“Se as referências em torno do modelo democrático constitucional começam a ser questionadas, as democracias começam a ficar em perigo”

PorAndré Amaral,16 jul 2023 15:47

Francisco Assis, Presidente do Conselho Económico e Social de Portugal
Francisco Assis, Presidente do Conselho Económico e Social de Portugal

Francisco Assis, antigo deputado europeu e actualmente presidente do Conselho Económico e Social de Portugal, esteve recentemente em Cabo Verde. Nesta conversa com o Expresso das Ilhas este político português faz um retrato da situação política internacional desde o extremar dos discursos políticos um pouco por todo o mundo à guerra na Ucrânia passando igualmente pela pressão migratória que se exerce sobre a Europa.

A polarização do discurso político a que vimos assistindo um pouco por todo o mundo é uma fase que os regimes democráticos estão a atravessar ou é um perigo para a democracia?

É uma fase e um perigo. A democracia baseia-se no reconhecimento do pluralismo e da conflitualidade existente nas sociedades e valoriza-a, até, como factor positivo e gerador de transformações e de progresso. Mas ao mesmo tempo tem de haver uma base de consenso em torno das grandes referências do modelo democrático e constitucional. Se essas grandes referências em torno do modelo democrático constitucional começam a ser questionadas, seja à esquerda ou à direita, e se aqueles que as questionam começam a adquirir expressão política, é óbvio que as democracias começam a ficar em perigo. Nesse sentido, naturalmente, tenho alguma preocupação com aquilo a que vamos assistindo. Neste momento, parece-me que o crescimento que se tem verificado mais é da extrema-direita e não da extrema-esquerda em vários países europeus. Tivemos recentemente a vitória de uma figura alemã de extrema-direita numa cidade da Turíngia, na Alemanha, o que é muito preocupante, porque todos os outros partidos se tinham, até, unido numa frente de rejeição. Vejo a situação em Espanha com enorme preocupação porquanto é um debate absolutamente radicalizado de um lado e do outro. Faz lembrar o período histórico que levou à Guerra Civil espanhola. Em França temos uma situação de uma enorme conflitualidade social e uma vida política bastante complicada, porque temos um Presidente centrista e depois uma extrema-esquerda e uma extrema-direita como alternativas e, aparentemente, há um esvaziamento do centro-esquerda e centro-direita que são pilares fundamentais da democracia. E, no continente americano, tivemos o caso do Brasil com Bolsonaro e nos EUA tivemos Trump, embora nos dois casos eles tivessem acabado por ser derrotados, o que também é um bom sinal.

Mas eles deram sinais de resistência...

Sim, deram, mas acabaram derrotados e as democracias, em qualquer dos países, prevaleceram. Agora, é evidente que há motivos de preocupação, isto falando dos espaços das democracias. Depois temos os espaços não democráticos que normalmente se tentam aproveitar das fragilidades das democracias. O caso russo é claramente um caso em que um governo autocrático, num país que é europeu, confiou que a Ucrânia não resistiria e que os países ocidentais se iam dividir. No fundo, o grande erro de cálculo de Vladimir Putin foi achar que as democracias são de tal maneira frágeis que não são capazes de resistir a uma agressão desta natureza.

Até onde pode ir a Europa relativamente à questão da Ucrânia?

A Europa tem feito o que se exige. Tem apoiado os ucranianos e deve continuar a fazê-lo sem ter qualquer tipo de hesitação nesse domínio. Não há nenhum sinal da Rússia de abrandamento da sua posição, de disponibilidade mínima para o diálogo e são eles que têm de manifestar essa disponibilidade porque são eles a entidade agressora. Aqui não há uma equidistância, não há essa ideia de que ambos são responsáveis. Isso é completamente falso. Há uma entidade que agride e há outra que é agredida e invadida e que está a ser destruída. Nós europeus e os norte-americanos temos mantido aqui uma solidariedade absoluta, e é isso que a Rússia não estava à espera. Uma atitude que temos de manter noutros fóruns e noutras questões internacionais e que envolve outras zonas do mundo além da Europa e dos EUA e que se reconhecem nos mesmos valores como é o caso aqui de Cabo Verde que é um exemplo de democracia que funciona como as democracias europeias. Estes países que têm o mesmo modelo têm a obrigação, a meu ver, de perceber que este modelo pode entrar em perigo quer internamente, devido a essa radicalização, quer externamente porque há países autocráticos que se querem aproveitar disto e que estão claramente a forçar as coisas no sentido de instabilizarem as nossas democracias e imporem os seus próprios modelos e os seus próprios interesses.

Mas a Europa também tem no seu seio países como a Hungria...

Sim, o problema da Europa é a Hungria e, de certa forma, a Polónia também tem alguns comportamentos [pouco democráticos]. A Europa tem lidado com esta preocupação chamando a Hungria à atenção, mas também sem a excluir. Tem havido aqui um misto de adesão a princípios e algum realismo político. O resultado de uma exclusão da Hungria da União Europeia poderia, eventualmente, ter efeitos mais perniciosos do que vantagens. Tem de se manter uma pressão muito grande relativamente à Hungria, mas é evidente que o caso húngaro nos debilita e é fonte de preocupação para todos os países europeus.

Como é que viu o caso da rebelião do Grupo Wagner na Rússia?

