O ano de 2022 foi perspetivado como sendo de retorno a uma certa normalidade num mundo que começava a viver uma era de controlo da pandemia da COVID-19.
O mundo foi abalado por um processo nunca visto, cujas principais caraterísticas são a abrangência e a profundidade e que revelava com uma impressionante evidência a grande integração do mundo global.
Um vírus oriundo da cidade Huan, na China, espalhava-se a uma velocidade estonteante e atingia as mais recônditas regiões do globo, afetando praticamente todas as esferas da atividade social.
Conhecidos aspetos essenciais da epidemia e, sobretudo, criadas as possibilidades de imunização, foi possível algum controlo da pandemia que, entretanto, foi, também, marcada pelo ressurgimento de perspetivas obscurantistas e negacionistas que tiveram como resultado, para de além de milhões de vítimas evitáveis algum atraso no controlo da situação.
A pandemia pôs a nu as profundas desigualdades sociais e regionais que, também, caraterizam a fase atual da globalização, traduzidas nos factos de equipamentos, vacinas e medicamentos terem sido desigualmente distribuídos, condenando os mais pobres, mesmo nos países ricos, a adoecer e morrer mais países com excedentes de vacina recusaram-se a fornecê-los aos mais pobres e juntamente com outros instrumentos de controlo e combate à pandemia transformaram-se em armas de condicionamento político. Felizmente, Cabo Verde, possivelmente, pelo seu prestígio, gestão adequada dos recursos e reduzidas dimensões não conheceu esse tipo de discriminação.
No inicio de 2022, assiste-se em Cabo Verde, como em várias partes do mundo, a movimentos em direção a alguma normalidade com a redução das restrições à circulação de pessoas, alguma retoma económica, bem como das atividades desportivas, culturais e religiosas. Os sistemas de saúde e de educação, também, começaram a recuperar-se, mas em Fevereiro, esse movimento defrontou-se com uma barreira quase intransponível: a emergência da guerra na Ucrânia.
A Rússia, membro do Conselho de Segurança, órgão máximo da ONU, que deve zelar pela paz mundial, invadia aquele país, provocando milhões de deslocados, perturbando a economia mundial com especial impacto nos setores alimentar e o energético. A grande perturbação gerada na economia mundial, em processo de recuperação, teve graves consequências sociais, mais uma vez, desigualmente distribuídas. Como sempre, os países e as pessoas mais pobres são as mais afetadas.
Ainda que todas as implicações da Covid-19 na saúde das pessoas não tenham sido totalmente avaliadas, não restam dúvidas de que a saúde mental é das áreas mais afetadas, devido às implicações diretas da doença, mas sobretudo, pelos fatores ambientais a ela associadas.
A insegurança, o medo, o confinamento, a pobreza, o empobrecimento do relacionamento social, a impreparação dos sistemas de saúde mental para lidar com essa realidade, o acentuar do abandono e da exclusão dos doentes mentais, terão sido, seguramente, os fatores que mais contribuíram para o acentuar dos desequilíbrios mentais.
A depressão, ansiedade, a violência geral e a doméstica, o aumento do uso de substancias psicoativas, as tentativas de suicídio, o suicídio, o aumento das dificuldades relacionais dos adolescentes, a desestruturação de doentes mentais que tiveram o seu acompanhamento descontinuado, a desestruturação de pessoas que conseguiam conviver com as suas fragilidades emocionais terão sido as consequências mais notórias na esfera da saúde mental.
É claro que a eclosão da guerra, com as mazelas antes referidas, num contexto de alguma recuperação, também psicológica, foi muito problemática. Ela veio acentuar o sentimento de insegurança e medo e comprometer aspetos positivos nas esferas psicológica e social que se desenhavam.
As previsões relativamente à evolução da realidade sócio-económica no ano que se avizinha não são interessantes a nível global e seguramente não serão também para a nossa frágil e dependente economia e para a nossa sociedade. Assim, ao mesmo tempo que se deve procurar assegurar os equilíbrios macroeconómicos, é mandatório que uma atenção muito particular e concreta seja concedida às camadas mais vulneráveis da população, muito especialmente, aos que têm a sua saúde mental mais abalada ou em risco de a ter.
Num contexto em que se verifica uma grande dificuldade em lidar com doentes mentais e com pessoas em risco de desestruturação psicoemocional, como atesta o grande número de pessoas indefesas deambulando pelas ruas de algumas cidades, com destaque para as da Praia e de Assomada e em que o maior hospital psiquiátrico do país se encontra em obras que deverão demorar algum tempo, com impacto muito negativo nas respostas a essa população, medidas de emergência para esse setor muito mais do que uma necessidade são um imperativo ético.
Criatividade, ousadia, solidariedade é o que se espera do poder público que deve assumir as suas responsabilidades e, também, propor um debate com a sociedade sobre a participação dos seus diferentes setores nesse processo de proteção e amparo aos mais necessitados.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1100 de 28 de Dezembro de 2022.