Manuel Alves, antigo Comandante da Guarda Fiscal: “A Polícia Nacional é uma instituição com muitos problemas”

PorAndre Amaral,28 abr 2019 8:51

Manuel Alves, antigo Comandante da Guarda Fiscal
Manuel Alves, antigo Comandante da Guarda Fiscal

​Intendente e antigo Comandante da Guarda Fiscal, Manuel Alves, tem uma visão crítica sobre a situação actual vivida pela Polícia Nacional. É “uma instituição com muitos problemas”, garante, e, acusa, tanto o ministro da Administração Interna como a Direcção Nacional de não terem sido capazes de encontrar o melhor rumo para a corporação. “Nunca, na polícia, houve tanto investimento assim como nunca houve tanto descontentamento”, lamenta nesta entrevista realizada alguns dias após mais uma morte de um detido numa esquadra da Polícia Nacional e posterior suicídio de um agente.

A situação actual da Polícia Nacional tem levantado algumas questões. O que se passa?

De facto constata-se que tem havido algumas dificuldades no seio da PN. Tudo poderá estar relacionado com problemas que têm origem na gestão organizacional. A polícia faz parte da sociedade, uma sociedade cada vez mais exigente, mais complexa e a PN não se tem adaptado a estas novas situações, porque a própria polícia se depara com as suas próprias dificuldades internas. Umas que são visíveis e outras não.

Como assim?

Há coisas que não vêm cá para fora. Que só se sabem quando há problemas, que pela sua magnitude, acabam por vir a público. Mas é uma instituição com muitos problemas.

Dizia que a PN tem vários problemas de gestão. É uma crítica à gestão feita pelo actual ministro?

Não digo uma critica ao ministro, porque se fizer isso posso ser mal interpretado. Mas nota-se que há uma degradação quando se esperava uma melhoria. Esperava-se melhoria, porque houve um governo de 15 anos e isso acaba por ter desgastes. Certamente que, como em toda a sociedade, na PN também se apostou na mudança de paradigma. Essa mudança teria de trazer ganhos, sobretudo na sociedade, mas isso só seria possível se dentro da polícia também houvesse ganhos. Quando digo ganhos estou a referir-me, sobretudo, ao ponto de vista relacional. O relacionamento interno da Polícia degradou-se profundamente e às vezes o que se vê é apenas a ponta do iceberg. Nota-se que não se tem dado a devida importância e dou-lhe um exemplo: em Novembro de 2017 festejou-se o Dia da Polícia com pompa e circunstância. O acto foi presidido pelo Primeiro-ministro, a PN foi condecorada, alguns elementos foram condecorados, houve promoções e na sequência de um aumento salarial, um mês depois, tudo acabou numa greve. A greve é a expressão máxima do descontentamento de uma classe. Foi um acto massivo e isso quer dizer que há um mal estar que resultou nessa greve.

Ou seja, os problemas dentro da PN não são apenas salariais.

Não são. Digo-lhe, em 39 anos de vivência policial nunca, na polícia, houve tanto investimento assim como nunca houve tanto descontentamento. É uma contradição enorme.

Mas porque é que há esse descontentamento?

O principal activo da polícia é o seu capital humano e o actual ministro da Administração Interna ignora o capital humano da polícia. Ele quando entrou na senda da segurança interna encontrou, na polícia, pessoas com estrada feita que ele não poderia nunca ignorar. O país, enquanto Estado, tem quarenta e poucos anos. O Estado investiu muito na formação da sua polícia. O salário é parte mas não é o único factor de motivação. Ele gaba-se muito de que as coisas estão melhores. Só aparentemente. Basta ver pelos acontecimentos, tudo coisas em que a responsabilidade maior é da cúpula da polícia. Eles às vezes interpretam mal quando algumas pessoas entre nós falam da forma como eu falo. Mas a responsabilidade maior de tudo o que tem acontecido na Polícia Nacional é da responsabilidade do ministro da Administração Interna e dos seus colaboradores mais próximos porque procuraram implementar na polícia um modelo de liderança que já está ultrapassado. Pelo menos na sociedade cabo-verdiana. Hoje em dia não se consegue gerir nada com base na liderança totalitária. Há que se considerar as pessoas numa perspectiva de melhoria continua. Mas, em vez disso, as coisas tendem a degradar-se.

Mas nunca se investiu tanto na Polícia Nacional como hoje. Melhores salário, mais meios materiais, melhores meios de transporte...

Por isso, o desempenho teria de ser outro. O ambiente teria de ser outro e não o que temos. Há oficiais superiores na prateleira, oficiais que recebem os seus salários e fazem o mínimo. Para além desses encontra oficiais subalternos que também estão a fazer residualmente alguma coisa. Há uma gestão deficiente, porque faz-se o aumento do efectivo da polícia e aumenta-se a burocracia e não se traz melhoria naquilo que é essencial que é a segurança pública, a segurança das pessoas e dos seus bens para que as pessoas se sintam mais livres na sua circulação. Porquê? Porque o ambiente não permite e eu estou em crer que continuando esta tendência poderá ser a primeira vez que um governo estará a fazer apenas um mandato em Cabo Verde. Porque eu sei que na polícia mais de metade dos efectivos que tinham votado para a mudança não vão votar na mesma direcção por causa desse ministro que ali está.

