O 13 de Outubro reforça a união para o país vencer

PorA Direcção,17 out 2025 8:16

​O 13 de Outubro é mais uma data que ficará inscrito na memória dos cabo-verdianos. Depois de uma sucessão brilhante de actuação da selecção nacional de futebol, a começar pela derrota infligida à equipa dos Camarões, seguida da extraordinária recuperação no jogo frente à Líbia que garantiu o empate e finalmente da retumbante vitória sobre Eswatini, consegui-se o inimaginável para um pequeno país insular: a participação no Campeonato Mundial de Futebol de 2026.

A alegria dos cabo-verdianos não podia ser maior, as demonstrações da euforia que tomou conta de toda a gente verificaram-se em todos os pontos do país e nas comunidades no exterior.

Foi um momento extraordinário em que através do simbolismo da bandeira nacional, nas camisolas, nas mãos de adultos e crianças e nos carros em circulação, a Nação se reviu, toda ela, unida e com a sua autoestima reforçada. Passou a sentir com mais certeza de que, mesmo com parcos recursos e vulnerabilidades múltiplas e a exemplo da sua selecção de futebol, está ao seu alcance construir um futuro de sucesso e prosperidade. São momentos desses que relembram ao país a importância fulcral de se sentir parte de uma comunidade nacional capaz de potenciar a diversidade de experiência das suas gentes nas ilhas e na emigração e de mobilizar a enorme força afectiva que as liga aos “dez grãozinhos de terra espalhados no meio do mar”. Essa lembrança, pela intensidade dos sentimentos de pertença à comunidade que a suscitou, vem no tempo certo.

Na conjuntura actual de grandes incertezas, um factor de crise geral são as forças centrífugas, constituídas por extremismos diversos altamente polarizantes e individualismos exacerbados potenciados pelas redes sociais, dirigidas para a desunião das comunidades nacionais. Sem forças centrípetas a pressionar em sentido contrário para assegurar o centro e manter o equilíbrio, poderá verificar-se a instabilidade na sociedade, a perda de foco individual e a desesperança geral. No dia 13 de Outubro, Cabo Verde demonstrou que os ingredientes estão todos lá para mobilizar as forças que ajudam a reequilibrar o país, que permitem a continuação da busca pelo bem comum e renovam a satisfação de “ter nascido cabo-verdiano” cantada pelo poeta.

Nos últimos anos vem-se assistindo nas democracias à polarização que impede o diálogo baseada numa realidade partilhada, ancorada nos factos e que busca a verdade em aproximações sucessivas. Sem diálogo, os extremos retroalimentam-se, descredibilizam as instituições e desacreditam a democracia. E sem política democrática a sociedade fica impossibilitada de identificar, equacionar e encontrar soluções para os problemas.

O mais estranho em tudo isso é a disponibilidade, em vários momentos, dos partidos tradicionais e do centro, de titulares dos órgãos de soberania e de sectores da sociedade como as universidades e os média em contribuir sem cuidado para a fragilização da ordem sociopolítica existente. Uns fazem isso por entretenimento ou à procura de audiência, outros por promoção pessoal e outros ainda apostando no processo caótico posto em movimento pelas suas próprias acções. Acrescenta-se a isso a tendência para os actores políticos exacerbarem nas suas performances, ultrapassando a fronteira das suas competências, e com isso explorar o culto dos “enfants terribles” ou de líderes extravagantes que cativam pelo entretenimento e pela impunidade de que parecem beneficiar.

Um sintoma do que vem acontecendo em países democráticos é um certo desorientamento da sociedade civil face aos desafios do presente e futuro que em Cabo Verde no último fim-de-semana transpareceu nas manifestações em algumas ilhas. Com algumas centenas de pessoas percebe-se a relutância em participar para não ser rotulado em termos partidários. Também se sente a dificuldade em pôr em devida perspectiva os problemas que sucessivamente parecem afectar sectores-chave e a pouca esperança depositada nos partidos existentes, não obstante ver-se a solução num terceiro partido para romper com o bipartidarismo.

Realmente o país, apesar da sua estabilidade e democracia, tem problemas, uns derivados da falta de eficiência na utilização de recursos e outros gerados pelo próprio crescimento económico de mais de 5% em média, sem que visões plurais do que poderá ser a sua melhor via para florescer no actual mundo de incertezas sejam articuladas. E a proximidade das eleições legislativas não é tranquilizador. A alternativa ao partido no poder, com o lastro do desgaste de 10 anos de governação, é a oposição recentemente capturada pela política populista que cinco anos depois ainda não convenceu na gestão municipal da capital. Um cenário dessa natureza deveria levar os principais actores políticos a contribuírem para aprofundar a união nacional e aumentar a confiança, com adesão efectiva às regras do jogo democrático, disponibilidade para encontrar soluções compromissórias e abertura para incentivar o debate mais aberto, livre e crítico. Infelizmente não é o que acontece.

