Uma vida inteira sem ou com pouca contribuição. O que fazer na velhice?

PorSheilla Ribeiro,14 jan 2024 11:29

Depois de uma vida laboral marcada pela ausência ou pouca contribuição previdenciária, surge na velhice a indagação sobre as medidas a serem adoptadas. Afinal, continuam as despesas, inclusive para com a saúde. A verdade é que a realidade das aposentadorias no país revela um cenário inquietante, em que após décadas dedicadas ao trabalho, numerosos idosos encontram-se às voltas com pensões inadequadas, a ausência de cobertura de seguros e a carência de previdência, enfrentando obstáculos complexos. Nesta reportagem trouxemos o relato de quem, devido à escassez de recursos financeiros, se vê obrigado a continuar a trabalhar para garantir a sua subsistência, mesmo em idade avançada e também o desafio crescente para o Estado relativamente ao regime previdenciário não contributivo.

Aos 70 anos, Manuel Monteiro chega ao Plateau às 09h00 para lavar carros e garantir a sua subsistência diária e só regressa à casa às 18h00. Para este idoso, não há domingo nem feriado, já que todos os dias tem de comer.

“Comecei a lavar carro há cerca de sete anos. Não tenho reforma, nenhuma pensão, mas estou bem”, declara.

Conforme conta Manuel Monteiro, o seu trabalho consiste em lavar carros, com dias que realiza três ou quatro lavagens e outros em que não consegue nada.

“Para cada lavagem ganho entre 150 e 250 escudos. Não posso ficar em casa porque senão não tenho como sobreviver. Tenho de pagar a renda, cinco mil escudos ao mês, às vezes a minha filha ajuda-me, mas, às vezes não e tenho de comer todos os dias”, acrescenta.

Apesar das dificuldades, Manuel Monteiro afirma que ainda existe solidariedade, ainda que apenas ocasionalmente. “Às vezes recebo apoio de pessoas, ainda há pouco uma senhora ofereceu-me um saco de compras”, partilhou, destacando como esses gestos fazem a diferença na sua vida.

Também no Plateau, o Expresso das Ilhas encontrou a senhora Maria Santa Gomes, uma vendedeira de 83 anos, que vende, há mais de três décadas, rebuçados, chupa-chupa, pipocas e saquinhos de batatinhas na praça Alexandre Albuquerque.

Apesar da avançada idade, ela conta que tem de se levantar cedo, de segunda-feira a sábado, para chegar àquela praça às 06h30 e somente regressar à casa às 16h00.

Maria conta que para manter o seu espaço na praça é obrigada a desembolsar mensalmente três mil e noventa e cinco escudos. “Eu não posso ficar em casa, se for para casa não tenho dinheiro para comer. O meu dinheiro de reforma é muito pouco, não chega para me sustentar”, desabafa.

Recebendo apenas pouco mais de seis mil escudos por mês de pensão social, Maria precisa administrar esse valor cuidadosamente para cobrir as suas despesas básicas. “O dinheiro da pensão é muito pouco e não é suficiente para me manter durante o mês. Tenho de vir aqui porque os meus filhos também não têm como me ajudar”, afirma.

A vendedeira revela que nem sempre as vendas correm bem. “Hoje, por exemplo, nem 500 escudos fiz ainda e já é meio-dia. Há dias em que consigo ganhar mil escudos. Se dependesse da minha reforma não estaria viva”, lamenta.

Maria enfatiza que mesmo as despesas mais básicas, como um simples saquinho de batatinhas, representam um desafio, pois custam dois mil escudos. Portanto, só os pode vender quando ganho um dinheiro a mais, e racionar para vender durante mais tempo.

Trabalhar depois da reforma

Maria de Lurdes Correia, de 64 anos, aposentou-se aos 58 por invalidez. Seis anos após a aposentadoria, ainda têm de trabalhar por dificuldade em viver com uma renda tão limitada.

Conforme conta, dedicou 31 anos da sua vida ao trabalho e recebe actualmente sete mil escudos como aposentadoria.

“Nem chega a ser sete mil escudos, ficam a faltar cerca de 60 escudos para sete mil”. A senhora questiona a justeza dessa quantia, considerando o seu longo período de serviço com descontos.

