O sistema de financiamento do ensino superior em Cabo Verde como está não pode continuar

PorAntónio Monteiro,10 out 2021 7:46

Aquilino Varela, Director do Gabinete do Ensino Superior, Ciência e Tecnologia (GESCT)
Aquilino Varela, Director do Gabinete do Ensino Superior, Ciência e Tecnologia (GESCT)

Cabo Verde tem neste momento perto de 16 mil alunos a estudarem em instituições do ensino superior tanto nacionais como estrangeiras, mas as bolsas de estudo disponibilizadas pelo governo cobrem apenas 39% dos alunos. 61% ficam de fora. “Então é preciso debater e saber como criar um fundo, ou onde encontrar recursos para garantir a sustentabilidade da formação superior em Cabo Verde”, defende Aquilino Varela, avançando que dentro em breve um estudo sobre a nova modalidade de financiamento do ensino superior vai ser socializado.

Podia esclarecer-nos quais são as atribuições do GESCT, já que temos uma secretaria de Estado do Ensino Superior e a ARES com competências também na área do ensino superior?

Nem a Secretária de Estado do Ensino Superior, porque de âmbito estritamente político e não administrativo e de gestão e nem a ARES (Agência Reguladora do Ensino Superior) esvaziam as competências do Gabinete do Ensino Superior, Ciência e Tecnologia (GESCT): a orgânica do Ministério da Educação é clara a este respeito. É certo que em 2018, o governo criou a Agência Reguladora do Ensino Superior dotando-a de incumbências no domínio da fiscalização, controlo da qualidade, através do processo de avaliação, acreditação de cursos, de instituições, bem como o reconhecimento de graus e diplomas.Contudo, o GESCT é a instância do fomento e execução de medidas políticas, seguindo as orientações estratégicas emanadas pelo ministro da Educação e pela secretária de Estado do Ensino Superior. Políticas que têm a ver com o acesso ao ensino superior, a qualidade, a investigação, a internacionalização e a modernização são da sua competência, em matéria da formulação e execução.O GESCT, fazendo parte da superintendência, cria as medidas políticas para orientação estratégica do ensino superior. As universidades são incentivadas a incorporá-las, reorientando a produção do conhecimento e da investigação, sob a fiscalização da ARES. Como sabe, o Ministério da Educação por tutelar a Ciência, compreende-se também a sua (in)direta tutela sobre a investigação, que é feita nas instituições do ensino superior em sinergia com a investigação feita nas instituições não académicas de investigação. As nossas universidades fazem investigação para o seu dia-a-dia, tanto básica como aplicada, mas há também, em Cabo Verde, institutos especializados que fazem investigação como o INIDA, o antigo INDP, agora IMAR, o INMG, o LEC e o antigo IIPC.

É da competência do GESCT a atribuição de bolsas de estudo e bolsas de mérito. Quais os critérios para bolsas nacionais e estrangeiras?

Nós temos bolsas de estudo do Governo de Cabo Verde, são de âmbito social para Cabo Verde, Portugal e Brasil e de mérito, exclusivamente para Portugal. Todas estas bolsas são pagas através do Tesouro, pela via da FICASE (Fundação Cabo-verdiana de Acção Social e Escolar). O GESCT gere as bolsas de estudo, através do Serviço do Ensino Superior (SES). Compete a este propor os regulamentos, lançar o concurso, fazer a selecção, através de um júri nomeado pelo Ministério da Educação e enviar a lista dos candidatos seleccionados à FICASE. As bolsas de mérito são atribuídas aos 10 alunos, admitidos com vaga de formação superior em Portugal, cuja média do terceiro ciclo se situa entre 18 valores e 20. Portanto, para essas dez bolsas, um único critério de ponderação é a média do aluno. A outra modalidade da bolsa -quantitativamente maior - bolsas sociais, são atribuídas levando em consideração critérios como: nota do aluno corresponde a 40%: o aluno que obtiver 20 valores, o sistema toma 40%; o aluno que obtiver 14, o sistema toma 40%. Igual percentagem. Depois existem mais 40% que é do rendimento do agregado familiar: pais de candidatos que se apresentaram ao concurso e que usufruem de um rendimento de 150 mil escudos, o sistema toma 40%. Aqueles que apresentaram 8 mil escudos, o sistema toma 40%. Assim teríamos já 80%. Existem mais 10% do chamado equilíbrio regional. Os concelhos do país, segundo os critérios do INE, estão tipificados de acordo com os índices da pobreza. Ou seja, os concelhos mais pobres têm mais peso na atribuição de bolsas de estudo. Desde logo, concelhos com Santa Cruz, São Salvador do Mundo, São Lourenço dos Órgãos e Santa Catarina do Fogo têm o peso 1.3. Concelhos mais medianos, onde é suposto possuírem alguns recursos têm o peso 12. Concelhos com mais alguma afluência de recursos têm o peso 11. E concelhos como a Praia, Mindelo, Boa Vista e Sal tem o peso 10. Os outros 10% para apuramento advêm ou não se o candidato possui um irmão a estudar por conta própria no ensino superior. O que demonstra um duplo esforço da família e que lhe potencie a ser beneficiada supletivamente pelo Estado. A par da bolsa do governo de Cabo Verde temos as bolsas de parceiros internacionais oferecidas por vários países, actualmente muito expressivas, em países como a China, Marrocos, Brasil, Hungria, etc. com alguns critérios que eles próprios pré-estabelecem nos acordos de cooperação. De facto, às vezes, vê-se a gestão do ensino superior apenas pelo lado daqueles que estudam em Cabo Verde, que, na verdade, são uma maioria. De acordo com o último recenseamento da ARES do mês de Julho são 9108 alunos a estudarem em Cabo Verde, sendo que a maioria está a estudar na Uni-CV com 51% dos alunos.

