São escritos que podem “ser um auxiliar precioso para compreender, para explicar e para avaliar aquilo que foi feito no período de 1990-2000, sobretudo”, acrescenta. Veiga lamenta, entretanto, que “infelizmente” a década de 90 não tenha sido objecto de estudo e que o próprio MpD nunca se tenha preocupado em apresentar a sua própria obra, cujos resultados “marcaram e continuam a marcar profundamente, de um modo consensual, em termos de princípios, de valores aquilo que Cabo Verde é hoje”.
O que quis transmitir aos cabo-verdianos com o seu livro, “Poder e Oposição em Cabo Verde”?
Eu quis, no fundo, deixar escrito e disponível para todas as pessoas que estiverem interessadas, nomeadamente os historiadores, investigadores, professores e jornalistas, um período da história contemporânea de Cabo Verde que me parece ser um período essencial. Eu acho que a matriz daquilo que hoje nós somos como instituição, como sociedade de alguma forma deve um pouco à década de 1990 e a tudo aquilo que foi feito nessa década. Infelizmente, este período não tem sido objecto de estudo, penso que devido a alguma dificuldade na obtenção de fontes fidedignas. Então, pareceu-me e a outras pessoas que me incentivaram a fazer isto, que um conjunto das intervenções que fiz nesse período podia ser um auxiliar precioso para compreender, para explicar e para avaliar aquilo que foi feito nesse período de 1990-2000, sobretudo.
Por que são hoje ainda relevantes os documentos integrados sobretudo na primeira parte do livro?
São, porque, no fundo, são documentos que balizam aquilo que foram os resultados dos dez anos do advento da II República. Portanto, os dez anos em que o MpD esteve pela primeira vez no poder, marcaram e continuam a marcar profundamente, de um modo consensual, em termos de princípios, de valores, aquilo que Cabo Verde é hoje. Um Cabo Verde que é hoje bem reconhecido lá fora, um Cabo Verde que fez a transição de um regime de partido único para um regime democrático em paz, com tranquilidade, um Cabo Verde que respeita os direitos fundamentais das pessoas, um Cabo Verde que soube pegar nas suas fraquezas e encontrar uma via para o seu desenvolvimento - não só para o seu crescimento económico, mas também para o seu desenvolvimento social, mesmo num contexto de penúria de fontes de rendimento, de penúria de riqueza. Foi possível fazer-se coisas na base de alguma ousadia, foi uma aventura, continua a ser uma aventura, uma aventura bonita, uma aventura democrática. Eu penso que o livro acaba por pôr à disposição de quem se interessa pelos traços essenciais o que foi esse período do qual todos os cabo-verdianos se devem orgulhar.
O seu livro tem mais de 700 páginas. Não seria mais avisado dividi-lo em duas partes?
O problema é se depois há paciência para fazer agora uma parte e depois a outra parte. Discutimos isso com a editora e com quem me ajudou na coordenação, mas acabamos por optar por publicar num só volume, até porque ainda há mais material. Não sei se vai surgir mais qualquer coisa, mas há ainda mais material, não especificamente em relação a este período, mas de outro tipo de intervenções que eu fiz ao longo desse tempo que já terminou. O meu activismo político já acabou.
Já não é figura pública como costuma dizer.
Não, já não sou figura pública, agora sou um simples cidadão.
Agora entrou na história.
Não, sinceramente que não faço questão disso. Não faço questão, no fundo, quero apenas ser visto como uma boa pessoa. Uma pessoa disponível, que procurou dar tudo de si por este país que eu amo porque fez de mim aquilo que eu sou. Não estou preocupado com o meu lugar na história, nada.
Falando de história. Nem o senhor, nem os anos 90 ocupam grande lugar nos manuais escolares. Os académicos e investigadores também não se interessam muito por esse período da nossa história contemporânea. Porquê?
