Conter a pandemia : O que é distanciamento social?

PorAntónio Monteiro,29 mar 2020 10:32

A covid-19 trouxe consigo planos de contingência que estão a afectar visivelmente o dia-a-dia dos cabo-verdianos desde constrangimentos de mobilidade exterior até ao novo imperativo de distanciamento social que mudou as nossas vidas de um dia para o outro. Para entender bem a regra do distanciamento social, o Expresso das Ilhas conversou com especialistas das áreas da saúde pública e das ciências sociais.

O novo coronavírus já chegou a Cabo Verde. Até agora registaram-se três casos positivos, todas na ilha turística da Boa Vista, dos quais um resultou no óbito do turista inglês, de 62 anos, que, aliás, foi o primeiro caso confirmado em Cabo Verde.

Para enfrentar a pandemia, o governo entre várias medidas decidiu fechar as fronteiras proibindo voos de países com centenas e milhares de casos confirmados de Covid-19 e colocou Boa Vista em quarentena logo após o aparecimento do primeiro teste positivo nesta ilha.

Com o aparecimento do primeiro caso foram reforçadas as medidas para a contenção da epidemia nomeadamente a suspensão da ligação marítima e aérea, para transportes de passageiros, de e para Boa Vista; confinamento das pessoas ao espaço onde foi identificado o primeiro caso; encerramento de serviços públicos e privados que não prestem serviços básicos essenciais; reforço em meios humanos e materiais para as estruturas de saúde da Boa Vista e apelo para que as pessoas fiquem em casa, ou seja, a regra do distanciamento social, visando a prevenção individual e colectiva dos cidadãos.

Apesar de ser uma das formas mais eficazes de combate à pandemia adoptada em todos os países afectados pela pandemia, em Cabo Verde, ao que parece, é uma das medidas mais difíceis de serem cumpridas, pois somos conhecidos como um país de morabeza, onde todos se conhecem e cada um vai dando um jeitinho mesmo que isso ponha em causa a saúde pública.

“Um dos grandes problemas colocados por esta epidemia prende-se com a forma de a conter. Tratando-se de um vírus, ainda, não totalmente conhecido, e para o qual, ainda, não existe vacina nem tratamento específico, a estratégia preferida de muitos países, e que parece ser a mais eficaz, foi a de confinamento ou isolamento social”, ressalta José António dos Reis.

Para o psicólogo clínico o isolamento social tem-se revelado como a única estratégia eficaz no combate à disseminação do vírus, isso porque este se expande através de contatos e circulação de pessoas.

Sacrificar-se por uma boa causa

Na opinião do psicólogo, a privação da liberdade de circulação ou de deslocação de pessoas pode aparentemente trazer algum desconforto, mas é necessário fazê-las acreditar que estão a sacrificar-se por uma boa causa.

“Esses tempos de isolamento social vão provocar alterações na forma de viver das pessoas, e dependendo do tempo que isso durar, poderá vir a ter impacto na nossa forma de viver no futuro. Estamos, pois, a viver um tempo que será pródigo para a emergência de quadros ansiosos e de sentimentos tendencialmente depressivo. Talvez se justifique a existência, para além de uma linha de informação sobre o coronavírus, de uma outra de apoio psicológico a quem dele possa precisar”, alerta o especialista.

Na mesma linha, o sociólogo César Monteiro defende a medida de distanciamento social como forma de conter eficazmente a propagação do vírus, ainda que comprometa as relações de sociabilidade do dia-a-dia e “suspenda”, por tempo indeterminado, a prática normal da tal cultura de morabeza e de proximidade do cabo-verdiano.

“Numa situação de excepção e de algum fechamento social ditado pelas circunstâncias, já visível, a observância rigorosa das normas recomendadas de distanciamento social, que sugere a quarentena domiciliária voluntária, condiciona e reduz, na prática, a circulação e a mobilidade das pessoas de um lado para outro, que preferem refugiar-se em casa, afinal, a sua âncora e porto seguro, e constringe o habitus e a postura do cabo-verdiano, que, de forma espontânea e natural, resiste a mudanças de práticas sociais, modelos de comportamentos e estilos de vida interiorizados e sedimentados ao longo de processos de socialização, socorrendo-se de mecanismos vários”, aponta o sociólogo.

