O principal desafio das universidades em Cabo Verde está bem identificado e é consensual: é a sustentabilidade financeira.
Graciano Nascimento, membro do Conselho Científico e Director do Departamento de Ciências Sociais da Universidade do Mindelo, não tem dúvidas sobre isso e sublinha que medidas de política são necessárias para abordar este desafio.
No seu entender há três aspectos fundamentais que se devem ter em conta. O primeiro, é “parar de incentivar os estudantes a saírem do país para a sua formação quando cursos equivalentes estão disponíveis em Cabo Verde”, o que reduz inclusive os custos para as famílias.
Salvaguardando que cada família é livre de escolher onde quer que o seu filho estude, o que para o académico “não é normal” é que sejam os próprios “poderes públicos” a encorajarem essa saída.
Uma segunda medida seria haver políticas de incentivo para a criação de residências e cantinas universitárias por forma a garantir condições adequadas de alojamento e alimentação para estudantes de outras ilhas que desejem estudar nos principais centros do ensino superior - Santiago e São Vicente.
“O poder público não pode lavar as suas mãos nessa matéria, porque as universidades contribuem para o desenvolvimento do país”, aponta.
Por fim, o terceiro aspecto é aumentar as bolsas de estudo, tanto em quantidade quanto em valor, para apoiar os estudantes, que enfrentam desafios financeiros que vão além das propinas.
“Penso que essas três medidas são fundamentais para que o sector esteja organizado de forma clara, para que cada instituição de ensino superior possa saber posicionar-se para o seu papel no desenvolvimento do país”, defende.
Menos alunos
Nos últimos tempos, os partidos políticos têm discutido a redução da procura de alunos nas instituições de ensino superior (IES) do país. De acordo com todos os docentes entrevistados, essa redução é, sim, real e um problema em todas as Universidades. E não só se verifica a redução na entrada de novos alunos, como uma taxa de abandono universitário enorme, relacionada com restrições financeiras das famílias e a falta de incentivos financeiros e apoio adequado.
O abandono começa logo nos primeiros meses, verificando-se uma grande discrepância entre o número de alunos que ingressam e os que permanecem. Isto porque muitos estudantes candidatam-se na esperança de conseguirem uma bolsa de estudo ou da FICASE, ou de alguma Câmara Municipal. Quando as listas saem, se a bolsa não lhes for atribuída, desistem.
Na Universidade Jean Piaget estes fenómenos são também sentidos e o principal problema é os estudantes conseguirem custear os seus estudos. Isto era um constrangimento que se sentia há alguns anos, mas que se agudizou com a pandemia.
Na verdade, nota a reitora, Joanita Rodrigues, os estudantes querem estudar, matriculam-se, mas a meio percurso regista-se uma taxa significativa de absentismo e abandono, pois não conseguem pagar as propinas. Neste momento, avança, há uma dívida dos estudantes à universidade acima dos 50 mil contos.
Tal como o seu colega da universidade do Mindelo, também esta professora doutora aponta que os programas de bolsas de estudo são insuficientes. Por exemplo, nesta universidade, num universo de mil alunos, apenas cerca de 200 tem bolsa. Ademais, embora o ano lectivo já tenha começado, ainda não foi sequer lançado o concurso para atribuição das mesmas o que aponta para o mesmo cenário do ano passado. Em 2022/23, as transferências só começaram em Março, e, até lá, a Piaget nada recebeu. “E caso o estudante não seja seleccionado e não houver condições na família, eles acabam por desistir…”
Uma solução sugerida por Joanita Rodrigues para garantir a sustentabilidade das universidades, tendo em conta o alto custo da educação superior, seria atribuir bolsas de estudo a todos os estudantes que permanecem no país, garantindo apoio financeiro para seus estudos. Isso evitaria, inclusive, a debandada de jovens para outras paragens.
Competição
Também Joanita Rodrigues assinala, como referido, que há, sim, uma diminuição, “cada vez mais significativa”, do número de estudantes nas IES nacionais.
