O que é que a motivou a votar favoravelmente esta proposta do MpD quando o PAICV tinha também uma proposta sobre a regionalização?
Há aspectos processuais que as pessoas desconhecem. A partir do momento que o PAICV chumbasse a proposta apresentada pelo governo na generalidade, automaticamente não se poderia apresentar a proposta senão daqui a um ano - é o período de carência - não se passaria à discussão na especialidade e pior que tudo o processo morria, porque se o PAICV chumba a proposta do governo, que tem a maioria parlamentar suportada no grupo parlamentar do MpD, como é que poderia querer que o MpD aprovasse a sua proposta...
Mas sendo chumbada a proposta do governo, obrigaria a que a proposta do PAICV fosse discutida...
Não. Se as pessoas se derem ao trabalho de lerem as propostas de regionalização em si: número de regiões, eleitos municipais, eleitos regionais, a organização regional que está nas duas propostas... há nuances muito ligeiras, nada de essencial ou de conteúdo. O que há de diferente não está na regionalização em si. O que há de diferente é que o PAICV propõe a ampla reforma do Estado, que também não diz muito bem o que é, se não em dois ou três aspectos: as listas uninominais para as próximas eleições, a diminuição da estrutura governamental central e a diminuição do número de deputados. Mas isto, a bem da verdade, não é tout court uma reforma do Estado. O MpD na sua proposta também diz que haverá uma reforma do Estado. No meu entender, se o PAICV de facto quer a regionalização, e quer, deveria passar esta proposta na generalidade e iríamos pressionar, agora sim, o governo, na especialidade e introduzir as pequenas variáveis que há e até introduzir aspectos da reforma do Estado. Porquê? Porque o governo pode neste momento não negociar connosco e nós vamos chumbar a proposta na especialidade e não haverá regionalização e será responsabilidade do governo. Quanto a mim faltou, no grupo parlamentar, ter-se a devida calma – que não houve, foi uma discussão péssima e a querer-se impor sentidos de voto – para se analisar todas essas variáveis do ponto de vista político e estratégico. Neste momento, contrariamente ao que as pessoas dizem, é a única chance que temos de pressionar o governo. Porque se não a proposta chumba.
Depois do que aconteceu, depois desta divisão de votos, ainda há união dentro da bancada para fazer essa pressão de que fala?
O PAICV não tem de estar com a desejada coesão interna para pressionar o governo. Os deputados individualmente podem fazê-lo. Os 29 deputados querendo podem pressionar, porque as pessoas têm oportunidade de intervir em plenária, têm oportunidade de intervir na Comissão Especializada, sendo ou não membro da comissão pode-se participar porque o governo permite, e na discussão as pessoas podem intervir e pressionar o governo para aceitar ou não. Quanto a mim, foi isto que efectivamente faltou e a Direcção da Bancada sabia perfeitamente que havia quatro sentidos de voto. Nós antes de retormarmos os trabalhos no período da tarde tivemos uma reunião no 5º piso [da Assembleia Nacional] e foi uma discussão horrível que não terminou. A Direcção da Bancada sabia que não havia unanimidade. O que aconteceu foi que quiseram impor um sentido. A bem da verdade, muitos dos que votaram abstenção não quiseram romper com a dita disciplina partidária e votaram contrariados, votaram contra a consciência. E isso é que eu não quis fazer, não quis votar contra a minha consciência, não quis compactuar com um processo mal discutido do ponto de vista político no Grupo Parlamentar do PAICV e não quis compactuar contra a vontade de todas as Assembleias Municipais do país que votaram favoravelmente à criação das regiões. As Assembleias não votaram propriamente a favor da proposta A ou B. Votaram a favor da criação das regiões administrativas, o que é bem diferente. Chumbando esta proposta já não haveria regiões administrativas, pelo menos, durante um ano. Consequentemente iria bloquear todo o processo para as próximas eleições.
E acha que esta questão da regionalização é vital para Cabo Verde?
