Ministra conta atingir fasquia das 10 mil casas melhoradas até final da legislatura

PorNuno Andrade Ferreira,29 jan 2022 9:30

Conhecido o perfil habitacional do país e publicado o plano nacional para o sector, o governo aposta numa intervenção que responda às necessidades concretas de cada município, ao invés de um único programa abrangente. Noutra das áreas que tutela, a ministra das Infraestruturas, Ordenamento do Território e Habitação defende a necessidade de uma maior cultura de planeamento, nomeadamente, para proteger as orlas costeiras e preparar o país para os efeitos das mudanças climáticas. Eunice Silva espera conseguir, nos próximos anos, terminar os anéis do Fogo e de Santiago. Garantida está a reabilitação da estrada Palmeira-Espargos-Santa Maria, no Sal.

Na última semana, o governo recebeu a chave do complexo da Portelinha, em São Vicente. O que é que este complexo representa naquilo que é a política habitacional do governo?

O caso da Portelinha, muito embora esteja integrado dentro do contexto de toda a problemática da habitação, deve ser particularizado, no sentido em que se trata de um investimento executado pela cooperação chinesa, através de empresas chinesas. O projecto remonta a 2017, aquando de uma visita do senhor Primeiro-Ministro à China. Dada à situação complexa do sector da habitação, levou-se na carteira esta preocupação.

Desde o início, ficou claro para nós que era uma cooperação de longo prazo. O valor seria paulatinamente implementado, a começar por São Vicente. Inicialmente, estávamos a pensar em Sal e Boa Vista, onde a situação era mais crítica, mas a preferência da China era que fosse em São Vicente e na Praia. Apurámos que seriam construídos dois lotes em São Vicente, um em Portelinha e outro no Iraque, localizações escolhidas de acordo com a concertação feita com a Câmara Municipal. Isto significa que a próxima iniciativa será no Iraque. Na Praia, serão três lotes, inclusive já temos os locais identificados para esses investimentos. É um donativo, a cooperação chinesa tem o seu timing. Há a promessa e aguardamos.

No total, estamos a falar de quantos fogos?

Não temos o controlo do número de fogos. O montante era de 14 milhões de euros. A China calculou o custo da obra em função do preço que aplicam, tratando-se de uma empresa chinesa, que veio da China para construir em Cabo Verde.

Estas casas na Portelinha destinam-se a quem? Aos moradores da zona?

As casas são destinadas à Portelinha. Quando chegámos e fizemos uma visita ao local com o Primeiro-Ministro, identificámos que, de facto, as pessoas vivem nas condições que sabemos, em casas de lata. A diferença é que, na altura, o número de habitações era, de longe, inferior ao que existe neste momento. De lá para cá, triplicou o número de casas de lata. Isto leva-nos a um desafio maior. Estamos, neste momento, a trabalhar este lado social com a câmara e Ministério da Família.

No sentido de seleccionar as famílias…

Sobretudo, ver quais são as famílias mais necessitadas em termos de habitação. Ainda não podemos dizer que é esta ou aquela família, mas é uma situação na qual estamos a trabalhar.

O que colocaria no centro da política habitacional do governo?

Temos, desde sempre, grandes desafios. Em que ponto estamos? Estamos a caminhar para a resolução do problema das barracas nas ilhas do Sal e da Boa Vista. Por outro lado, já temos, neste momento, instrumentos de gestão do sector de habitação que não existiam. Desde o diagnóstico da situação – o Perfil do Sector de Habitação – passando pela definição de políticas, quer de habitação, quer de ordenamento do território, que estão relacionados, e o Plano Nacional de Habitação (PLANAH), que é o instrumento de aplicação da política. Este é um documento que acabou de ser publicado no Boletim Oficial e onde está claramente definido o caminho a percorrer daqui até 2030. É no PLANAH que surgem os eixos programáticos, os programas essenciais com que vamos trabalhar para debelar a situação da habitação. A partir do perfil, sabemos qual é o défice qualitativo que temos em Cabo Verde, ou seja, habitações onde as pessoas estão, mas que precisam de ser melhoradas porque têm défice de qualidade, como tectos a cair, falta de casa de banho, etc. São, mais ou menos, 40 mil casas. Um outro eixo é quantitativo e, aqui, são 13.800 casas, neste momento. Ou seja, pessoas que precisam de casa, que não têm casa. Esta é outra frente de trabalho. Para além dessas duas frentes, precisamos de planear, ter instrumentos de gestão territorial, planos de ordenamento e urbanísticos, infraestruturar. Só planos urbanísticos são 190. Terrenos para infraestruturar, 600. Com o PLANAH, também temos que chegar ao PLAMUH (Plano Municipal de Habitação), fazendo planos municipais, para que o Estado, em articulação com os municípios, possa ir resolvendo problemas.