Em termos concretos o que significam esses pesos?

Significa que o governo de Cabo Verde premeia o mérito dos jovens egressos do Ensino Secundário na entrada do ensino superior, para o qual possui uma quota fixa de bolsas, com critérios estritamente afins. Ao mesmo tempo, através de uma outra modalidade de bolsa, ajuda as famílias na formação superior dos seus educandos, tendo em consideração as suas condições económicas (rendimento do agregado familiar) e as suas ilhas de origem (equilíbrio regional).

Como é que isso funciona na prática este cálculo?

De ponto de vista tecnológico, o GESCT possui uma Secretaria Digital, alojada no NOSI e na Casa do Cidadão, concebida para receber as candidaturas online e processar, com a ajuda de um júri, o apuramento. Portanto, tudo é feito online e sem a interferência dos técnicos, garantindo mais autonomia dos jovens no concurso, mais transparência e objetividade em todo o processo. O júri a que referi anteriormente é composto pelo Director Geral do Ensino Superior que preside, a FICASE, que é o nosso banco se assim a quisermos chamar, a Direção Geral da Juventude e Desporto, a Plataforma das ONGs e um representante do Ministério das Finanças. Estão cinco entidades representadas no apuramento de bolsas de estudo. É um processo transparente, as informações são fornecidas pelos alunos à plataforma e o júri vai averiguar se os documentos estão em consonância e se não há efetivamente nenhum documento que exige uma leitura mais aturada.

E em relação às bolsas de estudo concedidas por instituições estrangeiras?

Para as bolsas dos parceiros normalmente eles impõem as suas lógicas, pagam os montantes que praticam nos seus países. Quando, por exemplo, a Rússia concede uma bolsa, ela impõe os seus critérios; quando é Cuba a dar, Cuba impõe os seus critérios; quando é o Instituto Camões a dar, ele impõe os seus critérios… em alguns casos em que o valor da bolsa não cobre todas as despesas do estudante, o governo, através da FICASE, reforça o apoio destes jovens quando as suas famílias não possuem recursos para o efeito.

Estes critérios não se referem às vagas no estrangeiro.

Não, só para bolsas de estudo mesmo. Aqui trabalhamos com vagas e bolsas. Devo-lhe dizer que este ano já fornecemos 404 vagas só para o ensino superior em Portugal, mas destes apenas 90 vão ter bolsas de estudo. Porquê? Porque as bolsas de estudo são atribuídas para os cursos que não existem Cabo Verde. É um princípio que vem sendo seguido desde há muito tempo, porque o Estado está a investir nas universidades cabo-verdianas e por isso não lança concorrência às suas próprias universidades. Ou seja, o Estado não atribui bolsas para os cursos que existem em Cabo Verde, atribui vagas, mas as famílias custeiam a formação dos seus filhos.

Em 2019 as bolsas de estudo disponibilizadas pelo governo abrangiam apenas 22% dos alunos do ensino superior num universo de 12 mil alunos. O que dizem os novos dados?

Segundo os últimos dados disponíveis, o governo de Cabo Verde apoia neste momento 39% dos alunos que existem no ensino superior. Esta correlação tem que ser entendida na lógica de estabilização das matrículas nas IES cabo-verdianas, em virtude de mais incremento de alunos a irem para fora. Como sabe, não é só a Direção Geral do Ensino Superior que envia alunos para fora. As câmaras municipais entraram também nisso.

Na altura, como as bolsas de estudo só davam para cobrir 22% dos alunos nas instituições de ensino superior o governo esteve a analisar uma nova modalidade de financiamento para formação no Ensino Superior. Para quando a implementação desta nova modalidade?

Já temos um estudo indicativo da modalidade de financiamento, lançamos uma consultoria, a equipa de consultores já nos forneceu o estudo que já está nas mãos das universidades para preparem as suas contribuições e vamos retomar o processo discutindo os cenários proposto levando em consideração a sustentabilidade da formação superior, em reforço às famílias e a situação económica e financeira do país. Como sabe, passamos de eleições em eleições e queremos deixar passar a azáfama das eleições para que de uma forma descomplexada possamos debater com as universidades e com a sociedade civil, porque tudo aponta que o sistema como está não pode continuar, na justa medida em que aqui em Cabo Verde apenas 39% dos alunos estão cobertos. Os 60% dos alunos estão descobertos. E aqueles que estão lá fora também precisam de algum apoio do Estado. Então é preciso debater e saber como criar um Fundo, ou onde encontrar recursos para garantir a sustentabilidade da formação superior em Cabo Verde.