O cenário é tão negativo, considera, que “podemos caminhar para, de certa forma, o fim das IES em Cabo Verde”. E ao mesmo tempo, estar a ajudar para que as IES estrangeiras possam continuar.
Isto porque, na mesma linha de Mindelo, Joanita Rodrigues destaca o fenómeno da competição de universidades estrangeiras.
Só para Portugal, foram oferecidas cerca de duas mil vagas aos estudantes cabo-verdianos. Ora, isso é atractivo para os estudantes até porque, “estamos todos conscientes de que a maioria desses jovens que se candidatam para o ensino superior fora de Cabo Verde, principalmente onde têm possibilidade de trabalhar, não vão estudar. É mais uma forma de emigração”, alerta.
Entretanto, e embora o maior problema sejam efectivamente as ofertas formativas para o exterior, mesmo a nível nacional verifica-se um aumento da competição, com a proliferação de IES e seus pólos.
“Há uma tendência de levar o ensino superior, como se fosse o ensino secundário ou o ensino básico, para todas as ilhas, para todos os concelhos o que é um aspecto bastante complexo”, critica.
Ainda a sustentabilidade
José Sanches, quadro da UniCV, onde hoje é docente a tempo inteiro, foi também vice-reitor, em 2021/22 da Universidade Lusófona, tendo assim experiência no privado e no público. E também ele sublinha a questão da sustentabilidade como um dos principais desafios.
“A partir do momento em que se consegue a sustentabilidade teremos os outros factores já garantidos”, considera.
Os problemas por si elencados são, na verdade, semelhantes aos dos outros entrevistados. A começar pela dificuldade das famílias em pagar as propinas, o que afecta a capacidade das IES de manter suas operações e qualidade educacional.
Para garantir o acesso e permanência no ensino superior, defende, o “Estado tem que assumir as suas responsabilidades”. Nesse sentido, e na mesma linha, Sanches defende o aumento do acesso a bolsas de estudo e financiamento adequado.
Isso é válido para o Público e também para o ensino privado, sublinha. “Está na Lei de Base do Ensino Superior que o Estado deve criar mecanismos de financiamento do Ensino Superior, não só às universidades públicas, mas também para financiar as IES privadas”, justifica.
Para Sanches é igualmente importante motivar para que os jovens escolham universidades nacionais e reconheçam o valor das formações oferecidas no país.
Nesta questão, o docente atribui parte da culpa às próprias universidades, considerando que estas precisam de melhorar suas estratégias de marketing e divulgação das ofertas educativas. Isso inclui destacar saídas profissionais e os benefícios de uma educação local, nomeadamente os custos mais baixos.
Mecenato e outras questões
No que toca à garantia de acesso e permanência nas IES, José Sanches destaca ainda a importância de promover o funcionamento da Lei do Mecenato, para envolver empresas, instituições privadas e ONGs no financiamento e promoção do ensino superior.
Um outro aspecto a ser melhorado é o Estatuto do Trabalhor-Estudante, que não é aplicado, sobretudo no privado.
“Não se cumpre e é preciso rever isto. É preciso que haja fiscalização”, observa o docente, destacando que muitas vezes empresas e instituições públicas e privadas não dão as dispensas devidas ao abrigo deste estatuto.
Entretanto, muitas vezes se fala em recorrer a empréstimos bancários para financiamento da educação. Porém, estes créditos são inacessíveis à maior parte das famílias, e falta, também aqui, um suporte adequado.
Além disso, os empréstimos começam a ser pagos no imediato, e não no momento em que o estudante entra no mercado de trabalho, sendo que se torna, assim, uma atribuição financeira da família.
Investigação
Entretanto, a falta de investimento na Investigação é um outro problema com que as Universidades se deparam. Por cumprir está por exemplo, a criação da Fundação para a Ciência e Tecnologia, que é vista como uma “boa ideia” pelos académicos. E não deverá ser criada tão cedo…
Como observam todos os entrevistados, na proposta de Orçamento do Estado para 2024, à semelhança dos OE anteriores, não há qualquer verba inscrita para incentivar a investigação científica.
