Esta questão da natural ambição da juventude cabo-verdiana para obter uma boa formação e um trabalho justo é inegável, é incontestável

PorSheilla Ribeiro*,21 abr 2024 8:02

Eurídice Monteiro, Secretária de Estado do Ensino Superior
Eurídice Monteiro, Secretária de Estado do Ensino Superior

Um recente estudo sobre a integração de estudantes dos Países de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) em Portugal aponta para a necessidade de um período preparatório para favorecer a adaptação dos alunos e responder à crescente procura, que está a impactar as instituições daquele país. Em entrevista ao Expresso das Ilhas, a Secretária de Estado do Ensino Superior aponta preocupações específicas para os estudantes cabo-verdianos, mencionando a experiência do “Ano Zero” em Cabo Verde como um exemplo bem-sucedido. Eurídice Monteiro defende que uma aproximação entre os sistemas de ensino dos dois países permitiria identificar lacunas e desenvolver soluções para promover uma integração mais eficaz dos estudantes cabo-verdianos no ambiente académico português.

O período preparatório sugerido para estudantes PALOP em Portugal, visando melhor integração e atendendo à alta demanda que está a impactar instituições no interior do país, é pertinente para alunos cabo-verdianos?

Em Portugal, nos últimos anos do Governo de António Costa, apareceram pelo menos três estudos importantes sobre esta matéria: “Estudo sobre os estudantes oriundos dos PALOP e Timor-Leste a frequentar o Ensino Superior em Portugal”, produzido pelo Grupo de Trabalho estabelecido pelo então Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES); “Sucesso e inclusão: medidas e iniciativas de apoio aos estudantes do Ensino Superior”, elaborado pela Direcção‑Geral do Ensino Superior de Portugal; “Perfil do Estudante dos PALOP no Ensino Superior em Portugal: caracterização, expectativas, constrangimentos 2015‑2021”, elaborado pelo ISCTE com o apoio do Instituto Camões. Temos acompanhado o que se passa em Portugal e recebido informações em matéria de sucesso escolar, desistências, problemas de adaptação a um novo país e sistema de ensino, dificuldades financeiras, de alojamento e na obtenção de documentos de residência, inclusive problemas de discriminação têm sido apontados pelos estudantes quando preenchem os nossos questionários. No tocante aos cabo-verdianos, o que tem chegado ao nosso conhecimento tem gerado alguma preocupação, nomeadamente quanto ao nível de preparação de muitos dos recém-chegados. Embora no referido relatório seja realçado que os estudantes cabo‑verdianos não têm problemas linguísticos à partida, isso é uma meia-verdade. Pode ser que não tenham problemas de compreensão, mas de expressão têm, devido ao reduzido vocabulário, afectando mais os alunos de humanísticas porque precisam muito da retórica. Há um elevado número de estudantes cabo-verdianos em Portugal, mas continua a haver problemas com a integração na sociedade portuguesa, a começar pelo ambiente dos seus institutos e universidades, porque os estudantes cabo-verdianos, de uma maneira geral, convivem pouco com outros colegas não cabo-verdianos, não aproveitam muito o ambiente que os rodeiam. E como há muitos cabo-verdianos por perto, também não sentem a “necessidade” disso, e são largamente prejudicados. É lógico que há excepções, e ainda bem.

