Inspecção recomenda devolução de salários indevidos

PorSara Almeida,18 ago 2024 7:42

O salário auferido pela Primeira-Dama, Débora Katisa Carvalho, durante dois anos, não tem enquadramento legal, pelo que deverá ser devolvido. O mesmo se aplica ao vencimento atribuído, ao longo de 20 meses, à conselheira jurídica do Presidente da República, Marisa Morais, entretanto exonerada do cargo.

Estas são algumas das conclusões e recomendações que constam do relatório da Inspecção Administrativa e Financeira à Presidência da República, divulgado esta segunda-feira, 12, e realizado na sequência de um pedido da própria Presidência. A devolução dos montantes, no valor de mais de 5 mil contos e mais de 2 mil, respectivamente, é, por enquanto, apenas uma recomendação e terá de ser efectivada pelo Tribunal de Contas.

Diversas irregularidades foram detectadas na Acção de Inspecção às ”Despesas com Pessoal da Presidência da República”, conduzida pela Inspecção Geral das Finanças (IGF), que abrangeu o período de 9 de Novembro de 2021, data da tomada de posse do actual PR, até Janeiro de 2024. A começar pelo polémico salário auferido pela Primeira-Dama [ver caixa], matéria que, aliás, despoletou esta inspecção solicitada pela Presidência, através do Chefe da Casa Civil, ao Ministro das Finanças.

Desde 1 de Janeiro de 2022 e até Dezembro de 2023 (24 meses), Débora Carvalho recebeu da Presidência um salário bruto de 310.606 CVE, o mesmo vencimento que auferia enquanto Directora Geral da CV Telecom. Essa atribuição aconteceu após solicitação de licença especial feita à empresa e “tendo por base do pedido, a sua dedicação a tempo integral às causas delegadas pelo PR”.

Ora, a equipa da Inspecção, embora reconheça “um grande vazio” legal quanto ao exercício das funções de cônjuge do PR, considera que o cargo não pode ser remunerado, até porque não é uma função oficial do Estado.

“É evidente que o cônjuge do PR não é um cargo electivo, nem se pode dizer que é funcionário público, pois não existe uma função legalmente definida, o que impossibilita a fixação de uma remuneração inerente a esta função”, explica.

Ademais, na questão da mobilidade, em particular, não foram observadas “as legislações vigentes” que regulam tais processos.

Assim, conclui, o vencimento mensal recebido por Débora Carvalho, “no montante total de 7.454.544 CVE”, é “irregular e não tem suporte na legislação em vigor”. Face a isto, a Inspecção recomenda a reposição de 5.396.352 CVE, ou seja, o correspondente ao total da remuneração líquida recebida, considerando as retenções no IRPS e da TSU.

Salário Conselheira

Para além da Primeira-Dama, também Marisa Morais deverá repor o vencimento líquido recebido entre Maio de 2022, quando foi nomeada Conselheira do PR, e Dezembro de 2023, data em que foi finda a comissão de serviço. Durante esses 20 meses, a Conselheira auferiu mensalmente uma remuneração bruta de 151.118 CVE, num total de 3.022.360 CVE.

A irregularidade apontada é que a nomeada nunca procedeu à obrigatória tomada de posse perante o PR, pelo que legalmente nunca “não iniciou as funções” para as quais foi nomeada. Assim, “os pagamentos efectuados a título de salário não estão devidamente suportados pela legislação em vigor”, lê-se.

Adicionalmente, “não há evidencias de que exerceu funções no Gabinete do PR, conforme previsto”. E embora em sede de contraditório a presidência tenha argumentado sobre a legalidade do trabalho à distância, essa contestação foi rejeitada pela equipa da IGF, que insiste que a questão do teletrabalho só teria efeito “com a tomada de posse da nomeada”.

Por isso, o relatório recomenda a devolução do valor recebido indevidamente, no total de 2.259.480 CVE, ou seja, subtraídos os descontos legais efectuados.

Subsídios

A Presidência tem tantos funcionários quantos deputados tem o parlamento: 72. Desses, 16 têm vindo a receber 10 contos mensais de subsídio de compensação pelo uso de viatura própria. Ora, tal subsídio está legalmente previsto apenas para nove deles.

No contraditório, a Presidência argumenta que foi uma prática que já encontrou instituída. Porém, embora o subsídio não esteja regulamentado, há uma lei que o estabelece e que justifica a conclusão de irregularidade para os restantes sete funcionários. Deste modo, nos casos que não têm acolhimento na legislação, “deverá ser reposto o valor atribuído”.

Os subsídios de renda também foram analisados, sendo o valor atribuído ao Chefe da Casa Civil, 70 contos, considerado “inadequado, desproporcional e não vai ao encontro do estabelecido por lei”. Recomenda-se que na inexistência de um dispositivo legal que fixe o valor, este deve definir-se através de uma Portaria referente em concreto ao cargo em questão.

DGA

Outro caso analisado foi o salário da Directora Geral da Administração, que iniciou funções a 1 de Fevereiro de 2022, com um salário mensal de 200 contos. Alegando que o valor não reflectia o salário da sua função anterior (DNRE), que incluía pagamento de custas e coimas, a 1 de Maio de 2023 foi celebrada uma adenda ao contrato de gestão, para manter o “equilíbrio” remuneratório, passando a auferir 250 contos. Porém, contas feitas pela inspecção, mostram que na verdade, mesmo com as custas e coimas, o valor mensal seria ligeiramente abaixo dos 200 contos. Assim, recomenda que se reconsidere “a supracitada alteração”.