Realisticamente, qual é a sua expectativa? Até 2030, onde é que se pode ir na resolução destes problemas?

É difícil responder, porque tem a ver com recursos. Já temos uma meta que é, nos próximos cinco anos, concluir Sal e Boa Vista e começar a cidade da Praia, onde a situação é muito mais complexa. No topo dos défices, qualitativo e quantitativo, está Santiago, com a Praia a representar 70% dos défices da ilha e o interior 30%. Vamos começar de imediato com a Praia. Dentro de um programa do Banco Mundial, vamos ter um financiamento para iniciar com 500 famílias. Também estamos a trabalhar no quadro do PRRA (Programa de Requalificação, Reabilitação e Acessibilidades). O PRRA não vai parar e até há financiadores interessados para continuarmos com a vertente da requalificação urbana e reabilitação de habitações. Só no âmbito do PRRA, que é aquilo que o governo controla, são mais de três mil habitações e vamos continuar. Com os recursos que já temos garantidos, através do Orçamento de Estado, financiamento do PRRA, Banco Mundial e Fundo Nacional de Habitação, que não existe formalmente, mas está a ser montado, acredito que, do défice qualitativo, poderemos, até o final da legislatura, atingir 10 mil habitações. Se tivermos recursos, faremos mais.

Esta abordagem contraria a lógica de um único grande programa habitacional, privilegiando intervenções diferenciadas, consoante as circunstâncias. Porquê?

É esse o caminho, pensamos nós. A experiência que tivemos com o programa único e abrangente é que não é o melhor caminho. Continuamos há muitos anos em cima desse mesmo programa e ainda não conseguimos fechá-lo. Por isso é que envolvemos as câmaras, dizendo, “a orientação está aqui, digam-nos qual é o caminho que devemos seguir”. Se tivermos esse feedback municipal, será mais fácil trabalhar com pequenos programas, muito mais efectivos e sustentáveis. Neste momento, estamos a construir habitações por 1.500 contos. Na prática anterior, as habitações variavam entre 2.700 e 4.500 contos. Ou seja, estamos a puxar o custo da habitação, para que seja efectivamente sustentável, tanto para o Estado, como na renda que as famílias vão pagar.

Tocou num ponto que também foi identificado pelo Perfil do Sector de Habitação, como transversal a vários quintis de rendimento, e que se prende com a diferença entre o custo das habitações oferecidas pelo mercado e a disponibilidade orçamental das famílias. Como é que o governo pode intervir para tornar o preço da habitação mais acessível, não apenas para as classes mais desfavorecidas?

O PLANAH dá pistas e caminhos para se seguir, sem deixar o Estado isolado neste processo. O Estado é promotor, orientador, define políticas, mas, na prática, há muitos outros actores. A transversalidade do sector acaba por trazer à tona muitos actores. Um deles é o sector privado, incluindo as construtoras e a banca comercial. Também as organizações não-governamentais, as cooperativas e as instituições académicas são actores do sector da habitação. Há muitos actores que, a partir do PLANAH, têm que ver qual é o seu papel e trazer o seu contributo, para recentrarmos o sector e para que essa recentragem conduza à baixa do custo, para que as pessoas possam comprar casa por um preço mais justo e mais acessível, adequado aos seus rendimentos. Apenas 20% da população cabo-verdiana tem acesso ao crédito. O Estado não vai poder dar a mão a toda a gente e, por isso, todos os outros actores são importantes.

