Mas claramente que não se faz o suficiente para evitar a descredibilização das instituições e a degradação do discurso político, nem se procura refrear o excessivo protagonismo dos políticos e combater a apatia da sociedade civil e os efeitos corrosivos das redes sociais. Pelo contrário, no que parece configurar um exercício de hipocrisia política, percebe-se que de vários sectores, a par das lamentações públicas, há uma intenção ou uma aposta em ganhar com os sobressaltos sucessivos criados, com a imagem do caos projectada e com a desesperança alimentada.
O resultado, como se tem observado em vários países, é o aprofundamento da crise com perdas para os partidos tradicionais e ganhos crescentes para os extremistas, que actualmente são maioritariamente da extrema-direita, mas em alguns casos específicos são de sectores radicais da esquerda. Ou seja, só se perde fazendo uso de tácticas políticas que pressupõem algum abandono dos princípios e valores democráticos. Esse facto, porém, não tem impedido muitos partidos de continuar a fazer o mesmo, diminuindo o fosso anterior entre eles e os radicais e em alguns casos até abrindo-lhes o caminho para o governo. Ainda bem que, como se comprovou nas eleições nos Países Baixos na semana passada, o eleitorado pode sempre inverter a situação particularmente quando confrontado com a incompetência dos populistas na governação.
Cabo Verde como qualquer democracia moderna vem dando sinais de crise no processo democrático que não destoam muito do que se verifica noutros países democráticos. Há alguma fragilização das instituições, tensões entre órgãos de soberania e falhas no diálogo interpartidário criam bloqueios e os municípios parecem campos de batalha para confrontação política partidária com o governo. Os partidos, entretanto, focados no poder e cada vez mais dependentes dos lideres, falham em produzir dinâmica interna que permita produzir discurso político elevado e pedagógico e em propor soluções inovadoras para o país. Na relação externa com a sociedade não se mostram capazes de estabelecer uma ponte para ajudar a ultrapassar a crise de representatividade e a potenciar a energia e a criatividade existentes. Sem um impulso renovador que poderia forçar um novo olhar sobre os problemas existentes, a tendência é para manter o status quo, mesmo que venha a verificar-se alternância na governação.
Por isso é que com as forças políticas já a apressar o passo para as legislativas no segundo trimestre do próximo ano é grande a tentação de se cair no “vale tudo” para conquistar o poder. Não há motivação para se ter bem presente o estádio a que Cabo Verde já atingiu e propor soluções alternativas para os problemas novos e para os que têm arrastado durante décadas, de forma a aumentar o potencial de crescimento e lançar o país para um outro patamar de desenvolvimento. A estratégia, pelo contrário, é de procurar aproveitar quaisquer incidentes, insuficiências ou falhas na prestação de serviços ou ainda conflitos laborais para demonstrar que se está a descambar para a ingovernabilidade. Também inclui a adopção de uma postura de negacionismo que põe em causa indicadores macroenómicos, estatísticas oficiais e avaliações de performance em vários domínios (democracia, liberdade económica, liberdade de imprensa, desenvolvimento humano) apresentadas por organizações internacionais.
Uma outra vertente nessa estratégia que ajuda a consolidar esse negacionaismo é pôr em ênfase no quão distante se está de cumprir em “absoluto” com certos direitos como o direito à saúde, à educação e à habitação para se minimizar os avanços já conseguidos. Omite-se que são direitos que para seu exercício implicam, designadamente recursos, tempo para criação de estruturas e formação especializada e ainda vontade política na definição das prioridades de investimento estatal, considerando que as receitas do Estado são sempre escassas. Assim, por um lado, alimenta-se a insatisfação e a indignação pelo não exercício pleno de direitos. Por outro, dificulta-se a possibilidade de um debate aberto e construtivo de como se aproximar do ideal, em termos de qualidade e abrangência na concretização desses direitos, a partir da base real proporcionada pela capacidade de produção de riqueza do país.
Não é estranho a esses argumentos a velha contenda de uma certa esquerda com a democracia liberal por considerar imprescindível a garantia dos direitos civis e políticos para a criação da base de prosperidade necessária ao exercício dos direitos sociais e económicos. Mesmo depois das experiências comunistas que falharam em garantir prosperidade sem liberdade, com custos enormes em vidas perdidas, pobreza e atraso, ainda se procura recuperar os velhos argumentos de uma esquerda que se considera moralmente superior. Tudo para que em nome de uma pretensa luta contra a desigualdade social de pôr em causa a necessidade de se ter uma ordem económica na base da liberdade que é indispensável para o crescimento económico e o desenvolvimento sustentável.
Com uma abordagem cínica em relação à democracia e ao exercício dos direitos quer-se trazer de volta a velha crença na distribuição da riqueza sem uma base sustentável da sua criação, quando a verdade é outra, como já foi comprovada em outros países e em Cabo Verde desde 1991. O que importa fazer agora é aumentar a eficiência do sistema económico, promover o conhecimento e fazer as reformas que irão permitir aumentar o potencial da economia. Para isso é fundamental que haja mais democracia, e não menos. Não é procurando deitar tudo abaixo, negar os avanços feitos e tentar recuperar abordagens antigas, que falharam redondamente, que se vai dar o salto em frente para levar a prosperidade a todos.
Como se vai fazer e quem vai fazer e com que recursos isso deverá ser decidido não por métodos revolucionários de paralisar sectores, de criar poderes paralelos ou de instigar paixões, medos e ressentimos, mas por persuasão que é a via da democracia. De facto, como o autor americano David Brooks, “as instituições democráticas são criadas para aumentar a deliberação, a conversação e a persuasão na sociedade. As eleições decidem quem foi mais eficaz em persuadir os votantes”. No processo de persuasão na base do respeito pelas regras do jogo democrático e servindo-se dos métodos da razão e aderindo aos factos deve-se deixar para trás as memórias de Luta na perspectiva de guerrilha política, de emboscar adversários e de criar realidades alternativas pela via da propaganda.
Pela persuasão o jogo é de soma positiva, enquanto na Luta é de soma zero e só resulta em estagnação e pobreza, como a história já bem demonstrou. Afinal os dez grãozinhos de terra “el é di nós, é ca tomad na guerra” como canta o saudoso Jorge Cornetim.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1249 de 05 de Novembro de 2025.
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