Fala-se mais da mulher na questão da VBG, mas, de facto, o que temos mais é homens a matar homens. É um ciclo que o país está condenado a perpetuar?
É um ciclo mundial. O que se vê mais é homens a matar homens. São mais homens a morrer, são mais homens a matar, são mais homens a ter acidentes, ou seja, são mais homens envolvidos em crimes violentos. Não é algo de novo, sempre foi assim e tem a ver com um tipo específico de socialização. Vários estudos apontaram nesse sentido, e Cabo Verde não é diferente.
E estamos a dar importância a estes números, ou a questão feminina está a receber o foco principal?
O grande problema é que tendemos a não considerar isto também como uma violência de género. Porque homem a matar homem é também uma violência de género. Não há dúvidas sobre isso. O problema é a questão de uma construção de macho, da honra, do homem a querer provar que é homem e isto é de género. O grande problema em Cabo Verde é que quando falamos de VBG tendemos apenas a focar na questão da mulher e isto é que é o problema e não estamos a ver a vítima do sistema: o homem a querer provar que é homem. Isso não é valorizado e depois dá nos problemas que dá. Esse é o grande problema, mas o que eu considero, e outros colegas meus consideram, é que nessa questão da violência, o homem a matar homem, também tem de ser enquadrada enquanto uma violência de género. Não baseada no género, mas de género.
Como se pode alterar esta situação quando temos uma sociedade que espera essa mesma violência, nesse contexto da defesa da honra?
O que se tem apontado, pelo menos a nível teórico, é tentar primeiro desconstruir o que é isso de ser macho, o que é isso de ser homem. Começa por aí, o que hoje falamos das construções das novas masculinidades, ter cuidado com a questão da virilidade, porque esse é outro problema. O homem viril, o homem verdadeiro, não é aquele que tem de provar que o é. Então, temos de começar de facto nessa nova construção. Agora, essa construção tem de ser feita em casa e nas escolas, é algo que tem de ser feito de baixo para cima. Não vamos pegar num senhor com uma certa idade, que tem essa crença desde sempre, isso é complicado, mas temos de começar a trabalhar nas próprias mulheres, porque quem educa as crianças? Há um sistema patriarcal que obriga a que se faça uma divisão sexual desde muito cedo, porque homem tem de vestir isto, mulher tem de vestir aquilo, homem tem de brincar com isto e mulher tem de brincar com aquilo. Temos de mudar esse quadro e acho que é por aí. É preciso mostrar que há esta realidade e tentar mudar esta mentalidade. Se não, vamos continuar a fazer o mesmo.
E uma sociedade que é agressiva por natureza, terá abertura para essa nova masculinidade?
Tem havido. Para fazer o estudo que estamos a fazer neste momento, sobre o feminicídio, tive a oportunidade de falar com vários homens, de bairros ditos problemáticos, e homens também ditos problemáticos, e deu para perceber que há uma consciência. Agora, o grande problema é que a sociedade é assim. A nossa sociedade é de matriz matrilinear, não é patrilinear, isso é uma imposição. Se repararmos, as nossas relações sociais são comandadas pelas mulheres, mas de forma informal. De repente, tens um discurso formal em que o homem é o protector e depois na prática cada vez mais as mulheres estão a entrar no mercado de trabalho e o homem sente-se encurralado. O que acontece? Sente que tem a necessidade de provar. O grande exemplo que podemos dar tem a ver com o abandono escolar, porque é maioritariamente masculino entre o 5º e o 6º ano, que é a parte mais complicada. As mulheres passam, porque estão habituadas a trabalhar com dificuldades. O homem não, tem o privilégio masculino, que é uma armadilha. Temos de começar a trabalhar nos homens e é a partir dos homens que se começa a mudar as mentalidades, mas também as mentalidades das mulheres, porque elas também as reproduzem.
As eleições do Bolsonaro e do Trump foram já analisadas do ponto de vista da revolta do homem mediano, que se sente acossado pelo politicamente correcto e vai votar nos que são politicamente incorrectos. Por outro lado, a hipermasculinidade é-nos mostrada todos os dias, inclusive nos filmes de super heróis, com tipos musculados que resolvem tudo a soco…
É uma contradição. Nós todos somos uma mercadoria e há que vender um produto e este produto vende. É verdade que há aqui uma grande contradição.
Quase que uma reação à evolução?
Já se atingiu muito, mas depois há sempre o retrocesso. Quem são as pessoas que votam nos populistas? São pessoas que se sentem encurraladas porque vêem o seu privilégio masculino a ser posto em causa, e reagem. Depois por questões mercantilistas, a violência vende, e vende sempre a mesma figura de homem. É uma contradição? Claro. Mas temos de ver que estamos num contexto mercantilista. É como a cena do álcool e da droga, mas eles não são causas, são factores que facilitam, mas não é porque bebe ou porque é um toxicodependente que é mais violento. Claro que tendo esses produtos, parece que lhe dá mais poder. É como a arma. O que é a arma? É uma extensão do próprio falo. Tudo tem a ver com a masculinidade.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 939 de 27 de Novembro de 2019.