A experiência do «Ano Zero» em Cabo Verde

Esta experiência foi implementada em Cabo Verde na década de noventa, relativamente com bom sucesso. Começou por ser um “ano propedêutico” por uma iniciativa muito focada do Instituto Superior Técnico, para os alunos que queriam estudar engenharias, e rapidamente evoluiu para a criação do Ano Zero, na Praia e no Mindelo, na altura para complementar o final do secundário, que naquela altura terminava no 11.º ano (ou seja, antigo sétimo ano). Com a introdução do Ano Zero igualou-se com o ensino secundário em Portugal, onde já havia o 12.º ano. O Ano Zero estava muito voltado para o ensino universitário em Portugal, devido à origem da iniciativa, mas também ajudou estudantes que foram para outros sistemas universitários, quer na Europa, como no Brasil. A experiência do Ano Zero, que foi boa a todos os títulos, a meu ver, não foi bem capitalizada na criação mais tarde, do 12.º ano do ensino secundário em Cabo Verde. Deveria ter sido, e isso iria ajudar os estudantes a serem mais bem formatados para o ensino superior, à saída do 12.º ano. Existe a necessidade de uma comparação entre os currículos e os conteúdos programáticos dos 11.º e 12.º anos de Cabo Verde com os do ensino português, se se vai continuar a haver esse fluxo considerável de estudantes cabo-verdianos a demandar o ensino superior em Portugal. Isso poderia possibilitar aos docentes dos 11.º e 12.º anos de Cabo Verde de estarem mais bem preparados para ajudarem os seus discentes na entrada no ensino superior, quer seja em Cabo Verde, em Portugal ou em outro país. Uma das soluções para o caso, mas que não resolve tudo, é uma maior aproximação entre o sistema de ensino de Cabo Verde (emissor) e de Portugal (receptor), para identificar brechas e encontrar soluções para as colmatar. Aliás, isso era um dos principais objectivos da Comissão Paritária do Ensino Superior, criada na década de noventa, onde estavam as Direcções‑Gerais do Ensino Superior e outras instituições dos dois países (Conselho de Reitores, Conselho dos Presidentes dos Politécnicos, embaixadas, entre outros). É lógico que a solução do problema também passa pelo aumento da qualidade da oferta formativa do ensino superior em Cabo Verde, e da sua diversificação tendo em conta a modernização das sociedades, tanto em Cabo Verde, como no estrangeiro. É uma peça fundamental na resolução da questão. A qualidade do ensino superior no país depende da qualidade da ciência, tecnologia e inovação em Cabo Verde, o que temos reiterado.

A introdução da opção da formação propedêutica para estudantes dos PALOP em Portugal

O estudo sobre o perfil dos estudantes dos PALOP em Portugal aponta caminhos para a superação de algumas deficiências identificadas num certo número de estudantes. Entretanto, importa dizer que a medida de política aprovada pelo Governo português não tem carácter obrigatório. É uma medida opcional, aprovada desde o ano passado, no âmbito da reforma do Ensino Superior, em Portugal. O último Governo de António Costa procedeu, entre Julho e Agosto de 2023, com a revisão dos Regimes Especiais em Portugal, tendo publicado um conjunto de documentos legais de suporte a esse tipo de concurso, nomeadamente: Decreto-Lei n.º 64-A/2023, de 31 de Julho, Estabelece os Regimes Especiais de Acesso e Ingresso no Ensino Superior; Portaria n.º 248-A/2023 de 1 de Agosto, Aprova o Regulamento do Concurso dos Regimes Especiais de Acesso e Ingresso no Ensino Superior. Veja, o artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 64-A/2023, relativo à formação propedêutica, assegura que: «As instituições de ensino superior podem realizar cursos não conferentes de grau académico, integrados no seu projecto educativo visando a formação introdutória às matérias dos planos de estudo do ciclo de estudos em que os estudantes fiquem colocados, bem como às unidades curriculares consideradas importantes para o sucesso académico dos estudantes colocados» […]; «A formação propedêutica é passível de creditação». Significa que não é uma medida obrigatória, sendo opcional tanto para as instituições de ensino superior portuguesas, como também é opcional para os estudantes, neste caso dos PALOP. Os estudantes destes países podem optar por fazer esse ano propedêutico e ingressarem só no ano seguinte no curso, pois a vaga fica cativa. Portugal não quis impor essa regra, pois consideram que, se dão a equivalência, é porque o nível de ensino é reconhecido.

A coordenadora do relatório sobre estudantes africanos em Portugal destaca desafios académicos, integração e dificuldades económicas. Qual o seu comentário?

O estudo evidencia tudo isso: as dificuldades de integração, os constrangimentos financeiros, a questão da facilitação de vistos de estudo e em certas disciplinas verificou persistirem deficiências. Todas as recomendações são com o propósito de assegurar maior integração dos estudantes oriundos dos PALOP e reforçar as aprendizagens, levando sobretudo em conta os contextos diferenciais e os programas distintos destes países. Já falamos das questões linguísticas e académicas, conhecimentos de base. Também as questões financeiras são muito importantes. O desejo dos jovens cabo-verdianos de saírem para procurarem melhores oportunidades de formação e de trabalho fora do país é, a todos os títulos, legítimo! Mas, não se pode deixar as coisas seguirem desta forma; temos de intervir. Temos esta responsabilidade política, cívica e social. Muitos estudantes desistem logo no primeiro ano e alguns acabam por ir estudar anos mais tarde, após terem meios de subsistência segurados; outros começam a estudar, faltam-lhes os meios, arranjam trabalho, mas acabam por não conseguir fazer as duas coisas, e desistem de estudar – há um elevado número de jovens cabo-verdianos nessa situação. Muitos, em número não negligenciável, acabam por regularizar a sua situação em Portugal e até obter a nacionalidade. Portugal está a precisar de muita juventude, pelos vistos Cabo Verde está a ser um exportador e, com isso, a médio prazo, o país vai ressentir. Esta questão da juventude cabo-verdiana e a sua natural ambição para obter uma boa formação e um trabalho justo é inegável, é incontestável. E as autoridades cabo-verdianas não podem estar alheias a este facto, sob pena de o país sofrer consequências muito negativas, de vária índole, a breve trecho. É aqui que nós – governantes, dirigentes, empresas, família e toda a sociedade – devemos pensar e criar mais soluções.

