Pilares sociais em bairros vulneráveis

PorSheilla Ribeiro,4 fev 2024 5:07

Em meio aos desafios enfrentados por famílias em bairros economicamente desfavorecidos, os jardins de infância emergem como um oásis de cuidados e nutrição. Além de proporcionar um ambiente educativo crucial para as crianças, esses centros desempenham um papel fundamental na vida de mães solteiras, e não só, oferecendo cuidados confiáveis aos seus filhos durante o dia. Esta reportagem explora como esses jardins de infância moldam não só os primeiros passos educacionais, mas também se tornam pilares essenciais para fortalecer bairros em situação de vulnerabilidade.

Keila Pereira, mãe de duas filhas e moradora do bairro de São Paulo, Cidade da Praia, trabalha como empregada doméstica e recebe, mensalmente, um salário mínimo. Até o ano passado, antes de a mais velha frequentar o Ensino Básico, enfrentava alguns desafios financeiros, para que ambas tivessem acesso ao jardim de infância.

“As ‘tias’ ajudavam muito. Com duas crianças no jardim, eu não conseguia comprar todos os lanches e pagar as mensalidades era um problema, porque para lá ficarem durante o dia custa quatro mil escudos, o que significa que tinha de pagar oito mil escudos mensais, mais os lanches”, explica.

Diante das dificuldades financeiras, Keila tomou a iniciativa de conversar com a proprietária do jardim de infância. Em busca de uma solução, a proprietária optou por isentar uma das filhas da mensalidade, permitindo que a mãe pagasse apenas por uma vaga. Isso aliviou a pressão financeira da família, tornando mais viável a continuidade da educação das meninas.

“O jardim ajuda muito. As minhas filhas aprenderam muito desde que passaram a frequentar. Vejo isso, sobretudo, na mais nova que quando chega a casa recita o abecedário, já conhece as cores, já conta, e isso é importante. Por isso, é muito necessário fazer algum esforço para lá estarem”, destaca.

Gerir o horário de trabalho e a rotina das crianças não é tarefa fácil para Keila, que precisa deixar as filhas às 07h30 para estar no trabalho às 08h00. Com o horário estendido do jardim de infância, a sua irmã assume o papel de buscar a filha mais nova às 18h00. Keila só reencontra as suas filhas após as 19h00, quando chega em casa.

Por ser chefe de família e responsável pelas filhas, essa mãe reconhece a importância de contar com o suporte do jardim de infância.

“Ainda bem só tenho de comprar o lanche porque o almoço está garantido no jardim”, acrescenta.

Oferecer alimentação e educação a crianças vulneráveis

No bairro Alto da Glória, Leny, proprietária e monitora do jardim Amar e Crescer, trabalha arduamente para proporcionar um ambiente acolhedor e educacional para mais de 50 crianças daquele bairro, em apenas três salas. O jardim, que visa ajudar as crianças mais vulneráveis, enfrenta desafios significativos, especialmente em relação à alimentação e às despesas crescentes.

“Sempre quis ter um jardim para ajudar algumas crianças. Crianças cujos pais às vezes não têm bom rendimento”, diz a monitora.

O jardim cobra uma mensalidade de 3 mil escudos para bebés e 2 e quinhentos escudos para crianças pré-escolares durante o dia. Entretanto, Leny admite que esse valor nem sempre é suficiente para cobrir todas as despesas, especialmente com o aumento dos preços dos alimentos.

A maioria das crianças daquele jardim são provenientes de famílias vulneráveis e com “muita dificuldade” em pagar a mensalidade, conforme conta Leny.

No final de cada mês, a proprietária tem de ouvir justificativas como: ainda não recebi o salário; perdi o emprego, entre outras. Quando é assim, Leny e a sócia têm dificuldade em pagar os seus próprios salários, mais o salário das duas outras funcionárias.

Outro desafio prende-se com o facto de a maioria das famílias serem monoparentais, cujas mães são chefes de família.

Essas mães, relata Leny, deixam os filhos às 07h00 e mesmo sendo o horário até às 18h00, quase sempre as monitoras têm de trabalhar até às 19h00 e outras vezes têm de levar as crianças para as suas casas porque as mães estão a trabalhar e não conseguem ir buscá-las.

