complicadas. Causa insatisfação, leva à saída de quadros qualificados e à escassez de mão-de-obra em sectores-chave e diminui a confiança nas instituições e no futuro do país.

Infelizmente, parece que não é para aí que a atenção dos actores políticos está virada, mas sim para a conquista de poder. Nesse sentido quer-se o poder não para lidar com os problemas e realizar um projecto de desenvolvimento, mas para fundamentalmente, e em termos pessoais e de grupo, ter acessos especiais, dominar o Estado e estar em posição de criar clientelas. Por isso a política fica num nível baixo, crispado e fulanizado e alheio aos principais desafios do país. Quando sinalizados os problemas, são tratados numa perspectiva populista e crescentemente anti elites que explora sentimentos e emoções, transforma adversários em inimigos e vitimiza os mais vulneráveis. A polarização, que daí resulta, garante que as grandes questões não são discutidas, que se vai insistir em fazer o mais do mesmo e que quando se verificam alternâncias no governo não se verificam mudanças significativas na condução do país. Não estranha que a desesperança tende a instalar-se.

É só com essa motivação de conquista do poder pelo poder que se pode compreender a ofensiva político-ideológica que tem fixado a atenção de todo o país, do Estado e da sociedade no último ano e que está prometida para o novo ano. Em 2024, a ofensiva funcionou sob o chapéu do centenário de Amílcar Cabral e agora, em 2025, vai ser sob a capa dos 50 anos da independência nacional. Não deve haver dúvidas que alguém espera ganhar com essas investidas ideológicas, em boa medida comparticipadas pelo Estado, que incluem entrevistas, documentários, seminários, conferências, actos públicos, publicação de livros e até incursões de doutrinação nas escolas. Poderão iludir-se outras forças políticas, mas o mais natural é que seja ganhador o partido que reivindica Amílcar Cabral como seu fundador e que tem os seus antigos dirigentes como os únicos heróis da história do país.

Se há um ganhador, entende-se que há perdedores e um deles certamente que é o sentido da unidade da Nação e a ideia da república como comunidade autónoma de cidadãos livres e iguais. Vê-se isso na chamada Semana da República que, de facto, é uma semana da discórdia. A oscilação, de que fala Tocqueville, entre o antigo regime, consubstanciado no 20 de Janeiro, dia dos heróis nacionais, e a democracia e liberdade do 13 de Janeiro, só agrava a polarização ano após ano. Apesar disso, continua-se a realizá-la nos mesmos moldes. Provavelmente há quem queira vencer renitentes pelo cansaço ou então construir uma identidade na base da rejeição do outro para melhor ganhar os embates políticos.

Curiosamente, o primeiro-ministro nas cerimónias do 20 Janeiro veio contra toda a evidência dizer que “o sentimento de tolerância relativamente a posições e leituras diversas dos fenómenos históricos de Cabo Verde ajudam a “tranquilizar” o ambiente político-social”. De facto, não há leituras diferentes quando é o próprio Estado, as suas escolas e a sua comunicação social que impõem uma versão da história praticamente igual à perfilhada pelo regime de partido único. Sacrificados no processo são o pluralismo, a liberdade de expressão e de informação e o pensamento crítico. Todos eles princípios e valores fundamentais da Constituição de 1992 que estabeleceu a dignidade humana e a vontade soberana do povo como bases da república. Que tranquilidade pode trazer a sua supressão em troca de idolatrias impróprias das democracias.

Também não tem sentido homenagear, como fez o presidente da república na celebração do Acordo de Lisboa e do Governo de Transição, um processo político, e seus dirigentes, que se serviram da divisão, da coacção e da intimidação das pessoas para garantir que o direito dos cabo-verdianos à autodeterminação não seria exercido através de um referendo. E também para se assegurar que, com a independência, conseguida após eliminação de outras forças políticas, ter-se-ia um único partido a exercer o poder por tempo indeterminado. Certamente não é uma homenagem que gera a unidade da nação, particularmente porque não acompanhada de um pedido de desculpas pelos que foram presos, maltratados e forçados a sair da sua terra. Também não é um bom momento para falar de “extremismos e criação do caos e de polarização” como faz o PR quando procura valorizar o acto de maior radicalismo que é o de um partido se proclamar força política única e com legitimidade para fazer uso de todos os meios, e, se necessário, de toda a violência, para atingir os seus objectivos.

Pelo que se vêm assistindo é claro que não é pelo reforço da unidade nacional e pela construção do consenso em questões fundamentais que se batem as forças políticas neste momento crítico do mundo e também do país. Aliás, um sinal nesse sentido seria a disponibilidade em acatar as regras do jogo democrático. E não é isso que se verifica quando, por exemplo, se nota o protagonismo do PR em promover comemorações do Estado sem o respaldo jurídico-constitucional das leis da Assembleia Nacional ou do Governo. E a verdade é que sem respeitar o princípio da separação dos poderes, os pesos e contrapesos do sistema político é a própria democracia liberal e constitucional que fica em perigo. Apelos feitos nesse contexto para a unidade nacional e para se credibilizar a democracia não soam autênticos, caem em saco roto e acabam por minar a confiança de que tanto se precisa para focar nos problemas actuais do país e enfrentar os desafios emergentes no mundo actual. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1208 de 22 de Janeiro de 2025.

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Autoria:A Direcção,24 jan 2025 8:37

Editado porAndre Amaral  em  24 jan 2025 16:20

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