Maria de Lurdes, que antes de se aposentar ganhava 11 mil escudos, expressa a sua insatisfação por não receber pelo menos o que ganhava antes. A aposentada salienta a ironia de trabalhar uma vida inteira, fazer contribuições e, quando chega a hora da aposentadoria, receber uma quantia que mal cobre as despesas básicas.

“Não é justo trabalharmos a vida toda, fazer descontos e quando chegar a altura da reforma receber um pouco de dinheiro. Somos muitos cuja reforma é muito baixa. Hoje em dia não dá para fazer nada com sete mil escudos, nem comer direito”, desabafa.

Além das dificuldades financeiras, Maria de Lurdes lida com dores na coluna que persistem até hoje. Apesar de ter consultado vários médicos, a solução para suas dores muitas vezes envolve remédios que não proporcionam alívio duradouro.

“Voltei a trabalhar na limpeza. E depois do serviço, há dias em que tenho de lidar com as dores. Tanta dor que ultrapassa a coluna”, narra.

Vendia frutas e hoje enfrenta desafios de saúde sem acesso a benefícios previdenciários

Há casos em que mesmo na idade de trabalhar, a pessoa não o pode fazer devido a problemas de saúde. Contudo, a situação é mais complexa quando durante anos de trabalho a pessoa não contribuiu para o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) e tem de viver sem nenhum rendimento.

É o exemplo de Maria Helena Sousa de Brito, uma mulher de 53 anos, que enfrenta actualmente dificuldades de saúde que a mantem em casa durante todo o dia, devido a problemas na coluna. Antes, vendia frutas no mercado do Plateau e hoje fica em casa e depende do dinheiro do marido pedreiro, que não contribuiu com o INPS e não tem seguros.

“Durante o tempo em que vendia frutas, nunca fiz descontos no INPS, sempre trabalhei como informal. Hoje, quando preciso de remédios, tenho de assumir todos os custos, pois nenhum de nós aqui em casa possui seguro de saúde. Até pensei em pagar ao INPS para garantir uma aposentadoria, mesmo que pequena, mas agora não consigo. Quando tiver idade suficiente, vou pedir a pensão social”, admite.

Um desafio crescente para o Estado

Segundo o economista António Baptista, a falta de um sistema de previdência generalista e a ausência de contribuições obrigatórias por muitos anos são factores determinantes para a situação actual.

Baptista argumenta que profissões como a de pescadores, peixeiras e outros trabalhadores informais nunca foram incentivadas a adoptar uma visão de longo prazo relativamente à previdência, o que resultou numa crescente dependência do regime de previdência não contributiva, que agora representa uma parcela significativa do orçamento do Estado.

“Estamos a pagar um preço muito caro hoje. O alto índice de desemprego e a alta informalidade colocam uma pressão considerável no sistema previdenciário”, alerta, apontando a falta de assistência social e a desestruturação familiar, associadas a essa crise, fazendo com que a responsabilidade recaia sobre o Estado.

O economista critica a falta de acções preventivas por parte do Estado, afirmando que a previdência nunca deveria ter sido uma opção num país tão jovem como Cabo Verde.

António Baptista aponta para as consequências a longo prazo dessa negligência, incluindo a falta de assistência para profissões informais no momento da aposentadoria.

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Nesse sentido, destaca a necessidade de uma mudança cultural relativamente à poupança e à responsabilidade financeira.

“A solução não é de curto prazo. Precisamos de uma abordagem a curto, médio e longo prazo. A solução de longo prazo envolve uma ampla divulgação e informação, para que as pessoas saibam que terão uma vida difícil no futuro”, assevera.

O economista frisa que a falta de independência financeira e a ausência de políticas públicas eficientes contribuíram para a crise actual. Conforme adverte, a situação pode piorar no futuro, com o aumento da expectativa de vida e a falta de preparação financeira da população.

Diante desse cenário, Baptista sugere que o Estado implemente medidas educativas e regulatórias para incentivar a poupança, alertando profissões informais sobre a importância de se precaver para a aposentadoria.

“A irresponsabilidade do Estado está a custar caro, e é hora de aprendermos com os nossos erros”, conclui.