Olhe, se as pessoas forem aos registos públicos que eu fiz sobre esta matéria, eu sempre defendi que o que as ilhas precisavam era de maior poder de decisão local. E isso passaria primeiro e necessariamente por uma efectiva descentralização. Essa foi sempre a minha defesa. Descentralização essa que poderia ou não culminar a médio-longo prazo na regionalização. Teríamos tido tempo para discutir o melhor modelo de regionalização, teríamos tido tempo para, feita a descentralização efectiva, avaliá-la e saber que rumos tomar. Outra questão é se eu defendo este modelo de regionalização que é o mesmo para o PAICV e o MpD. É o mesmo. Não há diferença no modelo de regionalização do PAICV e do MpD. Será que é o melhor?
Cabo Verde já criou os municípios, que muitos dizem ser em números exagerado, justifica-se estar a criar-se mais uma estrutura, neste caso supra municipal, que vai aumentar o peso do Estado?
Veja, também não é assim tão linear. Haverá mais estruturas, sim, mas haverá transferência de competências, de recursos humanos e financeiros, do poder central para o suposto regional, o que de alguma forma não trará mais despesas. Mas é evidente que a regionalização terá despesas. Dizer que a regionalização não terá despesas é um argumento falacioso que nem ao ceguinho da esquina convence. Agora a questão é: independentemente de tudo isso, se houver seriedade no modelo de regionalização que se quer implementar, este modelo trará, a médio prazo, ganhos de desenvolvimento para a região, num primeiro momento, que terá uma repercussão directa no desenvolvimento do país. Mas é preciso que haja seriedade e que ela não seja entendida apenas como mais uma estrutura. Porque esta discussão de haver ou não regionalização nasceu torta. A criação dos municípios, na altura, também nasceu torta. Diz-se que os políticos impõem à sociedade, mas muitas vezes a sociedade impõe aos políticos determinadas coisas. E a criação desses novos municípios, na altura, também nasceu torta, foram promessas de campanha, compromissos assumidos no final dos mandatos que depois os políticos não se puderam desvincular. A regionalização poderia não acontecer neste momento, tão apressadamente, em cima da hora e mal discutida. Agora, quem é que tem coragem para dizer isso à sociedade neste momento. E repare, não foi à toa, no último mandato, apesar do PAICV no programa 2011-2016 já defender a regionalização, que nunca a assumiu frontal e abertamente a ponto de começar a implementá-la, porque havia muito que discutir. Ouviram-se vários especialistas, houve muitas opiniões a favor e outras contra. Portanto, é preciso ter alguma cautela em toda esta dimensão da regionalização. A regionalização, por si só, não trará aquilo que as pessoas querem, mas uma regionalização implementada de forma racional e gradual irá trazer benefícios ao país sim. Se me perguntar se é uma prioridade para o desenvolvimento de Cabo Verde, dir-lhe-ei que não. Não conta das principais preocupações dos cabo-verdianos. Mas isto é público, as sondagens e inquéritos demonstram-no.
Mesmo não sendo uma prioridade, não avançar com a regionalização é um luxo a que o governo não se pode dar?
Pois. Quando eu digo que não é uma das prioridades, o último inquérito feito mostrava que a sociedade cabo-verdiana está praticamente dividida ao meio. Isto assemelha-se, apenas por analogia e com as devidas diferenças, à questão do crioulo como lingua oficial, em que quando se quis impor de alguma forma o crioulo vs alupek, a sociedade cabo-verdiana estava praticamente dividida ao meio. Uns a achar que sim que se devia avançar rapidamente e outros a acharem que não. A questão da regionalização tem algumas similitudes. O último inquérito feito mostra que a sociedade cabo-verdiana está dividida ao meio no que concerne à regionalização no global. Mas quando a pergunta é sobre quais as prioridades enquanto cabo-verdiano, a regionalização não aparece nas cinco primeiras prioridades.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 883 de 31 de Outubro de 2018.