Parece mais forte continuar a fazer o mais do mesmo. Um exemplo é depois de o governo ter retirado um manual escolar sobre o crioulo, após receber um parecer do Ministério Público para se proceder à “supressão da norma ortográfica constante do manual por não ter sido objecto de aprovação por diploma da Assembleia Nacional”, o ministério ter programado para o Dia Nacional da Cultura uma formação sobre as bases de escrita do crioulo através do ALUPEC. Ora, o ALUPEC também não foi aprovado pelo parlamento, mas sim por um decreto-lei do governo em 2009. Conhecendo as fortes controvérsias à volta da escrita do crioulo cujo último episódio levou ao parecer da PGR, ignorar regras e procedimentos não é a via para ultrapassar questões fracturantes da unidade nacional.

No mesmo sentido vai o presidente da república, num discurso recente na Universidade de Santiago, ao considerá-las “polémicas” que devem “ser ultrapassadas com consenso científico”. Aliás, proclama logo a seguir que “a comunidade científica é unânime em reconhecer que o ensino da Língua Cabo-verdiana (…) facilita a aprendizagem do português e de outras línguas”. Unanimidade, porém, não é algo que se espera das comunidades científicas nem em campos bem consolidados como o da física quântica ou das vacinas quanto mais da linguística e das ciências cognitivas. E, de facto, não se promove pensamento crítico, debate aberto e espírito inovador nas universidades com definição de linhas de orientação para pesquisa futura e criação de um “movimento” para escrever a história, a partir de uma posição de autoridade em modo de partilha de convicções.

Também não se garante a unidade do Estado quando, como aconteceu no dia 9 de Outubro, o parlamento resolveu autoflagelar-se com a questão da eleição dos órgãos externos sabendo que resultam do processo político negocial entre os partidos cujos votos somam uma maioria qualificada. Atirar culpas uns aos outros faz parte do jogo político e por isso e pelos seus compromissos ou bloqueios são responsáveis perante os eleitores. O que não devem fazer é criar vazios ou zonas cinzentas na autoridade do Estado ao considerar caducos ou sem validade os cargos porque o PR os assim quis rotular, não seguindo o princípio constitucional de prorrogação do mandato dos cargos público até à substituição dos titulares. É bom lembrar que, nas democracias com sufrágio directo e periódico, são os mandatos eleitorais do presidente da república, dos deputados e dos eleitos municipais que não podem ser prolongados ou encurtados, salvo nos casos constitucionalmente admitidos.

Nem as Forças Armadas, sector sempre sensível nas democracias, ficaram intocadas. Não é à toa que a Lei de Defesa Nacional ( Lei 62/IV/92) ao definir a função do comandante supremo das forças armadas, estabelece que o PR deve assegurar fidelidade das FA à Constituição e às instituições do Estado e aconselhar, em privado, o governo acerca da política de defesa e das FA. Pela primeira vez questiona-se se “nomear, sob proposta do governo” o chefe de estado maior, como estabelece a Constituição, significa realmente escolher e nomear. Há quem se indague se a indicação não deveria vir do interior da corporação. Tais burburinhos não contribuem para a estabilidade da democracia que tem na sua base a subordinação das forças militares ao poder civil. A declaração do PR, na radio nacional, para se evitar a suposta governamentalização das FA prima pelo descuido por eventual ressonância com resquícios de cultura corporativa dos tempos em que a instituição, como braço armado do partido, estava acima do Estado, algo que o PR não pode ignorar.

A democracia, sendo um sistema político na base de regras e procedimentos, tem a vantagem de permitir prosperar em liberdade e de abrir portas para a todos procurarem a felicidade. Essa é uma verdade que a vitória celebrada no 13 de Outubro deve ajudar a consolidar. De facto, para um país como Cabo Verde realizar o feito de ir para o mundial de futebol só foi possível porque todo o sistema de qualificação se rege por normas conhecidas e que por isso há confiança de que com esforço e foco o sucesso está ao alcance de todos. Manter a confiança na democracia, assegurando o cumprimento do jogo democrático, é a via, não obstante os sobressaltos, para o sucesso que todos desejam e merecem.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1246 de 15 de Outubro de 2025.

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Autoria:A Direcção,17 out 2025 8:16

Editado porAndre Amaral  em  18 out 2025 5:19

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