Repensar a Educação - Ensino Privado: A Reinvenção Necessária

PorBrito-Semedo,9 jun 2025 10:53

Homenagem ao Professor Júlio Nascimento Teixeira “Sr. Julinho” (Santo Antão, 1927 – 2020)

O ensino privado em Cabo Verde tem sido frequentemente apresentado como um complemento essencial ao sistema público, proporcionando diversidade pedagógica e maior flexibilidade de escolha para famílias e estudantes. Para maximizar seu impacto e garantir um acesso ainda mais amplo, é fundamental investir em modelos sustentáveis de financiamento e estratégias inclusivas. Dessa forma, o ensino privado pode continuar enriquecendo o panorama educacional do país, complementando o sector público e fortalecendo a qualidade da educação em todos os níveis.

Ensino Pré-Escolar: Alternativa Necessária, Mas Segregadora

No ensino pré-escolar, o sector privado assume um papel fundamental, sendo responsável por uma parte significativa da oferta educativa, o que, mais do que uma escolha consciente, resulta em parte da incapacidade do Estado em universalizar o acesso à educação infantil. As instituições privadas acabam por atender maioritariamente crianças de famílias com maior poder económico, deixando as camadas mais desfavorecidas dependentes de vagas limitadas nas infraestruturas públicas ou de iniciativas comunitárias de qualidade variável. A verdade é que a elevada dependência de propinas no ensino pré-escolar restringe o acesso a muitas crianças, agravando desigualdades logo na primeira etapa da educação, e a ausência de uma política pública robusta para subsidiar ou regular eficazmente esse sector reforça essa realidade, tornando a educação infantil um privilégio em vez de um direito garantido para todos.

Ensino Básico: Um Papel Secundário e um Impacto Limitado

No ensino básico, o domínio do sector público é evidente, abrangendo cerca de 98% das escolas. A reduzida presença do ensino privado nesta etapa deve-se, em grande medida, ao facto de o Estado garantir a sua gratuidade e universalização.

As poucas escolas privadas existentes nesta fase são, muitas vezes, procuradas por famílias que desejam um modelo pedagógico diferenciado ou condições de ensino consideradas superiores, como turmas reduzidas e maior investimento em recursos didáticos. Contudo, a existência de um ensino básico privado não representa uma solução para os desafios educativos do país, mas sim um reflexo das desigualdades socio-económicas, pois apenas uma pequena parcela da população tem acesso a essas opções.

A existência de um sistema público de ensino gratuito e acessível é um avanço civilizacional, mas a sua qualidade é frequentemente questionada. Neste sentido, a presença do ensino privado deveria servir como um factor de melhoria da qualidade global da educação, estimulando concorrência saudável e inovação pedagógica. No entanto, em Cabo Verde, essa dinâmica não se verifica de forma consistente, pois o ensino público continua a enfrentar desafios estruturais sem que o ensino privado consiga influenciar positivamente o sistema como um todo.

Ensino Secundário: Uma Resposta à Falha do Público?

O ensino secundário apresenta um maior equilíbrio entre as ofertas pública e privada, sendo que algumas famílias recorrem ao sector privado por acreditarem que proporciona uma melhor preparação para o ensino superior. No entanto, tal como no ensino básico, esta escolha não é acessível à maior parte da população, tornando-se mais uma barreira à igualdade de oportunidades.

Além disso, a dualidade entre vias gerais e técnicas no ensino secundário deveria ser uma oportunidade para que o sector privado desempenhasse um papel mais relevante na oferta de formação profissionalizante. Porém, a ausência de incentivos e de um planeamento estratégico impede que o ensino privado contribua de forma significativa para o fortalecimento das vias técnicas, que continuam a ser vistas como alternativas de menor prestígio e, muitas vezes, desvalorizadas pelo próprio mercado de trabalho.

Ensino Superior: Domínio do Privado e Riscos de Mercantilização

No ensino superior, ainda mais do que no pré-escolar, o sector privado tem grande expressão, acolhendo aproximadamente 52,9% dos estudantes matriculados. Esta predominância deve-se, em grande parte, ao facto de a oferta pública ser limitada e incapaz de absorver toda a procura. No entanto, a forte dependência das propinas coloca em risco a estabilidade das Instituições de Ensino Superior (IES) privadas, tornando a sua sustentabilidade financeira um desafio constante.

A falta de um modelo de financiamento misto e a ausência de apoios estatais directos e de participação do sector empresarial fazem com que muitas universidades privadas enfrentem dificuldades para investir na modernização das infraestruturas, na qualificação do corpo docente e na diversificação da oferta formativa. Em alguns casos, a lógica de mercado acaba por se sobrepor à qualidade académica, criando um ensino superior privado que, em vez de ser uma alternativa válida e competitiva, se torna apenas um meio de gerar diplomas sem garantir o desenvolvimento de competências adequadas às exigências do mercado de trabalho.

A necessidade de regulação rigorosa por parte da Agência de Regulação do Ensino Superior (ARES) é essencial para evitar que o ensino superior privado se transforme num sector descontrolado, onde a procura do lucro suplanta a missão educativa. Embora algumas IES privadas tenham investido na excelência académica e na pesquisa científica, a falta de incentivos públicos para apoiar essas iniciativas reduz o impacto positivo que poderiam ter na qualificação da força de trabalho cabo-verdiana.

Conclusão: Ensino Privado – Complemento ou Excludente?

O ensino privado em Cabo Verde, em vez de se posicionar como um verdadeiro complemento ao sistema público, tem reforçado desigualdades e demonstrado fragilidades estruturais. Se, por um lado, responde a lacunas do ensino estatal, por outro, fá-lo de forma restritiva, com qualidade sofrível, e apenas acessível a uma elite económica.

A dependência exclusiva das propinas, a falta de regulamentação eficaz e a ausência de um modelo de financiamento sustentável para a ciência e a tecnologia tornam a expansão do ensino privado um processo instável. Para que este sector tenha um papel mais inclusivo e positivo, é fundamental que as políticas públicas promovam um equilíbrio entre qualidade, acessibilidade e viabilidade financeira.

Mais do que uma simples dicotomia entre ensino público e privado, Cabo Verde necessita de uma visão integrada da educação, onde ambos os sectores possam coexistir de forma complementar e vantajosa para a sociedade. Sem essa abordagem, o ensino privado continuará a ser um privilégio acessível a poucos – um privilégio fragilizado pela percepção generalizada de que os diplomas das universidades privadas carecem de qualidade, levando à sua desvalorização por parte dos empregadores. Ao mesmo tempo, o ensino público enfrentará limitações que comprometem o progresso e o desenvolvimento do país.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1227 de 4 de Junho de 2025.

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Autoria:Brito-Semedo,9 jun 2025 10:53

Editado porAndre Amaral  em  9 jun 2025 19:20

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