O Bispo que não deu a outra face à ditadura

PorJorge Montezinho,22 jun 2019 9:23

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Foi um Bispo da linha dura. Conservador. Teve o ponto alto do seu patriarcado com a única visita que um Papa fez a Cabo Verde. Mas foi também um homem do seu tempo.

Nómada entre Portugal e Angola antes de se fixar em Cabo Verde, o primeiro pontífice do país independente. Entrou em choque com o Partido Único e depois da abertura democrática, contribuiu para a nova Constituição cabo-verdiana.

Este domingo morreu Dom Paulino Évora, primeiro Bispo de Cabo Verde após a independência. Tomou posse da Diocese de Santiago no dia 22 de Junho de 1975 e liderou-a até 14 de Agosto de 2009, altura em que resignou, devido à idade. “É uma perda muito grande para Cabo Verde e é uma personalidade que merece ser reconhecida. Toda a Nação está de luto”, disse Carlos Veiga ao Expresso das Ilhas. O actual Embaixador de Cabo Verde em Washington trabalhou de forma muito próxima com Dom Paulino Évora, antes e depois da abertura democrática.

Dom Paulino Évora nasceu na cidade da Praia no dia 22 de Junho de 1931 e sentiu a chamada para a vida religiosa na segunda metade dos anos 40. Na altura, era apenas mais um dos jovens que frequentavam a igreja, mas quando se começa a aperceber que havia poucos sacerdotes e que estes vinham de longe para trabalhar, chega à conclusão que é a vida que quer seguir. Em 48 diz ao pároco que queria ir para o seminário. Pensou que iria logo, mas ainda esperou durante um ano. Em 1949, durante uma confissão, é-lhe perguntado se ainda continuava a pensar em seguir o sacerdócio. A resposta é positiva. A 25 de Agosto de 1949 parte para Portugal. Em 2015, numa entrevista ao Expresso das Ilhas, respondeu à questão se tinha sido fácil entregar-se à causa religiosa quase com um encolher de ombros. “Então, se os outros já estavam aqui … Se já dávamos a nossa contribuição como cristãos, essa componente leva também a comunicar. Já sabíamos o que faziam os padres. Já conhecia a sua entrega. Tínhamos a consciência do sacrifício que os sacerdotes faziam e a entrega que isso significava. Portanto, sabíamos que comportava sacrifícios mas também alegrias”.

Toma o hábito religioso em 1954. Faz a profissão religiosa em Setembro de 1957, os votos perpétuos em Setembro de 1960 e é ordenado a 16 de Dezembro de 1962. Entre os anos 63 e 65 é o Vice-Director e professor no Seminário de Fraião, em Braga, no norte de Portugal e em Setembro de 1965 parte para Angola, onde trabalha na Missão de ex-Duque de Bragança (actual Calandula, Diocese de Malange). Em 1970, de férias em Cabo Verde, trabalha como vigário cooperador na paróquia de Santa Catarina, em Santiago. Em 1972 parte novamente para Angola, desta vez para Cacuso, em Malange.

Uma verdadeira odisseia, Atlântico acima e abaixo, que deixa marcas permanentes no então sacerdote. “Em Portugal vivi 16 anos. Fui para lá com 18 anos e marcou-me. E o trabalho em Angola ainda mais. Quando estava no seminário pedi outra missão e quando pensava que iam mandar-me para Cabo Verde mandaram-me para Angola. E ainda bem. Foi uma experiência que marcou a minha vida. Ainda hoje, das mais de cem aldeias que visitava durante um ano ainda me recordo de metade delas. Era um território quatro vezes maior do que Cabo Verde e nós éramos só dois. Isso exigia que arregaçássemos as mangas mesmo até cá acima. E foram dez anos belíssimos de missão. Onde aprendi muito com as pessoas. Onde vivi as suas realidades”, contou ao Expresso das Ilhas.

Está em Angola quando se dá o 25 de Abril. O período revolucionário que se seguiu faz com que tenha vivido situações complicadas. “O país ficou muito tenso para os missionários. Impraticável quase. E quando vim embora, muitos sacerdotes e religiosas me perguntaram se deviam ficar ou ir embora. A minha resposta foi sempre que cada qual devia seguir a inspiração do espírito. E nunca pensei que o 25 de Abril trouxesse isso, sinceramente. Porque aconteceu que muitos bispos, que estavam em Angola e Moçambique, pediram resignação”.