Eu penso que se calhar muitos não viveram esse período e, de certa forma, a partir dessa primeira década [de 1990] houve uma viragem permitida pela democracia, uma alternância de poder e, portanto, também não houve a preocupação de escrever a história com a isenção com que ela deve ser feita. Por outro lado, o próprio MpD nunca se preocupou muito em apresentar a sua própria obra. De alguma forma fomos naïves, pensávamos que as ideias democráticas poderiam entrar na compreensão das pessoas por si próprias. Foi um erro, sobretudo porque o mundo evoluiu num sentido completamente diferente, em que as pessoas são atacadas, entre aspas, por um conjunto de ideias, de desinformação, falsidades que acabam por criar um ambiente de desorientação que não permite, a quem não viveu, que não conheceu o antes, valorizar aquilo que foi uma aventura de um grupo de pessoas que depois conseguiram fazer as coisas avançar. Então, eu acho que as pessoas ainda não pararam para reflectirem um pouco e questionarem: mas como é que isso aconteceu? Tivemos 15 anos de um regime de partido único, mas a maior parte das pessoas que hoje se dedicam à investigação não são dessa época. Não viveram esse período, eles encontraram a democracia instalada. Instalada com as suas alternâncias, como é próprio do sistema democrático, e, portanto, não valorizam esse período: valorizam mais o presente, perspectivam o futuro, mas esquecem-se um pouco do passado. Mas, se se esquecem do passado o próprio presente não é entendido tão profundamente como deveria ser e a perspectiva para o futuro também não é a melhor. Eu vejo como o Expresso das Ilhas nos seus editoriais, nos seus artigos, se esforça por mostrar um caminho, embora tenha sido difícil fazer com que as pessoas se interessem por esta fase. Interessam-se mais pelo presente e o resto fica para trás. Pior, e isto é mais grave, a Educação que devia fazer esta história, não faz. Não tem feito, por isso, depois de muita pressão eu disse: ok, vamos lá fazer uma colectânea e depois logo se verá. Para preservar a memória futura e pô-la com facilidade nas mãos das pessoas.
Não acha que os nossos investigadores estão mais focados no nosso passado esclavagista, na nossa africanidade do que na nossa cabo-verdianidade e na nossa insularidade?
Isso é importante de se fazer, mas é preciso não esquecer algo que do ponto de vista civilizacional seria uma ruptura. Nós vínhamos por um caminho que interpretava de uma forma a história de Cabo Verde, mas conseguimos, através de um movimento verdadeiramente popular, reverter essa tentação de encaixar a evolução e a cabo-verdianidade numa perspectiva mais universal. Se hoje nós somos considerados na comunidade internacional e, de um modo geral e independentemente de se falar de um país ou de um continente ou de um outro, Cabo Verde é bem visto em termos internacionais é por aquilo que se iniciou com a independência, naturalmente, mas sobretudo por aquilo que se iniciou em finais dos anos 90 e prosseguiu até hoje. Repare, quando nós começamos, o nosso adversário, portanto o regime de partido único, tinha um programa radiofónico fortíssimo chamado “Nada de Aventuras”. Nós respondemos: sim, a gente quer a aventura da liberdade e da democracia. E eu acho que é isso que faz de Cabo Verde um país que é considerado por todos e é esse modelo que a grande maioria dos cabo-verdianos quer continuar a ter.
Esse modelo teve também alguns desvios: vivemos em grande crispação política e o país está em campanha permanente...
Mas isso resulta de uma fraqueza de cultura política. Eu acho que não se deu a devida atenção a uma cultura política de liberdade e democracia que fosse amplamente assumida e levada ao conjunto do povo cabo-verdiano. É claro que o povo cabo-verdiano quer democracia, mas depois em que é que isso de traduz, a que é que isso obriga? Não temos muita noção disso. Então, a ideia de que o dissenso é elemento essencial da democracia quase que não é cultivada. O que temos é o ataque, contra-ataque, o ataque, contra-ataque. Ou seja, o dissenso permitindo consensos não existe na nossa cultura democrática até hoje e precisa ser mais desenvolvido. Eu acho que os editoriais do Expresso das Ilhas têm insistido muito neste aspecto. A própria Constituição de Cabo Verde foi feita pensando que o dissenso pode trazer consenso. O dissenso não é mau se, no fundo, esse dissenso se inserir num quadro democrático com o objectivo de conduzir a consenso. Então é preciso encontrar esse caminho. O essencial para a democracia é que as opiniões se exprimam e que essas opiniões acabem por construir os consensos que são possíveis na sociedade cabo-verdiana. Pelo contrário, quando não se faz essa apologia do consenso, quando não se tenta esse consenso, acaba-se por criar bloqueios que têm reflexo na vida das pessoas e acabam por criar um espaço para populismos e para tomadas de posição anti-democráticas.
Uma questão eterna: a abertura política foi uma dádiva do então regime de partido único ou foram forçados a iniciar a abertura política?
Eu acho que os textos são claros: dádiva não houve nenhuma. Basta ler a declaração política do MpD logo em Março de 1990 que rejeita completamente a tal abertura oferecida que não conduziria à abertura democrática, não conduziria ao 13 de Janeiro, não conduziria à Constituição da República de Cabo Verde de 1992 que ainda nos rege e não conduziria a este ambiente que continuamos a ter. Sinceramente, não vejo como se pode continuar com a tese de que foi uma dádiva. Quer dizer, Cabo Verde era um país dependente da ajuda internacional, os países que ajudavam Cabo Verde lançaram um aviso muito forte: democratizem-se ou então a cooperação para o desenvolvimento pára. Portanto, não havia outra solução. Eu acho que o então regime cabo-verdiano acabou por ser inteligente. Fez uma tentativa no seu próprio campo de interesses. Mas o movimento que veio a dar origem ao MpD disse logo: não, não é isso o que nós queremos, é outra coisa, é democracia mesmo. A declaração política é muito clara nos pontos essenciais. É também necessário dizer que o regime respondeu à nossa proposta de negociações para uma transição pacífica e nessa transição pacífica, depois de muita discussão desde o início, em que a outra parte dizia que nós tínhamos zero deputados e portanto se conseguíssemos um ou dois ou três deputados nas próximas legislativas isso já seria uma vitória, desde isso até depois ter-se chegado a um ponto em que a generalidade das nossas propostas se impuseram...Portanto, na realidade não foi dádiva nenhuma. Foi conquista.