Planeamento

Parece-lhe que ainda temos uma fraca cultura de planeamento e ordenamento do território?

O planeamento e ordenamento do território é uma área que, muito recentemente, começou a ter impacto e interesse na sociedade. Somos ilhas e precisamos de planear, porque não temos muito território. Além disso, temos um território muito frágil, do ponto de vista ambiental. O planeamento é muito importante. Os últimos governos, seja do PAICV, seja este, vêm fazendo alguma coisa. Por exemplo, herdámos do governo anterior instrumentos de gestão territorial de hierarquia superior e que são orientadores, desde a directiva nacional, esquema de ordenamento do território, planos directores municipais, nem todos, mas a maioria. Faltaram os planos de pormenor, a parte mais importante, porque é onde as coisas acontecem. A esse detalhe ainda não tínhamos chegado. Este governo tem apostado muito nessa continuidade, de chegar aos planos detalhados. Para facilitar esse processo, a Lei de Bases do Ordenamento do Território e Planeamento Urbanístico foi revista, transferindo a competência de elaboração dos Planos Detalhados para os municípios, cabendo ao Estado fazer o acompanhamento. Com alguma tristeza, dizemos que, infelizmente, os municípios ainda não agarraram esta oportunidade, porque custa dinheiro e, quando custa dinheiro, é sempre mais difícil. Cada dia vemos que vai havendo mais interesse, mas a nossa expectativa era que, dando esta competência aos municípios, aconteceria mais rapidamente. Neste momento, estamos a apoiar vários municípios com recursos do Estado, directamente do Orçamento do Estado, para que estes façam os seus planos detalhados. Há iniciativas isoladas, de um ou outro município, em função de investimentos programados para uma determinada área, mas a rotina do planeamento do dia-a-dia ainda é uma conquista que temos que alcançar.

A questão das orlas marítimas é particularmente relevante, até no contexto das alterações climáticas…

A orla marítima sofre muita pressão, nomeadamente por parte dos investidores. Os investidores querem os melhores sítios e esses estão na orla. Sendo nós ilhas, queremos estar próximos do mar e as cidades vão crescer nas orlas. Se planearmos, mitigamos os problemas. Quando não planeamos, as autorizações vão acontecendo, as construções vão acontecendo e as áreas vão sendo ocupadas fora de um quadro planificado, o que se torna um problema mais tarde.

Cabo Verde está a fazer o que é preciso para se tornar mais resiliente perante, por exemplo, a subida do nível da água do mar ou a maior frequência de fenómenos meteorológicos extremos? Esta também é uma questão de planeamento e ordenamento do território.

Podemos querer fazê-lo, mas ter dificuldade em executar. Há um aspecto positivo, que é o facto de os investimentos, agora, serem todos controlados do ponto de vista ambiental. Os próprios financiadores internacionais, as organizações internacionais e parceiros multilaterais exigem que, em qualquer projecto, a questão do ambiente seja trabalhada. Estaremos, em certa medida, condicionados se não estivermos na linha certa. Sobretudo, este é um processo para mudar a atitude das pessoas, para entenderem que o nosso país é frágil, tem problemas e os projectos devem considerar esse aspecto de mitigação dos efeitos das mudanças climáticas.

Obras públicas

Houve uma mudança no perfil da obra pública em Cabo Verde?

Houve sim. A mensagem que se passou, que veio do lado da oposição, é que nós só fazemos pequenas obras. Contudo, quando se faz uma ligação do aeroporto de Rabil, na Boa Vista, para a povoação velha, que são 12 km, porque o aeroporto estava isolado, numa zona que não tinha estrada e era preciso passar por dentro de uma vila, numa estrada esburacada, isso é estruturante. A estrada para Tarrafal de Monte Trigo é estruturante, o porto do Maio é estruturante.

A maior estrada que estamos a fazer em Cabo Verde é uma estrada de 28 km, que começa na entrada da cratera do vulcão do Fogo, no município de Santa Catarina, atravessa toda a cratera, passa pelo Parque Natural, no município dos Mosteiros, desce até Campanas de Cima, entrando no município de São Filipe. Existem várias estradas de 28 km, agora, fazê-la de uma só vez, com a complexidade daquela estrada…

Muitas das estradas agora construídas complementam investimentos que já tinham sido feitos…

Fez-se a conexão entre as vias principais, que existiam no passado e que, entretanto, foram asfaltadas, e a população, continuava encravada. São obras que estão em curso e este ano muitas delas serão inauguradas.