“A maior dificuldade que temos no jardim tem a ver com a alimentação. Temos crianças que chegam às vezes com fome, ou por não terem o pequeno-almoço em casa, ou porque o pequeno-almoço foi fraco e têm dificuldades em trazer os lanches. Quando é assim, além dos almoços, temos de dar lanches”, realça.

A situação agrava-se com as limitações de recursos financeiros. O jardim Amar e Crescer depende exclusivamente das mensalidades e enfrenta dificuldades para obter apoios e parcerias externas.

“Procuramos apoios, parcerias, mas está difícil porque hoje em dia há muitos jardins, e em qualquer lugar onde batemos à porta a resposta é sempre ‘aguarde’. O nosso jardim tem um grande impacto na vida das famílias dessas crianças, principalmente na alimentação, porque há casos em que se não for aqui não têm como comer, ou pelo menos comer bem”, lamenta.

Com o recente aumento do salário mínimo, Leny antevê maiores desafios, considerando que o Jardim já opera com limitações financeiras. “Com o aumento do salário mínimo vamos ter mais dificuldades, porque embora não seja muito, vamos ter que partir de algum lado: na alimentação, ou no meu salário e no da minha sócia para pagar as funcionárias”, afirma.

Desafios financeiros

Janine Moreno, proprietária e monitora do jardim Cantinho de Alegria, localizado em Ponta D’Água, também enfrenta dificuldades há cinco anos, enquanto proporciona cuidados e educação para 30 crianças de famílias vulneráveis do bairro.

“Há cinco anos abrimos as portas e neste momento temos 30 crianças, todas de famílias vulneráveis do bairro, todas de famílias com rendimento baixo e a maioria com mães como chefes de família”, aponta Janine.

Segundo narra, o jardim Cantinho de Alegria enfrenta desafios significativos devido à difícil situação financeira das famílias atendidas, com mensalidades variando entre 1.500 e 2.500 escudos, dependendo da idade e do rendimento.

“Somos apenas duas funcionárias. Tenho de pagar a renda, a luz e a água, e a mensalidade das crianças às vezes é suficiente e às vezes não é para as despesas. Ainda temos de oferecer o almoço”, acrescenta.

A situação torna-se mais crítica durante as férias e no mês de Janeiro. Janine relata grandes dificuldades financeiras nesses períodos, quando as crianças frequentemente ficam em casa devido à presença de irmãos mais velhos e os pais, para economizar dinheiro, optam por não enviar os seus filhos ao jardim.

“Nas férias as famílias deixam sempre muitas dívidas, as crianças vão de férias porque os irmãos mais velhos estão em casa e os pais, para pouparem o dinheiro, preferem deixar que cuidem das crianças. Eu não cobro durante as férias. Então tenho de mandar a funcionária de férias, sem salário”, lastima.

A alimentação também se torna um desafio, com a inflação dos preços dos produtos. “Hoje é um pouco difícil ter uma alimentação rica devido aos preços dos produtos. Mas, ocasionalmente, pedimos apoio de arroz, óleo e outros géneros nos supermercados do bairro para o reforço da nossa ‘cantina’, ressalta.

Apesar dos esforços, o jardim Cantinho de Alegria ainda não recebeu apoio de instituições ou padrinhos. “Já procuramos muitos apoios, mas ainda não recebemos nenhum, pedimos em várias instituições. Aqui sequer temos crianças com padrinhos para aliviar um pouco”, profere.

Diante da situação, Janine manifestou a sua intenção de aumentar as mensalidades para cobrir os custos, mas enfrenta resistência dos pais que também enfrentam várias dificuldades.

Nas férias, a monitora planeia criar colónias de férias em parceria com outros jardins do bairro para compensar as dificuldades financeiras e ver se conseguem ter algum rendimento nesse período.

“Os jardins deviam ter mais reconhecimento, sobretudo nos bairros como o nosso. Há muitas crianças fora dos jardins porque os pais não têm condições de pagar as mensalidades. Então, um apoio seria bom para nós proprietários, mas também para a comunidade, já que essas crianças deixavam de estar na rua”, frisa.