Fenómeno urbano

De acordo com César Monteiro apenas o respeito escrupuloso das regras de isolamento social recomendadas pelas autoridades públicas poderá conter a pandemia, evitando que ela se propague rapidamente a outras ilhas.

“Tratando-se de um fenómeno essencialmente urbano com reflexos marcadamente sociais, um eventual alastramento da pandemia, a verificar-se, poderia atingir, no imediato, sobretudo, os principais centros urbanos do país, particularmente os bairros periféricos densamente povoados e com índices elevados de pobreza e alguma promiscuidade social, particularmente as camadas mais vulneráveis e os grupos de risco”, observa.

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Somos pessoas muito sociáveis”

“Nós somos pessoas muito sociáveis, temos muitos amigos, o cabo-verdiano é de uma afectividade, não digo exagerada, mas considerável: gira tudo à volta de abraços, dos beijinhos e mãos dadas. São factores normais no nosso dia-a-dia, mas que na actual conjuntura constituem ameaças sérias para a propagação do vírus”, adverte José Manuel Aguiar.

Também para o médico e especialista em saúde pública, a nossa idiossincrasia é um dos empecilhos para a implementação e controlo de uma das medidas mais eficazes no combate à propagação do vírus – o distanciamento social. Defende que só uma boa consciencialização das pessoas permitirá que assumam esse compromisso e levem avante a medida.

“Uma das coisas que torna isso difícil de cumprir é o facto de que exige algum tempo. Esse isolamento não é coisa que se possa fazer durante três dias, ou uma semana. É por muito mais tempo. Enquanto estivermos na fase da propagação do vírus, temos que manter essa medida, associadas a outras como a protecção individual, etc.” Daí defender uma maior divulgação da regra do distanciamento social e mostrar o porquê da sua necessidade como medida de protecção da pessoa, do seu agregado familiar, da comunidade e do próprio bairro.

“Portanto, toda a comunicação nesse sentido é pouca para se conseguir imprimir uma dinâmica de distanciamento social, necessária e suficiente para contermos a propagação do vírus. A gente nunca vai conter a propagação em si, mas a redução da velocidade da propagação é de extrema importância para que os serviços de saúde possam dar uma resposta mais adequada e conseguir utilizar de uma forma mais racional os recursos disponíveis que sempre nessas situações são parcos”, acentua José Manuel Aguiar.

O défice habitacional

De igual modo defende a sociopolitóloga Eurídice Monteiro que as medidas de distanciamento e isolamento social são imprescindíveis no combate à disseminação do COVID-19, mas chama a atenção para o seu impacto numa sociedade como a nossa, onde há o problema do défice habitacionale da exiguidade do espaço interior das habitações. “Os subúrbios das principais cidades necessitam de uma maior atenção, devido à densidade populacional, à concentração de população precária principalmente migrantes rurais e de outras origens e à tipologia de alojamentos onde residem um conjunto de pessoas com ou sem relações de parentesco entre si. Junta-se a carência de água e a dificuldade de saneamento básico por todo o país, do campo às cidades”, aponta.

Por outro lado, de acordo com a sociopolitóloga, as medidas de distanciamento e isolamento social levantam o véu sobre uma preocupação que se prende com o modo de vida e subsistência das pessoas. “O peso da economia informal e informalização do mercado de trabalho, o desemprego, os empregos precários e mal pagos, a prostituição, a sobreexploração das mulheres, o trabalho infantil e dos idosos... Tudo isso ajuda a configurar um ambiente de insegurança social. Neste momento, a incerteza que se vive com a pandemia só vem agudizar um problema já antigo”.

A concluir José António dos Reis lembra que é necessário desconstruir a ideia de que a epidemia diz respeito apenas ao governo e ao Estado. “A Covid-19 e o problema que coloca dizem respeito a todos e todos devem mobilizar-se para o combate, cada um, dentro das suas possibilidades e capacidades, dando o melhor de si para vencer esta guerra”. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 955 de 25 de Março de 2020. 

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Autoria:António Monteiro,29 mar 2020 10:32

Editado porJorge Montezinho  em  1 jan 2021 23:20

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