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Ao Expresso das Ilhas, a presidente do Conselho Directivo do Centro Nacional de Prestações Sociais (CNPS), Elisandra de Pina, diz que actualmente existem 25.780 pensionistas sociais em todos os conselhos do país.

Pina destaca a importância desse auxílio, sublinhando que é destinado às pessoas em situação de vulnerabilidade económica e social não abrangidas por qualquer regime de protecção social.

“Neste momento temos 1.648 pedidos pendentes de pensão social. No ano passado, o Governo expandiu a cobertura para mais de três mil indivíduos, reduzindo significativamente o número de pedidos pendentes. Para 2024, já temos orçamento alocado para aumentar a pensão social em mais de 500 novas pensões, o que deverá contribuir para diminuir a lista de pedidos pendentes”, afirma.

A distribuição da pensão social possui critérios rigorosos, segundo a responsável. A pessoa beneficiária não pode estar abrangida por outro regime de segurança social, e o rendimento anual do agregado familiar deve ser inferior ao definido como pobreza extrema pelo Instituto Nacional de Estatística (INE).

Existem actualmente três tipos de pensão social: a básica para idosos e crianças de famílias pobres com deficiência; a por invalidez para adultos com incapacidade permanente; e a de sobrevivência para cônjuges ou companheiros de pensionistas falecidos.

O valor da pensão social é de 6 mil escudos, com um desconto de 2% destinado ao Fundo Mutualista dos Pensionistas, resultando num pagamento líquido de 5.880 escudos.

“Os pensionistas contribuem com 120 escudos para um fundo mutualista que oferece benefícios como subsídio de funeral e ajuda para aquisição de medicamentos nas farmácias privadas, sempre que esse medicamento não esteja disponível nas farmácias públicas. Os pensionistas também têm acesso gratuito aos cuidados”, explica.

Elisandra de Pina refere que os pensionistas podem receber a sua pensão social pelos Correios ou mediante transferência bancária, facilitando o acesso a esse suporte financeiro.

Quanto aos desafios enfrentados, Pina enfatiza que a prioridade do Governo é eliminar os pedidos pendentes.

“O maior desafio é não ter pedidos pendentes. Queremos garantir que quem solicita a pensão social este ano, a receba ainda este ano”, declara, mencionando também os desafios específicos em conselhos mais populosos, como Praia e o Conselho de Santa Cruz, onde ainda existem pedidos pendentes de 2022 e 2023.

Para enfrentar este desafio, o Orçamento do Estado para 2024 destina 3,4 milhões de contos para o sector da protecção e inclusão social, representando um aumento de 400 mil contos em comparação com o ano anterior. O compromisso do governo é claro: assegurar uma distribuição eficiente da pensão social, proporcionando apoio rápido e efectivo àqueles que mais necessitam.

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Em 2022, 95.708 pessoas estavam empregadas no sector informal, uma taxa de 53,8 por cento do total de empregos no arquipélago. A Praia, com 29.747 pessoas, é o concelho onde se regista maior número de empregados informais, seguido de São Vicente, com 15.744 e Santa Catarina, com 8.951. De referir ainda que as entidades empregadoras são obrigadas a remeterem, mensalmente, as Folhas de Ordenado e Salários.

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Para o trabalhador por Conta de Outrem, a contribuição mensal está fixada em 24,5%, sendo 16% a parcela a cargo das entidades empregadoras (contribuintes) e 8,5% a cotização a cargo dos trabalhadores (segurado).

Já para o trabalhador por Conta Própria, a contribuição mensal é fixada em 19,5%. Para o Regime de Serviço Doméstico, a contribuição mensal está fixada em 23%, sendo 15% a parcela a cargo das entidades empregadoras (contribuintes) e 8% a cotização a cargo dos trabalhadores (segurado).

Finalmente, ao REMPE (Regime Especial das Micro e Pequenas Empresas) a contribuição mensal está fixada em 8% a cargo dos trabalhadores (segurado).

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1154 de 10 de Janeiro de 2024.

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Autoria:Sheilla Ribeiro,14 jan 2024 11:29

Editado porClaudia Sofia Mota  em  27 abr 2024 23:28

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