Como contou também ao Expresso das Ilhas, “tive medo algumas vezes. Deitei-me mais do que uma vez vestido e calçado. Para se acontecesse alguma coisa me limitar a pegar na chave do carro e tentar sair. Por uma vez ou outra foram pessoas lá a casa e eu notava que havia ambiente de ameaça. Já depois, quando me preparava para regressar a Cabo Verde, fui ainda a Benguela visitar os conterrâneos e pelo caminho tive bastante medo, porque fui parado muitas vezes. E a saída de Benguela foi feita debaixo de tiros. Era um ambiente de muita instabilidade. Mas a gente, como sabe, tem um anjo da guarda e continua a andar no terreno porque a missão assim o exige. Nunca deixei de visitar as aldeias. Essa era a nossa obrigação. Temíamos também pelas irmãs, por causa do que tinha acontecido no Congo. Pedimos protecção para elas. E sabotaram as portas das escolas, partiram vidros das janelas da residência. Mas mantivemo-nos calmos até ao fim. Já depois de eu ter saído, a missão foi bastante martirizada. Mas é assim. O tempo de revolução é sempre tempo de insensatez”.

Quase um ano depois da revolução dos cravos, a 21 de Abril de 1975, é eleito Bispo de Cabo Verde. As emoções tomam conta do sacerdote. “Pensamos que nos deitaram o mundo em cima da cabeça. Perdemos a respiração, olhamos para quem nos deu a notícia, a pensar se estará a brincar ou a falar a sério. Foi um momento muito complicado quando Dom Muaka me chamou [Dom André Muaka, antigo Bispo de Luanda]. Quase que não sabia onde estava. Fui pensar, consultei o meu confessor e acabei por aceitar. Mas é um momento muito complicado. Ficamos confusos. Mas quando nos refazemos dizemos sempre que uma missão é uma missão. Já sabia que não seria fácil”, disse ao Expresso das Ilhas.

A Ordenação Episcopal é feita em Cacuso, Angola, no dia 1 de Junho desse ano. Entra na diocese e toma posse no dia 22 do mesmo mês. Chega ao arquipélago em plena efervescência da independência. Logo a seguir o país entra num regime de partido único. “Portugal também estava com interesse que fosse uma coisa única, porque em Angola também entregaram o poder ao MPLA, não há dúvidas disso. Havia a intenção clara de entregar o poder ao MPLA, ao PAIGC, à FRETILIN, à FRELIMO”, contou Dom Paulino Évora há quatro anos. “Embora alguns defendam que os inícios devem ser assim, isso de princípio traz logo uma nota de ditadura. E quando as coisas começam assim, não dão resultado. Em nenhum sítio. Até porque tinham estado a combater contra a ditadura e quando chegam iniciam também uma ditadura. Há aqui uma contradição. Um partido único é sempre uma forma muito caricata de fazer o progresso. Porque não prima, nem privilegia, nem respeita a liberdade. Não é um meio para conduzir uma sociedade. A democracia também traz problemas, mas pelo menos tira-se a tinta da ditadura e da coerção da liberdade do indivíduo”.

Já tinha consciência do que ia encontrar. Até porque assume como lema que fui mandado para dar a notícia da libertação de Jesus Cristo [“N mandado da nhos um noba di Deus djunto cu notícia di libertação”]. “A mensagem que passei é que era preciso viver dentro da sinceridade e da coerência da missão. Não ia estar a esconder a verdade por medo, porque sabia que iria pagar por isso diante de Deus. Portanto, sempre falei da verdade do Evangelho e do respeito pela pessoa humana, num ambiente que, enfim, não tinha interesse em ouvir isso e que ficava incomodado por isso. Tínhamos de navegar num meio confuso, mas com o Evangelho nas mãos e sabendo que vínhamos servir Jesus Cristo. Por isso a palavra ‘receio’ não estava no meu dicionário”.

Apesar do lema escolhido, visto como uma mensagem libertadora, recusou sempre que tivesse um lado político. “Havia simplesmente o lado evangélico. Porque, no fundo, todos os que chegaram vieram como libertadores. E será verdade que eram mesmo libertadores? E eu mostrei quem era o libertador. Não era eu, era a verdade de Cristo. A frase tinha, portanto, apenas um cunho da evangelização, porque a evangelização é uma libertação, para o homem estar livre e poder amar, agir e aquilo que a sua fé lhe diz”.