E como vê o papel do sindicato SINAPOL nisto tudo?

Um sindicato, num Estado de Direito Democrático, deve ser visto como uma entidade de bem, um parceiro. Há que se saber lidar com essa realidade. Não havendo essa capacidade de comunicar, então, vai encontrar problemas. O problema sempre existiu, só que hoje, com a existência do sindicato, a capacidade de liderança teria de ser melhor. Teria de haver mais diálogo, mais persuasão. Essa greve foi um acto que foi precipitado pelo comportamento do ministro. Se ele tivesse a capacidade de dialogar, de persuadir – quando digo ele digo também os seus próximos. Mas eles mostraram uma deficiência de liderança de bradar aos céus. A conjuntura era desfavorável para qualquer tipo de greve mormente na polícia. A seca é algo que mobiliza qualquer cabo-verdiano de bom senso. Bastava dizer que a situação do país era esta e que se ia agendar para outra oportunidade que poderia ser dali a seis meses, um ano. Agora tentar impor não é possível e as pessoas que falam como eu falo, são pessoas mal vistas, são pessoas para liquidar. E na polícia não são muitos. Há muitos descontentes mas os que se exprimem são poucos. Veja o que se passou com o chefe Dias que esteve no Sal a trabalhar. Perante situações de stress ele teve uma conversa com um jornalista e, no fim, deu o resultado que deu. Ele foi escorraçado da forma como foi por uma coisa que seria resolvida chamando-o à Praia e procurando saber o que é que ele queria dizer. Mas não. Encostaram o homem à parede, julgamento público, depois um processo disciplinar cujo desfecho com vinte dias de suspensão com base num processo injusto cheio de lacunas. Quando falo em degradação, ela vê-se pelos acontecimentos. Nunca na polícia houve tantos processos disciplinares como neste pouco tempo. Isto significa que para a aplicação de políticas públicas de segurança, não é necessário um polícia. Talvez um político seja melhor. Porque o polícia vai ali aplicar todos os seus vícios, todos os seus defeitos policiais. Excessos. Mais de 75% dos polícias participaram naquela greve, excepto os oficiais, e depois de forma selectiva levantam-se processos disciplinares a alguns. Um processo extremamente mal elaborado, porque instruíram um processo a 200 pessoas, de forma colectiva, que não dá a mínima garantia de direitos. E depois, também de forma selectiva, aplicam-se sanções. Sanções tangíveis e não tangíveis. Tangíveis como suspensões e não tangíveis que têm a ver com promoções, colocações... Ele fez isso de forma selectiva. E aquele que ficou mais penalizado é o presidente do sindicato. O ministro da Administração Interna, Paulo Rocha, não poderá nunca estar em paz com o pessoal da polícia sabendo do acto que praticou relativamente ao líder do sindicato. A ministra Marisa Morais também teve uma ameaça de greve, mas teve a capacidade de dialogar, de persuadir. Os polícias fizeram a manifestação, naquela altura, mas a situação não chegou a este estado.

Têm sido muitos os casos de alegada violência nas esquadras. Na sua opinião o que é que se está a passar? Há falta de formação dos agentes? Falta de vocação?

O problema não é de formação. A Polícia Nacional tem problemas na sua gestão. A gestão é aplicação de princípios. Quando digo isso refiro-me ao planeamento, organização, direcção e controlo. Essas funções de gestão terão de funcionar. A polícia tem estado sob stress. A instituição tem estado sob stress. Há problemas sociais aqui [em Cabo Verde] que são de bradar aos céus que acabam por desembocar na criminalidade e a polícia tem estado a trabalhar sob pressão. O Director Nacional, que tem pouca capacidade de liderar, é pressionado pelo ministro. Ele, por sua vez, pressiona o comandante regional, que pressiona os chefes e os agentes que acabam por trabalhar numa situação caótica. O agente trabalha sob stress, com excesso de horas de trabalho, operações mal planificadas. As coisas devem ser planeadas, organizadas. O problema deve ser identificado, analisado e depois traçam-se medidas mas de forma pensada. Faz sentido colocar agentes nas passadeiras? Em Cabo Verde inventaram essa. Colocar os agentes nas passadeiras, sobrecarregá-los, e mais tarde esses agentes são vistos noutros trabalhos. Não há um foco. Se se fizer uma análise aprofundada vê-se que só cerca de 20% dos polícias andam a combater a criminalidade. Temos uma polícia altamente burocratizada. O cidadão comum não tem noção... A salvação, para o ministro, aparentemente é o sistema de video-vigilância que se instalou aqui na Praia, que é um investimento enorme e que poderia estar a resultar melhor. Desde que fosse melhor trabalhado. Um sistema deste tipo é para trabalhar de forma integrada e não está. Quando digo integrada é na perspectiva de ter uma função forte na repressão da criminalidade através da investigação criminal, uma função forte na perspectiva da prevenção e também na dissuasão. E eu duvido que ele esteja a ter essa função tripartida, porque se estivesse teria de estar partilhada. a Polícia Judiciária devia estar ali, o sistema prisional também.