O que destacaria da carteira de investimentos previstos?

Das obras rodoviárias, sempre se falou de terminar o anel do Fogo e fechar o anel de Santiago, Calheta-Tarrafal. Tanto o anel do Fogo, quanto a ligação Calheta-Tarrafal, estou convencida que são obras que vamos fazer neste mandato, mas ainda não tenho garantia do financiamento. Vamos deixar as coisas normalizar e ver se conseguimos.

Evito entrar no passado, mas às vezes tenho que dizer. Só não estamos a conseguir mais, porque estamos a pagar dívidas, muitas dívidas. Garantidamente, já este ano, vamos lançar e começar as obras da estrada Palmeira-Espargos-Santa Maria, no Sal. É uma estrada cujo tempo de vida está esgotado e estamos com paliativos. Vai ser uma requalificação profunda, que não só reabilita a estrutura técnica da estrada, mas também vai ornamentar, pôr placards de publicidade, iluminação, para dar uma visão diferente da ilha, a partir do aeroporto.

Cálculo que, no actual contexto, o financiamento dos projectos também seja uma dor de cabeça.

Sim, porque é muito dinheiro. Mas digo-lhe uma coisa, se há coisa que conseguimos foi recentrar os custos das empreitadas. Conseguimos baixar muito os custos, através da gestão do processo, de tomar as rédeas do processo e de não ficar nas mãos do empreiteiro. Não lançar obras sem projecto. Quando se tem o projecto, definem-se regras e ainda que não se tenha o projecto de execução, com o anteprojecto definem-se todos os parâmetros.

Em que ponto está a execução do PRRA?

Não fosse a pandemia, o PRRA já estaria, não digo 100%, porque é muito difícil, mas nuns 80%. Terminámos o primeiro mandato com o PRRA a 50%. O PRRA é muita coisa. É uma transversalidade de execução e de edificações de extrema utilidade, dinamiza a economia local, melhora a qualidade de vida das pessoas, desencrava a população. Veja-se o património valorizado que agora é visitado. A pandemia apanhou-nos e descemos o ritmo. Neste momento, estamos a retomar. Tivemos a perícia de criar os social bonds (obrigações sociais) para resolver problemas sociais através da banca. Já conseguimos montar esse veículo financeiro e as câmaras municipais já retomaram as suas obras, no quadro dos contratos-programa. Nos próximos dias, deveremos fechar o mesmo mecanismo para os empreiteiros, para pagar as dívidas e terminar as obras em curso que são responsabilidade do Estado.

Tem ideia do valor que já foi mobilizado através desse mecanismo de financiamento?

Para as câmaras municipais, 920 mil contos. Com os empreiteiros serão cerca de três milhões de contos.

Porque é que o país não tem uma política de manutenção de infraestruturas?

Porque ainda não há um Plano Nacional de Infraestruturas que englobe a manutenção das infraestruturas. Cada sector tem as suas infraestruturas e não há uma gestão integrada das infraestruturas. À semelhança do que fizemos com a habitação, estamos a preparar o Plano Nacional de Infraestruturas e, aí sim, vamos ter as orientações quanto à manutenção. A manutenção é um problema, só que cada sector faz a sua manutenção. Acontece que somos sempre chamados, porque somos o braço do Estado para tudo o que é infraestruturas. O conhecimento e a tecnicidade residem no Ministério das Infraestruturas. Aguardamos expectantes que o Plano Nacional de Infraestruturas tenha essa componente de manutenção, para levarmos os sectores, os municípios, a ter uma atenção à manutenção, porque isso reduz os custos. Quanto menos manutenção fizermos, mais reabilitação teremos que fazer. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1052 de 26 de Janeiro de 2022. 

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Autoria:Nuno Andrade Ferreira,29 jan 2022 9:30

Editado porAndre Amaral  em  20 out 2022 23:27

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