“A qualidade exige este passo da investigação e este passo não é possível sem verbas”, lamenta Graciano Nascimento.
Na mesma linha, Joanita Rodrigues, embora reconheça que há muitas ideias (como a criação da FCT) e debates, salienta que não se vê essas iniciativas traduzidas na prática, como aliás prova o novo OE.
“Não estamos a ver uma política de investigação, porque investigação exige investimento”, refere.
Não existe uma política ou grandes projectos nos quais as IES possam participar e não há acesso, pelo menos das privadas, a fontes de financiamento e apoio, o que para si seria essencial.
“Às vezes, os financiamentos vêm somente para o Estado e os privados que ficam de fora”, sublinha. “O sistema de ensino superior não é somente a universidade pública, é um Sistema”, lembra.
No que toca à investigação, o que a Piaget, e outras IES privadas têm feito é recorrer às parcerias externas e para fortalecer a investigação em áreas específicas e elevar o nível académico dos seus investigadores.
Também José Sanches sublinha que um dos desafios que as IES em Cabo Verde têm enfrentado é a falta de cultura de pesquisa, ciência, extensão e internacionalização. Muitas vezes, os professores universitários são sobrecarregados com carga horária de ensino, o que limita a sua capacidade de realizar uma investigação aprofundada. O problema, aliás, advém em parte das próprias IES, que, devido aos fracos recursos, colocam a prioridade na ensinação currículo normal dos cursos. Quanto ao papel do Estado, salienta, este deve incentivar e, de acordo com a lei, alocar no OE verbas para ciência e investigação, o que, como referido, não acontece.
No entanto, “hoje a ciência, a investigação, a extensão e a internacionalização são pilares fundamentais do ensino superior”, lembra.
Também não se promove a relação com o sector privado. As universidades não têm uma bolsa de cientistas para vender as pesquisas ao sector privado e sociedade civil.
“A ciência continua a ser o parente pobre, mas porque nós ainda estamos a conceber os professores universitários, como professores para leccionar, somente, não para fazer investigação, em que os resultados possam ser um mecanismo de desenvolvimento no próprio país”, resume.
Entretanto, uma parte importante na investigação são os centros investigativos, resultado de parcerias e cooperação internacional, com os quais se vai colmatando algum deficit na investigação.
Gestão da Qualidade
Todas as universidades, entretanto, estão empenhadas nos seus sistemas internos de garantia de qualidade (o que é, aliás, uma exigência da agência reguladora do ensino superior). Embora nenhum delas tenha concluído totalmente seus planos, o processo está em andamento e já está mostrando resultados positivos. Por exemplo, a Universidade do Mindelo tem um gabinete de avaliação de qualidade que realizou avaliações internas e enfrentou com sucesso três avaliações externas.
Também a Piaget desde há bastante tempo criou o seu Gabinete de avaliação de qualidade, num processo que está “em construção”. Uma das questões a que se está a prestar atenção é na adaptação de cursos para alinhamento com os ODS e padrões de qualidade.
“O maior custo é não termos qualidade, mas implementar um sistema de qualidade tem um custo bastante caro…”, diz.
Assim, e em suma, garantir a sustentabilidade e a qualidade das universidades cabo-verdianas, para que estas possam formar quadros que respondam aos desafios do país e do mundo é, pois, um desafio contínuo que exige esforços coordenados entre as IES, o governo e outros parceiros.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1141 de 11 de Outubro de 2023.
Leia também as entrevistas na íntegra:
- Desafios e Soluções para o Ensino Superior em Cabo Verde: Uma Conversa com Joanita Rodrigues (Universidade Jean Piaget)
- Desafios e Soluções para o Ensino Superior em Cabo Verde: Uma Conversa com José Sanches