Em que prossupostos se baseia esse estudo?

O estudo deu-nos indicações importantes de onde actuar em matéria de vulnerabilidade. Por exemplo, o estudo indicou que, em média, um aluno deslocado das outras ilhas para as três cidades universitárias de Cabo Verde, Assomada, Mindelo e Praia, se vier de Santo Antão ou vier da Ilha Brava, tem um custo/aluno de 42 mil escudos mensais para fazer a sua formação superior; levando em consideração a propina, que difere de universidade para universidade, a residência, a alimentação e os materiais e equipamentos pedagógicos que necessita para efectuar uma sólida formação. Nas universidades públicas, na Uni-CV e na UTA, a propina é de 9 mil escudos, porque o Estado institui um tecto, em razão de também ser ele a entidade instituidora e por isso as subsidia com infraestruturas, com a montagem de laboratórios e com apoio direto, em regime do duodécimo, através do Orçamento do Estado. Portanto, qualquer modalidade de financiamento que venha a ser adotado precisa levar em consideração estas circunstâncias acrescidas também à situação dos que estudam no exterior. O Estado não podia conceber um instrumento para financiar a formação superior e contemplar só os que estudam em Cabo Verde. Existem cursos que ainda não existem nas nossas universidades e que são estratégicas para o nosso processo de desenvolvimento.

Há alguns anos foi aventada a possibilidade de reembolso das bolsas de estudo. Por que esta modalidade foi posta de lado?

A bolsa reembolsada parece ser uma realidade que não podemos fugir para muito mais tempo. Contudo, a forma e a quantia do reembolso precisam ser bem ponderadas e estudadas. Creio que aquando da sua tentativa de implementação falhou por falta de consenso no que tange a estes pressupostos: forma fiável de reembolso e a quantia mensal a ser reembolsada.

Já agora, quantos alunos cabo-verdianos estudam no país e no estrangeiro?

Estimamos que Cabo Verde possui no subsetor do Ensino Superior cerca de 16 mil alunos, tomando o total das referências existentes nas universidades cabo-verdianas, no Gabinete do Ensino Superior e Ciência e Tecnologia; nas câmaras municipais e associações da sociedade civil que enviam alunos para fora; e também no registo junto das nossas embaixadas espalhadas pelo mundo. Como já lhe disse, temos neste momento 9108 estudantes aqui nas nossas universidades. De acordo com o registo do GESCT, só em Portugal temos neste momento 3.276 alunos (os dados das câmaras municipais não estão todos actualizados, porque demoram em nos fornecer dados). E temos também alunos a estudarem em outros países. De modo que estimamos que para pôr de pé uma nova modalidade de financiamento da formação superior o Estado terá que criar um Fundo, ou disponibilizar recursos para custear 17 mil alunos à razão de 42 mil escudos mensais durante os anos da formação que varia de país para país. Nós aqui temos cursos de quatro a cinco anos, Portugal já tem o sistema de Bolonha que são três anos e os outros países têm como nós o sistema de quatro ou cinco anos. Está a imaginar recursos que o Estado vai precisar para pôr de pé essa nova modalidade de financiamento. Neste momento temos 542 milhões de escudos afectos ao ensino superior, junto da FICASE, com o qual pagamos as bolsas de estudos, atribuímos subsídios pontuais, quando as bolsas dos parceiros são insuficientes, ou quando as famílias declaram perder capacidade de continuar a financiar a formação dos seus filhos, ou quando ocorrem momentos de crise como nos últimos dois anos temos a Pandemia da Covid 19 que, basicamente, já nos estoirou os recursos orçamentais anuais. Nos últimos dois anos, por exemplo, subsidiamos os estudantes de várias formas: os alunos que estavam nas ilhas e que foram apanhados pela Covid e não puderam regressar o Estado teve que lhes subsidiar parte da sua estadia, custeamos as propinas de todos os alunos não bolseiros a 50% durante três meses, aqueles que comprovaram que os pais tinham perdido o rendimento por causa da Covid. Temos um programa de apoio extraordinário que nesta altura já libertou mais de 700 alunos que terminam a licenciatura e ficam com o diploma retido, porque têm dívida e não lhes dão os certificados para procurar trabalhos. Então, esses 542 milhões de escudos estão ali na FICASE para resolver problemas estruturantes de bolsas de estudo, mas também para resolver problemas pontuais e contingenciais.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1036 de 6 de Outubro de 2021. 

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Autoria:António Monteiro,10 out 2021 7:46

Editado porFretson Rocha  em  14 jul 2022 23:28

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