Não são de agora os apelos por mudanças profundas na organização multilateral global. Ao longo dos anos, têm aumentado as vozes que alertam para a disfuncionalidade do quadro institucional vigente, desenhado no rescaldo da II Guerra Mundial, muito longe do multipolarismo do século XXI. No campo financeiro, lideranças políticas e especialistas apelam a uma nova arquitectura, que ofereça aos países em desenvolvimento oportunidades de financiamento em condições vantajosas. Permitir a infraestruturação, resolver as crises de dívidas soberanas e responder às mudanças climáticas são prioridades.
O tema esteve em destaque, em Nova Iorque, na semana de alto-nível das Nações Unidas, com várias intervenções no mesmo sentido. Foi o caso do Primeiro-Ministro. Ao discursar na Assembleia Geral da ONU, Ulisses Correia e Silva lembrou o contexto global difícil, pretexto para acelerar o passo.
“Deve ser motivo para implementar reformas na arquitectura financeira internacional, operacionalizar instrumentos de financiamento climático e ambiental, aumentar substancialmente os direitos especiais de saque, aliviar a dívida dos países menos desenvolvidos”, referiu.
O chefe de governo apelou à implementação efectiva do Índice de Vulnerabilidade Multidimensional, enquanto critério de acesso a financiamento de baixo custo.
Já antes, e do mesmo palanque, o secretário-geral da ONU, António Guterres, tinha dito que a governação global está “parada no tempo” e que a comunidade das nações está cada vez mais perto de uma “grande fractura”. Além de mudanças nas instituições eminentemente políticas, o líder das Nações Unidas pediu (mais uma vez) reformas, “disfuncional, ultrapassada e injusta” a arquitectura financeira.
Outros responsáveis foram pelo mesmo caminho. João Lourenço, Presidente de Angola, avisou que é “urgente e imperativo o apoio real ao desenvolvimento por via do financiamento”. Patrice Trovoada, primeiro-ministro de São Tomé e Príncipe, apontou o dedo aos países mais ricos “que continuam a ignorar os objectivos sociais e ambientais [dos países pobres], negando o acesso a recursos financeiros em quantidades e condições razoáveis”. Alberto Fernandes, chefe de Estado argentino, denunciou que “o sistema financeiro internacional não mostra vontade de se adaptar a um mundo que requer a recuperação da equidade”.
Mas o que significa e no que se traduz essa “nova arquitectura financeira internacional”? Será que precisamos dela?
Para o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, José Brito, mais do reformar o sistema internacional, é necessária uma verdadeira “transformação”.
“Se continuarmos a insistir na reforma do sistema internacional, na reforma do Banco Mundial e do FMI, não vamos conseguir, porque o sistema de governo destas instituições defende os interesses de uma parte do mundo e não das novas realidades”, comenta.
“Prefiro falar de transformação do sistema internacional, baseada na responsabilidade colectiva. Nós somos responsáveis perante o nosso desenvolvimento”, insiste.
O peso crescente dos BRICS, que anunciaram na cimeira de Agosto, na África do Sul, o alargamento a outros países, e do G77+ China (que. na realidade junta mais de uma centena de Estados, incluindo Cabo Verde), demonstra o compromisso com a construção de uma alternativa de poder a partir do sul global, tendencialmente desalinhada do ocidente.
O economista moçambicano, João Mosca, admite que com um novo sistema financeiro internacional será possível contrabalançar as imposições feitas pelas economias mais desenvolvidas. A diversificação de fontes de financiamento ajudará “a que haja, de facto, concorrência”.
“Por exemplo, se aparecerem os estados árabes, a China ou a India, com grande poder de financiamento, isso acabará por ser um contrapeso importante face àquilo que o actual sistema está a impor aos nossos países, com as economias menos desenvolvidas cada vez mais subdesenvolvidas e as desenvolvidas cada vez mais desenvolvidas”, nota.
O economista guineense, Santos Fernandes, não tem dúvidas de que é necessário “um novo multilateralismo” que vá além dos acordos de Bretton Woods.
“O mundo evoluiu, até em termos populacionais. Africa apresenta uma pujança em termos de população jovem muito significativa e todas estas questões merecem uma nova abordagem, um novo input”, exemplifica.
A “nova abordagem” pode ser particularmente importante para países com altos níveis de endividamento, em que o serviço da dívida tem um peso extremo, capaz de bloquear a afectação de recursos para investimento.
“O custo do serviço desta dívida é pesado para muitos dos nossos países, razão pela qual muitos apelam no sentido de converter essas dívidas em projectos estruturantes ligados ao ambiente, sector agrícola e por aí fora”, confirma.
Levar dinheiro aos países que dele mais necessitam. A ideia é simples, mas de difícil operacionalização. O economista cabo-verdiano, José Agnelo Sanches, liga as disfuncionalidades existentes com a concretização dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).
“Há muito dinheiro, mas o dinheiro não vai para os que mais precisam. A arquitectura actual não favorece a realização dos ODS. Quando se reclama uma nova arquitectura, isso seria a criação de condições para a realização dos ODS”, enfatiza.
O combate aos fluxos financeiros ilícitos é uma prioridade suplementar estabelecida por Agnelo Sanches. “Não podemos estar a pedir e ao mesmo tempo desperdiçar aquilo que temos”, simplifica.
Desigualdades sociais, migrações irregulares, dívidas soberanas, sustentabilidade e clima. Para os especialistas ouvidos pelo Expresso das Ilhas estes desafios só poderão ser resolvidos com instituições financeiras globais alinhadas com as realidades de um mundo multipolar, onde todos reivindicam o direito a ter voz própria.
*com Fretson Rocha e Lourdes Fortes
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1139 de 27 de Setembro de 2023.