Não temos muita informação na medida em que os russos, com o seu sistema autocrático e ainda por cima em guerra, não a fornecem. Mas aparentemente significa que há grandes problemas no interior da Rússia. As coisas notoriamente que não correram como os russos estavam à espera, porque pensavam que em poucos dias estariam em Kiev e fariam o que fizeram com a Crimeia e pensaram também que não haveria resposta ocidental. Houve. E agora é notório que a Rússia está com enormes dificuldades e quanto mais se agudizarem essas dificuldades mais se acentuarão as divisões no interior da própria Rússia, o que também é preocupante. Mas isso também é preocupante, porque uma potência nuclear entrar numa situação de guerra civil seria muito perigoso para todos nós. Mas os sinais são inquietantes.

Sente que a guerra civil é uma possibilidade real?

Não sei. Não temos conhecimento do que se passa no interior da Rússia para saber se é real ou não. Mas parece-me que isto foi um sinal de que há tensões fortíssimas no interior da Rússia, quer a nível do aparelho militar ou paramilitar e provavelmente essas tensões também começarão a sentir-se na elite e no povo russo. A União Soviética dissolveu-se em grande parte na sequência da guerra no Afeganistão. As guerras perdidas têm, normalmente, um efeito terrível para os dirigentes que as promovem. O regime militar argentino caiu na sequência da Guerra das Malvinas. Pode acontecer o mesmo no caso russo. Não sabemos. O que sabemos é que a Europa tem de manter a posição que tem tomado e é muito importante que esta posição europeia tenha apoios no resto do mundo e tem poucos. Na verdade, temos verificado que noutros continentes eles olham para isto como se fosse um problema do mundo ocidental e do Norte Ocidental, mas não é. É um problema da Humanidade. Daí que seja importante estabelecer pontes e ter parcerias com os países que estão connosco neste momento difícil.

Por causa da guerra na Ucrânia os orçamentos do sector da Defesa aumentaram. Percebendo-se a razão do investimento, não é de criar alguma preocupação?

Mas era inevitável. Todas as coisas têm um verso e um reverso. Aliás, os países europeus tinham um compromisso, no âmbito da NATO, de aumentar a despesa militar para 2% do PIB e poucos estavam a concretizar isso. A Europa não pode ficar totalmente dependente dos EUA e nem podemos pedir aos EUA que sejam eles a assumir isoladamente a defesa do Ocidente. Este aumento era uma inevitabilidade. A guerra veio demonstrar que para assegurarmos a nossa liberdade temos de ter uma política de segurança sólida e que essa política de segurança implica um aumento dos orçamentos militares. É uma inevitabilidade. Não se poderia querer responsavelmente agir de uma forma diferente.

Falando de migrações. A Europa tem estado sob grande pressão migratória vinda do Norte de África. O papel da Europa tem sido correcto?

Há vários papéis, porque há vários países. É uma matéria que diverge muito de país para país e, depois, em cada país muda muito de governo para governo. A questão fundamental é esta: a Europa precisa de imigrantes e tem de ter consciência disso. Por outro lado, também tem de haver a regulação dos movimentos migratórios. Até porque nós sabemos que há grandes grupos criminosos que estão ligados ao tráfico de seres humanos e, aparentemente, também há potências externas, como a Rússia, que incentivam tudo isso. O erro, a grande dificuldade da Europa é nós não conseguirmos articular devidamente as diferentes políticas dos Estados-membros. Mas isso não é uma responsabilidade da União Europeia é uma responsabilidade dos Estados-membros, e de alguns deles em particular. Estive há alguns anos na Itália, em Nápoles, num encontro internacional sobre isto e o que se percebia era que há uma grande pressão sobre a Itália e sobre a Grécia. Mas as pessoas que chegam às costas desses dois países não querem ficar na Itália ou na Grécia, o objectivo é chegar a outros países europeus. Nós devíamos ter sido mais solidários com a Itália e com a Grécia. Isso, de facto, foi um falhanço. Por outro lado, os demagogos, como é o caso de Viktor Orban, inventaram esse problema num país onde ele nem sequer existe, porque não há um problema de imigração na Hungria. Mas houve um momento em que houve um trânsito de refugiados que vinham da Síria a caminho da Alemanha e que atravessaram o território da Hungria e ele inventou esse problema como todos os demagogos e potencialmente autocratas. Não há dúvida nenhuma que tem havido um falhanço de alguns governos, há o caso radical da Hungria, que é um caso limite de inobservância de princípios fundamentais e em desacordo total com aquilo que proclamamos como valores europeus. E isso debilita muito a posição europeia. É um processo em curso, não haverá milagres neste domínio. Agora quando morrem centenas de pessoas, como aconteceu recentemente na Grécia, em situações absolutamente trágicas, creio que nós como europeus temos de fazer uma reflexão interior e pensar bem em que respostas estamos a dar a esta tragédia. Somos um continente globalmente muito desenvolvido e temos a obrigação de atender a esta vontade destas pessoas sendo certo que os fenómenos migratórios têm de ser devidamente regulados.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1128 de 12 de Julho de 2023. 

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Autoria:André Amaral,16 jul 2023 15:47

Editado porEdisângela Tavares  em  10 abr 2024 23:28

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