Despesas com pessoal

Quanto às despesas com o pessoal, no geral, no ano de 2021, foram de 71.303.578 CVE. Em 2022, o valor total subiu para 74.079.578 CVE e em 2023, voltou a aumentar, para 80.890.124.

Na evolução dos anos de 2021, 2022 e 2023 destacam-se outras flutuações. A remuneração com o pessoal contratado triplicou nesse intervalo, passando de 6.523.795 em 2021, para 19.464.815 em 2023. Salienta-se também o valor gasto em Horas Extraordinárias, que passou de cerca de 100 contos em 2021 e 2022 para 2.433.519 em 2023.

Na segurança social, as despesas baixaram de cerca de 4500 contos em 2021 para menos de metade (2.122 contos) em 2022 e foi de 3.576.512 em 2023.

Quanto à remuneração do Pessoal em Regime de Avença, passou de mais de 4 mil contos em 2021, para 0, em 2023, indicando aparentemente o abandono dessa modalidade. No entanto, o relatório destaca que foram celebrados nove contratos de prestação de serviço, incluindo seis para consultorias. Verificou-se que esses contratos deveriam ter sido feitos na modalidade de avença. A Presidência reconheceu a irregularidade e está em processo de regularização.

Entretanto, Documentos de Prestação de Contas, Relatório e Contas de Gerências dos anos 2021, 2022 e 2023 obedecem na generalidade às regras em vigor, diz o relatório.

O relatório deverá agora ser enviado para o Tribunal de Contas, conforme proposta da equipa de inspecção, “para efeitos de instrução dos procedimentos de reposição dos valores pagos indevidamente e efectivação de eventuais responsabilidades financeiras sancionatórias”. O próprio TC, recorde-se, está a analisar estas matérias em sede própria, sendo que o relatório deverá ser mais um elemento do processo.

Reacções

Em declarações à RCV, esta terça-feira, o Chefe da Casa Civil, Jorge Tolentino, avançou que o Conselho de Administração da Presidência da República vai reunir-se nos próximos dias, e, após esse encontro, irá pronunciar-se sobre o relatório.

Jorge Tolentino realçou que a inspecção, iniciada há meses, contou com toda a colaboração dos serviços da Presidência da República e que alguns pontos referidos no relatório, nomeadamente “alguns contratos, foram sendo corrigidos”. “Penso que já estão todos conformes aos entendimentos da IGF”, disse.

Quanto ao envio do relatório para o Tribunal de Contas, considerou tratar-se de “um procedimento normal” e salientou que a devolução dos salários da Primeira-Dama era uma possibilidade já há muito contemplada. “O próprio Presidente da República disse que esse cenário seria calmamente encarado”, lembrou.

Tolentino recordou ainda que, por enquanto, esta é ainda uma recomendação constante no relatório da IGF, sendo que falta “ainda pronunciamento do Tribunal de Contas”. Caso venha a ser essa a decisão, será feita a respectiva devolução.

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História de uma polémica

A polémica surgiu em Dezembro de 2023, quando foi tornado público que a Primeira-Dama recebia um salário mensal bruto de 310.606 CVE, pago pela Presidência da República. Um vencimento inédito e à margem do enquadramento legal, que provou fortes críticas e reacções no seio da sociedade cabo-verdiana. É que, em Cabo Verde, não existe um estatuto legal para o cônjuge do PR.

Na altura, e embora reconhecendo não haver qualquer contrato formal com Débora Carvalho, a Presidência justificou o vencimento com base na manutenção do mesmo estatuto salarial que Débora Carvalho tinha no seu quadro de origem.

Em directiva, de Janeiro de 2023, que autoriza o pagamento do salário, o Chefe da Casa Civil observa que a Primeira-Dama desempenha funções a tempo integral e que o vencimento assegura que a cidadã e profissional não seja “prejudicada nos seus direitos pelo facto de ser Primeira-Dama”.

Depois, em Dezembro do mesmo ano, quando o salário da Primeira-Dama se tornou público, Jorge Tolentino argumentou, no Facebook, que Cabo Verde já possui um estatuto informal para o cônjuge do Chefe de Estado.

“Há dois caminhos possíveis: decide o Legislador (Parlamento e Governo) por fixar em diploma único, sistematizado, todo o Estatuto ou, reconhecendo o que já existe, opta pela regulação do que falta regular”, escreveu.

José Maria Neves, por seu turno, referiu, no Facebook que, embora se mantivesse contra um “estatuto autónomo para o cônjuge do PR”, reconhecia a necessidade de adaptação. Débora Carvalho “ainda não tem idade para reformar-se e exercer a tempo inteiro. Por razões éticas e face a tais constatações (…) aplicou-se transitoriamente a lei da mobilidade”. Escreveu.

Entretanto, dias após ter estalado a polémica, o PR anunciou a suspensão o pagamento do salário da Primeira-Dama, bem como outras regalias, até que a situação fosse regulamentada por lei. Como lembrou, uma proposta de “nova Lei Orgânica da Presidência da República” já havia sido submetida ao governo. JMN avançou ainda ter requisitado ao Tribunal de Contas e à Inspecção-Geral das Finanças o seu pronunciamento sobre a matéria. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1185 de 14 de Agosto de 2024.

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Autoria:Sara Almeida,18 ago 2024 7:42

Editado porFretson Rocha  em  20 nov 2024 23:25

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