O impacto dos jardins do ponto de vista sociológico

Segundo o sociólogo Henrique Varela, os jardins de infância têm um papel fundamental por se tratar do primeiro contacto oficial da criança com a escola formal. Sendo o primeiro contacto das crianças com a escola formal, normalmente as crianças com a mesma idade, partem com igual oportunidade.

Entretanto, o especialista também aponta para a disparidade de oportunidades que pode surgir à medida que as crianças progridem nas suas jornadas educacionais. Algumas avançam, enquanto outras, infelizmente, ficam para trás, especialmente em comunidades carentes, onde o seu impacto é significativo.

“ Porque em sendo uma comunidade carente, essas crianças acabam por ver que, afinal de contas, estão a ser colocadas num patamar igual a outras crianças que, eventualmente, não estão nas mesmas condições, em termos económicos”, explana.

Henrique Varela ressalta que a falta de acesso a serviços de educação pré-escolar pode afectar negativamente o desenvolvimento social e cognitivo das crianças nessas áreas.

“Os jardins funcionam como agentes de transformação porque, precisamente, dão continuidade ao processo de socialização”, explica, acrescentando que a presença dos jardins pode impactar positivamente a coesão social e o senso de comunidade nas áreas carentes.

Para melhorar o acesso e a qualidade dos jardins de infância nas áreas mais carentes, Henrique Varela aponta a importância de políticas públicas para eliminar ou diminuir ou até acabar com eventuais situações de marginalização no futuro.

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MFIDS garante acesso ao pré-escolar para crianças em situação de vulnerabilidade

O Ministério da Família, Inclusão e Desenvolvimento Social (MFIDS) tem em curso um plano “Cuidados”, que visa garantir o acesso ao pré-escolar para todas as crianças de zero aos seis anos, cujo objectivo principal é contribuir para a universalização do pré-escolar, promovendo a igualdade de oportunidades no acesso à educação.

Ao Expresso das Ilhas, a directora-geral da Inclusão Social, Ednalva Cardoso, salientou que o programa envolve parcerias com jardins privados para assegurar o acesso de crianças com deficiência, promovendo a sensibilização e igualdade de oportunidades.

Conforme a responsável, o MFIDS subsidia directamente as famílias, apoiando o pagamento das mensalidades dos jardins infantis. Actualmente, cerca de 5 mil crianças em todo o país são beneficiadas por esse apoio, com um valor máximo de 2.500 escudos por criança.

Nesse sentido, Cardoso ressalta a importância do Cadastro Social Único como ferramenta para garantir que o apoio seja direccionado às famílias que realmente necessitam. As prioridades incluem famílias em extrema vulnerabilidade, pertencentes aos grupos um e dois, mas o programa também busca atender outras crianças em situações de necessidade.

A directora-geral realça os desafios do plano, especialmente em relação à qualidade dos jardins infantis. Trabalhando em conjunto com o Ministério da Educação (ME), o MFIDS busca garantir que os jardins sejam devidamente credenciados e ofereçam qualidade no atendimento, incluindo a supervisão e atribuição de alvarás.

“Antes de atribuir o apoio àquele jardim infantil em particular, temos que verificar se o jardim é acreditado ou não. E também fazemos essa ponte com o ME no sentido dos responsáveis desses jardins conseguirem o alvará”, frisa.

O programa, que visa alcançar a erradicação da pobreza extrema em Cabo Verde até 2026, inclui também iniciativas de inclusão produtiva, proporcionando às mães oportunidades de formação enquanto subsidia o acesso das crianças à creche ou ao pré-escolar durante esse período.

Ednalva Cardoso reitera o compromisso do MFIDS em garantir que nenhuma criança em idade pré-escolar fique excluída do sistema educacional, trabalhando diariamente para atingir essa meta.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1157 de 31 de Janeiro de 2024. 

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Autoria:Sheilla Ribeiro,4 fev 2024 5:07

Editado porAntónio Monteiro  em  29 out 2024 23:29

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