Qual foi o seu papel em todo esse processo?
O MpD no início, nas nossas primeiras reuniões, nem sequer tinha um coordenador. No dia em que a gente se reunia escolhíamos uma pessoa que dirigia a reunião, mas depois chegamos à conclusão que tínhamos que ter um coordenador e eu fui escolhido. Portanto, fui esse coordenador. Mesmo como presidente do MpD continuei a ser coordenador com órgãos a funcionarem de uma forma colegial muito forte. No MpD toda a gente quis falar, toda a gente quis exprimir a sua opinião e toda a gente tinha oportunidade de exprimir a sua opinião. Por isso é que as reuniões dos órgãos do MpD demoravam horas e horas, porque toda a gente tinha opinião e toda a gente devia ser escutada. Foi pelo menos a prática que eu adoptei e eu acho que foi um dos segredos de termos conseguido os resultados que conseguimos. Depois tínhamos uma ideia muito clara do que era necessário fazer. Essa ideia estava no programa do MpD, um programa do governo que até tem um esboço da Constituição. A partir do momento em que ganhamos, seguimos o programa e fomos fazendo aquilo que tínhamos prometido fazer. Portanto, de um modo geral, aquilo que prometemos, conseguimos fazer. Qual foi o meu papel? Primus inter pares, acho que isso é que eu fui. Fui primus inter pares por escolha das pessoas. Ponto final.
Na segunda parte do livro você faz um balanço dos dez anos da acção governativa. Podia referir-se às grandes reformas empreendidas nos dois governos constitucionais que dirigiu?
A primeira é a Constituição. Acho que esse é o grande marco. Mas em termos institucionais nós mudamos tudo. Mudamos tudo não só em termos de instituições nacionais, mas também com a criação de um poder local forte que ainda hoje funciona. Eu penso que esta foi uma das melhores coisas que nós fizemos: criar um poder local forte, próximo dos munícipes, com capacidade para resolver os seus problemas. Depois é a mudança do regime em que as pessoas eram oprimidas e perseguidas por se exprimirem, por se manifestarem, em que a imprensa era condicionada, ou era única como tudo o mais, as próprias manifestações culturais eram únicas; as pessoas não tinham liberdade nem do ponto de vista cultural, nem do ponto de vista corporal, pois precisavam da autorização da Segurança para poderem viajar; a criação de um ambiente de liberdade e democracia; a independência da justiça e das próprias actuações das forças policiais ou das forças armadas; os símbolos nacionais que passaram a ser símbolos representativos de Cabo Verde e mais adequados àquilo que são os cabo-verdianos e a nação cabo-verdiana. Eu digo que também lançamos as bases para o desenvolvimento, uma vez que 15 anos depois da independência nós estávamos num crescimento económico zero. Ao fim dos primeiros 10 anos, quando saímos do poder o país tinha crescido economicamente a uma taxa média de 8%, foi uma mudança fundamental do sistema económico. O Estado era tudo na economia e com tendência ainda para ser mais que tudo, e nós apostamos no sector privado, apostamos na desregulamentação de algumas matérias que eram regulamentadas, que serviam mais como uma forma de beneficiar amigos do que os próprios cidadãos. Nós passamos a poder comer maçã, nós passamos a poder comprar livremente os nossos produtos, etc. Reforçamos os direitos sociais nas primeiras revisões da Constituição. Existe um livro do Mário Silva sobre os direitos sociais em Cabo Verde que demostra isso muito bem. Claro que o mundo mudou e a governação não se faz como nos anos 90, mas os princípios fundamentais permanecem, as estratégias fundamentais de levar tudo isso às pessoas continuam a ser válidas.
A sua carreira não foi só sucesso, conheceu também derrotas. Vive bem com esta situação?
Sem problemas, estou de consciência tranquila. Acho que fiz tudo o que pude: quer nas derrotas como nas vitórias apresentei-me para servir Cabo Verde. As opções dos cabo-verdianos, eu respeito-as. Ponto final.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1124 de 14 de Junho de 2023.