A 19 de Março de 2021 assinalava-se o primeiro ano da covid-19 em Cabo Verde. O calendário pandémico começara a contagem em 2020, quando a primeira infecção com o SARS-CoV-2 foi confirmada. O país “resistira” cerca de três meses, desde que em finais de 2019 surgiu a epidemia, na China, e daí se propagou por todo o mundo, tornando-se uma pandemia. Era uma questão de tempo, portanto, até chegar cá.
Depois de o primeiro caso ter sido diagnosticado na Boa Vista, um turista britânico que se tornou também a primeira vítima mortal da doença no país, sucederam-se os diagnósticos. A ilha foi isolada. Depois as outras. Os voos fechados. O vírus espalhou-se. Foi declarado o Estado de Emergência e decretado o confinamento. A vida como a conhecíamos mudou.
“Havia muita ansiedade, pânico, mas mesmo assim a informação científica que foi disponibilizada, na altura, permitiu-nos ir dando respostas. As condições eram essas e penso que a nível de Cabo Verde, o resultado foi bastante satisfatório”, avalia à distância o director nacional de Saúde, Jorge Barreto.
No segundo semestre, já com mais conhecimento do vírus, algumas restrições estavam a ser levantadas, mas a desejada “normalidade” estava longe e ainda imperava o medo.
E quando o primeiro ano da covid em Cabo Verde terminou o balanço estatístico era o seguinte: “503 casos activos, 15699 casos recuperados, 159 óbitos, 5 óbitos por outras causas e 8 transferidos, perfazendo um total de 16374 casos positivos acumulados”, de acordo com o boletim epidemiológico de então.
Ano II
O ano II do calendário da pandemia começou com um pico de infecções que, como destaca Jorge Barreto, constituíram aquela que foi a pior fase em Cabo Verde
Entre Março e Junho de 2021, “tivemos o pico com a variante Alfa. Ainda não tínhamos começado a campanha de vacinação, e, portanto, ainda não tínhamos uma população minimamente protegida”.
“Foi a situação mais critica”, considera o DNS.
Os casos semanais quase roçavam a média dos 300 e o número de mortes bateu recordes, chegando às 5 por dia. Assim, e embora em Janeiro de 2022, no pico de infecções pela variante Ómicron os casos diários chegassem a mais de mil (o pior dia foi 7 de Janeiro quando foram identificados 1469 novos casos) a taxa de mortalidade foi muito menor e a situação não foi, pois, tão má.
“A variante Ómicron, de facto, provocou muito mais casos, mas em termos de gravidade teve menos impacto. Isso tem a ver por um lado com as características da própria variante - a Ómicron é menos virulenta - e por outro lado tem também a ver com o facto de a maior parte da população já estar vacinada, pelo menos com uma dose da vacina, o que acabou por proteger”, analisa Jorge Barreto.
Depois do pico de Janeiro de 2022, Fevereiro viu uma diminuição acentuada dos casos.
“Esperamos, se não houver alguma outra variante de preocupação, que tenhamos agora condições para ir retomando as actividades, para que as pessoas não sintam mais o impacto negativo desta pandemia que já dura há mais de 2 anos”, diz Jorge Barreto.
Vacinação
Apesar da importância de todos os cuidados preventivos, a principal razão para o sucesso da luta contra a pandemia é a vacina.
A corrida à imunização, como se sabe, começou logo a seguir à pandemia ser decretada. Em Abril de 2020, antes ainda da aprovação de qualquer vacina, foi criada a COVAX, um mecanismo pela OMS e outros parceiros, para aquisição e distribuição de vacinas contra a covid-19, garantindo o acesso dos países mais vulneráveis às mesmas.
O processo levou o seu tempo a ser efectivado, e numa primeira fase os países mais desenvolvidos açambarcaram as doses disponíveis. Ainda antes do fim de 2020, a vacinação arrancou em alguns países. Os restantes esperaram por 2021.
Em Cabo Verde, com a aprovação das vacinas pela OMS, o país estabeleceu em Fevereiro o seu Plano Nacional da Vacinação para a COVID-19 e, num primeiro momento, tendo em conta esse cenário global, de muita procura e pouca oferta de imunizantes, a meta previa que 60% da população fosse vacinada contra a doença entre 2021 e 2023, ao ritmo de 20% ao ano.
A meta estava alinhada com a estabelecida pela COVAX, que pretendia que todos os países vacinassem pelo menos 20% da população.