A formação que existe actualmente é de seis meses. É suficiente para uma pessoa andar armada na rua, garantir a segurança das pessoas?

Essa formação é uma formação para o ingresso. Não é suficiente. Mas para o ingresso na polícia, tendo em conta a nossa realidade, teria de haver um plano de formação contínua. E não existe. Quando digo um plano de formação contínua é que na perspectiva há um plano anual em que se identifica todos aqueles que necessitam de formação e que são enviados para a fazerem. Para poderem estar treinados. E depois há uma coisa que é muito importante que é a gestão da rotina diária. Há que se acompanhar os elementos no dia a dia. Há problemas psicológicos na polícia. Mas na Polícia Nacional excluem-se aqueles que estudam. Há dois polícias que estão a fazer doutoramento em psicologia e tiveram um processo disciplinar, que resultou na sua demissão, porque queriam ir estudar, pediram autorização e não lhes foi dada licença. Eles foram, dentro daquilo que é o deferimento tácito, e foram expulsos da polícia. Não faria bem que na Polícia Nacional houvesse uma equipa de psicólogos cujo trabalho é o acompanhamento e aconselhamento quando se nota necessidade? Eles não dão importância ao capital humano. O Homem é só para trabalhar.

Veja-se o caso do Serviço Social da Polícia Nacional de há uns tempos para cá andou a servir de segunda caixa da polícia. Nos últimos 15 anos do governo PAICV deu-se ao luxo de servir de suporte para compra de viaturas através do Novo Banco. Através do Novo Banco aumenta-se a dívida pública, compram-se quarenta e tal carros através do serviço social quando este devia servir para melhorar as condições de vida dos agentes. Veja o que aconteceu recentemente: o ministro foi à Boa Vista e Sal distribuir casas para a polícia. Mas depois se formos ver quanto saiu do Orçamento do Estado vê-se que foi zero. Foi o serviço social. E qual é a forma de financiamento? 75% são os próprios agentes que pagam através da renda e 25% é o serviço social. Mas o ministro vem com toda a basofaria dizer que está a distribuir casas. Não senhor. Que se diga que não entrou com nenhum centavo. O Serviço Social é financiado por cada polícia consoante o seu salário. O local onde se faz a apreensão de viaturas foi financiado pelo Serviço Social. Não pode. Não se podem construir infraestruturas do Estado, para fins públicos, por via do Serviço Social da Polícia Nacional. A Polícia Nacional carece de uma reforma profunda. Há agentes mais capacitados que muitos oficiais. Há comandantes que não sabem escrever e que têm agentes, sob a sua alçada, que intelectualmente são mais preparados. Hoje em dia isso não dá, porque não conseguem exercer autoridade nem poder.

Esta estrutura actual da Polícia Nacional, enquanto unificação de vários ramos, faz sentido?

Não. Não faz sentido. Por isso é que se tem todos estes problemas. Cada um daqueles ramos tem a sua identidade. Veja-se o que aconteceu com a Polícia Florestal. Era o elo mais fraco e desapareceu. A POP (Polícia de Ordem Pública), que é uma polícia genérica, ainda não engoliu a Guarda Fiscal porque a Guarda Fiscal tem a sua identidade, o mesmo se pode dizer da Polícia Marítima. Mas repare, ingressam 120 agentes na Polícia Nacional e residualmente 4 ou 7 vão para a Polícia Marítima ou para a Guarda Fiscal. O resto é para a POP. E sempre com a mesma linguagem de que a criminalidade está a aumentar. Um crime é um factor humano e cultural. Tem de ser gerido e controlado e não combatido. E quando eu digo gerido e controlado é porque há outros mecanismos para lidar com a criminalidade e a Polícia não poderá nunca ter a intenção de combater a criminalidade porque se não estará a criar inimigos. E a tendência, considerando alguns fenómenos, vai nessa linha. É um pouco idêntico ao que se passa no Brasil onde há os guetos, onde a polícia vai só quando há situações críticas, e depois há o resto que anda protegido. Isso não pode ser.

Há indícios que há polícias que só andam a patrulhar nas zonas onde há video-vigilância para que sejam vistos, controlados. E os assaltos continuam a ser feitos nos locais que não estão cobertos pelo sistema. Que tipo de gestão operacional é este?

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 908 de 24 de Abril de 2019.

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Autoria:Andre Amaral,28 abr 2019 8:51

Editado porAndre Amaral  em  28 jan 2020 23:21

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