Como as recomendações do relatório, incluindo provas de ingresso e períodos de preparação, impactam estudantes cabo-verdianos em Portugal?

As provas de ingresso não resolvem totalmente as questões apontadas, embora possam pressionar o sistema. Veja, se de facto muitos dos estudantes apresentam certas deficiências, não é difícil adivinhar o desfecho da realização das provas. Lembra-se do que aconteceu no ano 2000, quando foram realizadas as primeiras provas gerais em Cabo Verde para o ingresso no ensino superior em Portugal? Os resultados foram catastróficos, sobretudo em certas disciplinas, como matemática, física, português, etc. Quero com isto dizer que, mais do que a realização das provas de acesso ao ensino superior, é preciso soluções mais estruturais, profundas, e de forma célere. Tendo em conta a situação actual, um semestre de preparação e integração ou ano zero preparatório, a meu ver, não deixaria de ser uma boa solução. Sendo de complexa concepção e implementação, esta questão tem de ser bem estudada, a solução tem de ser bem enquadrada. E há o facto de se estar a falar de estudantes dos PALOP e Timor-Leste. Serão 6 países para complicar mais o problema. Os 5 PALOP têm realidades diferentes em vários aspectos. Eu não sei se este problema pode ser resolvido em conjunto. Há que ter em conta vários factores que diferenciam os perfis de saída do secundário dos estudantes. A mim, não me parece adequado, tratar-se esta questão em bloco. Por isso, o Governo de Cabo Verde tem mantido uma comunicação directa com o Governo português. Aliás, iniciamos esse diálogo já com o Governo de António Costa e contamos ter no Governo de Luís Montenegro as aberturas necessárias para todos os diálogos que se mostrarem necessários e que poderão beneficiar os nossos estudantes tanto em termos da preparação, como quanto às condições de subsistência em Portugal.

Que medidas o Governo de Cabo Verde irá tomar para que os alunos cabo-verdianos não sejam prejudicados nos seus estudos, com a perda de um ano, além de impactarem nos encargos financeiros?

Na verdade, esta introdução da formação propedêutica, para além de ser uma medida opcional, não se trata de perder um ano, mas sim de garantir que a taxa de sucesso dos estudantes cabo-verdianos aumente. Portanto, os estudantes não serão prejudicados nos seus estudos. Aliás, é comum dizer-se que, com a preparação que muitos estudantes levam de Cabo Verde, é com muito esforço que conseguem superar as falhas e garantir o ano lectivo, no primeiro ano de estadia em Portugal. De qualquer forma, é preciso que o assunto continue a merecer a devida atenção de ambas as partes, Cabo Verde e Portugal, e que todas as eventuais consequências negativas da sua implementação sejam identificadas e sanadas.

Bolsas por países parceiros

Para terminar, importa ainda acrescentar que a ideia da realização de provas ou uma formação preparatória em algumas línguas já se aplica noutros países, como China (1 ano de língua inglesa), Marrocos (6 meses a 1 ano de língua francesa), Sérvia (1 ano de língua sérvia), Japão, Macau, Hungria, Roménia, Indonésia, Azerbaijão, Turquia, Tailândia, Rússia, Senegal… E mesmo nos países de língua portuguesa, vale a pena lembrar que o Brasil realiza o teste do Celpe-Brás, que é de proficiência linguística em português, e Portugal também realiza teste de proficiência linguística para a atribuição das bolsas do Instituto Camões. A realização de testes ou períodos de adaptação fazem parte de muitos sistemas de ensino superior pelo mundo fora e muitos fazem parte da nossa rede de cooperação científica e académica.

*Com António Monteiro

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1168 de 17 de Abril de 2024.

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Autoria:Sheilla Ribeiro*,21 abr 2024 8:02

Editado pormaria Fortes  em  5 mai 2024 14:20

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