“Depois foi-se entendendo que, para haver impacto, para que houvesse de facto um efeito protector da vacina, ter-se-ia de vacinar muito mais pessoas”, recorda o DNS. Era necessário vacinar 70% da população e essa passou a ser a meta.
A 12 de Março, chegavam a Cabo Verde as primeiras vacinas: um lote de 24 mil. A 18 de Março, dava-se a simbólica primeira imunização e no dia seguinte, a 19, precisamente quando o calendário da covid no país entrava no seu segundo ano, arrancou a campanha de vacinação.
Começou-se pelos grupos prioritários e, dentre estes, pelos profissionais de saúde. Mas, rapidamente, e à medida que milhares de doses foram chegando ao país, quer através da COVAX, quer de outros parceiros directos, o âmbito foi alargado a todos os residentes maiores de 18 anos.
“Nesse período, o Estado de Cabo Verde trabalhou, fez uso da sua diplomacia da melhor forma e isso acabou por resultar na disponibilização de doses de vacinas suficientes para que se pudesse vacinar a maior parte da população elegível”, diz Barreto.
Em Dezembro de 2021, também os jovens entre 12 e 17 anos começaram a ser vacinados.
Falando de números, e segundo o último boletim de vacinação disponível, a 27 de Fevereiro, 85,5% da população elegível no país estava vacinada com a primeira dose, 73,2% já com a segunda dose e 11,6% com a dose de reforço. Nos jovens, a percentagem de vacinados é de 76%. Ao todo, foram aplicadas 680.365 doses.
“Os resultados estão aí. Penso que foi uma operação muito bem implementada. E dá-nos gosto ver que, para além do governo ter feito um esforço para disponibilizar as vacinas, a maior população também aderiu à campanha de vacinação, o que acabou também por permitir momentos de calmaria em termos epidemiológicos”, mesmo com o pico da Ómicron, observa o DNS.
Mais vacinas?
Quanto às vacinas pediátricas, para crianças entre os 5 e 11 anos, que alguns países já estão a aplicar, Cabo Verde também tem perspectivas de proceder à sua aplicação.
“Entendemos que é bom se todas as pessoas que forem elegíveis puderem ser vacinadas, porque vão estar protegidas”. Inclusive as crianças que, embora geralmente não apresentem quadros tão graves podem apresentar situações preocupantes ou sequelas e complicações, mesmo a nível, por exemplo, do desenvolvimento devido aos confinamentos. Assim, também a vacinação nesta faixa etária é defendida.
Contudo, mais uma vez, surge aqui o constrangimento do acesso, neste caso a doses pediátricas, pelo que ainda não há data para começar esta vacinação, embora já tenha havido manifestação de interesse do país.
“Estamos a aguardar através do mecanismo COVAX, ou então que algum país amigo de Cabo Verde, que já ofereceu vacinas possa também disponibilizar doses para que a vacinação de crianças de 5 a 11 anos possa ser feita, caso os pais autorizem”, avança.
Quanto à restante população (maiores de 12), a ideia é continuar a melhorar a taxa da dose de reforço, sendo que neste momento não está prevista uma 4.ª dose, embora não se descarte de todo essa hipótese.
“Vamos ter de analisar os resultados da vacinação. Sabemos que os vírus sofrem mutações, é uma evolução muito dinâmica, e teremos de ir acompanhando e adaptando as orientações e as recomendações à medida que vamos analisando a informação epidemiológica e científica produzida”, diz Jorge Barreto.
Prevenção
Ao longo dos dois últimos anos imensas investigações científicas foram realizadas e o SARS-CoV-2, que era desconhecido, é hoje um coronavírus sobre o qual se sabe muita coisa. Nomeadamente a nível da sua transmissão. Sabe-se, por exemplo, que a contaminação através do contacto com superfícies é residual e que o vírus se espalha pelo ar.
Em Cabo Verde, desde o início da pandemia, algumas medidas tomadas aquando do surgimento, como a desinfecção das ruas, foram abandonadas. Mas a maior parte pouco se alterou nestes longos meses. Entre as que ainda se mantém, destaca-se o distanciamento social, o uso de máscara e a higienização das mãos.
Cabo Verde tem, pois, continuado a insistir nessas medidas, mas, por exemplo, em termos da qualidade do ar e promoção de actividades ao ar livre, onde o risco de contágio é bem menor, pouco ou nada foi feito. Na verdade, várias actividades, foram vedadas, como o uso de esplanadas ou os recreios nos recintos abertos das escolas.
“Foi uma situação muito proteccionista, se calhar, de excesso de zelo, para evitar ao máximo um agravamento” da situação epidemiológica que é sempre de difícil gestão e traz constrangimentos vários, explica.