Não tinha uma mensagem política, mas tinha a percepção do período que o país começa a atravessar e nunca acreditou que as revoluções são feitas para libertar. “Vemos a história e descobrimos que essa palavra não lhes assenta. Eu só quis mostrar onde estava a libertação e que não eram eles que a traziam. Ou seja, mostrei também a falsidade e a falta de bases de certos conceitos. Porque se libertou com violência, ou a ditadura não é também uma forma de violência? Não houve libertadores nem liberdade para os homens. Pelo contrário, estes foram mais escravizados. Deus não escraviza, Deus propõe-se. O homem é que se torna ditador do seu irmão. Os libertadores, quando chegaram, traziam como slogan ‘Deus ka tem’ – não há Deus – isso foi aqui propalado. A mentalidade era essa, ‘Deus ka tem’. Isso levou muita gente a ser forçada, porque a barriga conta, não é? Foi um choque muito grande para uma sociedade profundamente católica como a cabo-verdiana. Mas a igreja também não deixou de dizer que Deus existe e age. E que a sua proposta não é de violência nem é de mentira, mas sim de libertação”, resumiu Dom Paulino ao Expresso das Ilhas.

Em 1990, com a abertura democrática à porta, o arquipélago vive o seu momento religioso mais importante da história, João Paulo II, o Papa, visita Cabo Verde. Se houve uma ligação entre um momento e o outro, Dom Paulino Évora nunca o assumiu, mas também não escondeu que alguma influência a vinda do Sumo Pontífice poderá ter tido na democratização do país. “A democracia estava a acontecer no mundo, seria uma questão de tempo até chegar cá, até porque a Europa estava a impor isso – democracia, desenvolvimento, direitos humanos – os três D. O papa já tinha lutado muito pela libertação no seu país e talvez tenha soprado qualquer coisa quando chegou, porque menos de um mês depois acontece a abertura [o papa visitou o arquipélago entre 25 e 27 de Janeiro de 1990, a abertura acontece a 19 de Fevereiro do mesmo ano]. É provável que tenha dito para apressarem o processo, se bem que a democracia já estava em incubação. Portanto, é provável que tenha servido para que as coisas acontecessem mais depressa”.

Não há certezas se João Paulo II pediu ou não para se apressar o processo, mas há as palavras que proferiu na homilia de 26 de Janeiro de 1990, na esplanada de Quebra-Canela: “Hoje aqui convosco, há duas coisas que queria sublinhar. A primeira é: não às discriminações de todo o tipo; jamais a escravização do homem pelo homem; nunca mais qualquer forma de violência, demolidora da dignidade das pessoas; jamais, nunca mais, a negação dos direitos de Deus sobre o homem. A segunda é que, ao visitar-vos, fico com a impressão de que os Cabo-verdianos, fazem como aconselha o Apóstolo: esquecendo-se do que fica para trás, querem avançar para diante, para o futuro. Para um futuro cristão, cada vez melhor”.

Na memória de Dom Paulino Évora, desses dias, ficou também a lembrança de um Papa pouco falador. “Quando viemos de avião do Sal para a Praia, e ficámos num local mais à parte, ele pegou logo no terço para rezar. Era para dizer, provavelmente, que não havia conversa. Quando fomos daqui para São Vicente, ida e vinda, ele também pegou logo no seu terço para rezar. Na Praia conversámos à mesa, mas éramos muitos porque vieram os bispos da Conferência Episcopal do Senegal. Ou seja, não tivemos conversas particulares. Também não houve muito tempo. E o papa era um homem muito meditativo. Só quando entrámos no carro, no dia da despedida, é que ele murmurou um “muita dignidade”. Dentro da nossa pobreza e das nossas limitações procurámos, de facto, dar dignidade à visita. Era o que podíamos dar”.

Poucos dias depois acontece a abertura democrática e Dom Paulino Évora esteve na linha da frente, mais uma vez. Como recorda Carlos Veiga, “Dom Paulino é uma das figuras ímpares da nossa história, que conseguiu de uma forma muito real ser uma pessoa interveniente e ser uma pessoa que durante o tempo em que dirigiu a igreja pô-la numa posição marcante na sociedade. Foi muito importante para o advento da democracia e a própria Constituição contém preceitos que foram sugestões do senhor Bispo, como os relacionados com a família e os deveres dos cidadãos. Foi um grande defensor da democracia, lutou para que ela ocorresse, e nesse aspecto considero que foi um dos artífices reais do advento da democracia em Cabo Verde”, conclui o Embaixador de Cabo Verde em Washington.

O corpo do Bispo Emérito, Paulino Évora está sepultado, desde esta quarta-feira, dentro da Igreja Pró-catedral de Nossa Senhora da Graça, na Cidade da Praia. Morreu no passado dia 16, a seis dias de completar os 88 anos.

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 916 de 19 de Junho de 2019. 

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Autoria:Jorge Montezinho,22 jun 2019 9:23

Editado porDulcina Mendes  em  21 mar 2020 23:21

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