“Vamos ter de ver como a situação evolui e discutir as melhores soluções”, diz ainda o DNS, que acredita, porém, que as medidas preventivas poderão agora ser mais leves.
“Esperemos que não haja mais agravamentos, ou outra variante de preocupação – sabemos que há essa possibilidade – porque nós, de facto, precisamos voltar a fazer algumas coisas que fazíamos, até por causa da nossa saúde mental e dos outros aspectos”.
No cômputo geral, desde o início da pandemia somam-se: 55453 casos recuperados, 401 óbitos, 43 óbitos por outras causas e 9 transferidos, perfazendo um total de 55911 casos positivos acumulados.
E agora?
No segundo ano da covid não houve, um regresso ao Estado de Emergência e confinamento, mas todo o ano passou sob restrições, sendo que neste momento estamos na situação “mais leve” desde o início da pandemia: situação de alerta.
E os números são animadores. Ao fecho desta edição, 15 de Março, Cabo Verde contava com 5 casos activos e há mais de um mês que não se registam vítimas mortais.
E saindo dos casos, há também, pela positiva, uma maior capacidade laboratorial, uma taxa de vacinação ao nível de países desenvolvidos e muito mais conhecimento sobre o SARS-CoV-2. Os tempos não são tão assustadores como há dois anos.
Hoje Cabo Verde tem também o Nha Card, o certificado de vacinação e testes reconhecido internacionalmente, que permite um maior regresso à normalidade.
E quanto às perspectivas das autoridades da saúde para a evolução nos próximos tempos, diz Jorge Barreto:
“Penso que temos de estar optimistas, mas sabemos que há sempre a probabilidade de haver surgimento de uma outra variante. Infelizmente, vamos ter de ficar em alerta, mas o importante é o país continuar a ter condições para ir fazendo os diagnósticos, para ir seguindo a situação e também para dar a resposta em termos do tratamento ou do seguimento dos doentes para evitar complicações ou mortes”.
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COVID Longa
Antonina Vieira tem 30 anos e teve covid em Novembro de 2020. “Tive todos os sintomas da doença: febre, tosse, dores de cabeça, dores de garganta, dores no corpo, tudo. Os sintomas prevaleceram por mais ou menos duas semanas, o tempo que estive internada. Depois fui considerada recuperada”, conta.
Antonina “recuperou”, mas um ano e tal depois da infecção há sintomas que prevalecem. Ainda “sinto uma sensação de cansaço, fadiga ao subir escadas”diz.
Rosana Fernandes descobriu que estava com covid em Janeiro de 2021. “Não conseguia comer, tinha febre, dores no corpo e vomitava muito”. Foi dada como recuperada pouco depois. Mas hoje, mais de um ano passado, não se considera “100% recuperada”.
“Muitas vezes não consigo trabalhar porque sinto o corpo leve. Uma sensação de fraqueza que não me deixa fazer o trabalho como deve ser”, observa Rosana, que trabalha como empregada doméstica.
Daniel foi diagnosticado mais recentemente, em Janeiro de 2022. As dores de cabeça “muito fortes” e outros sintomas mais leves “tipo gripe” passaram, mas diz que tem muita “falha de memória”.
Os casos destes cabo-verdianos inserem-se naquilo que tem vindo a verificar-se em muitos ex-pacientes, em todo o mundo, e é referido como covid longa, pós-covid, ou síndrome pós-covid. Ou seja, são sintomas que persistem já fora do quadro da infecção “activa” e que se prolongam por tempo (ainda) indeterminado e que varia muito de pessoa para pessoa.
Em Cabo Verde ainda não foi realizado nenhum estudo, mas as autoridades de saúde têm conhecimento “que que há pessoas que tem sintomas que podem ser enquadrados na definição de covid longa”.
Entre os mais comuns estão a sensação de fadiga e os lapsos de memória, embora algumas também refiram distúrbios gastrointestinais.
Contudo, o seu tratamento não é diferenciado, nem parece haver motivo para tal.
“Não temos dados que nos indiquem que seja preciso uma medida diferente para a gestão desses casos”, diz Jorge Barreto. Assim, essas pessoas podem ser seguidas, normalmente, nas estruturas de saúde do país.
De qualquer modo, este é outro aspecto da pandemia que se irá continuar a observar para, caso venha a ser necessário, analisar “as melhores opções para dar a resposta”, garante o DNS.
*c/ Sheilla Ribeiro
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1059 de 16 de Março de 2022.