Começando por um olhar geral. Como avalia a actual situação dos direitos humanos no mundo? Há quem aponte retrocessos em várias áreas?
Completamos 76 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, um documento adoptado no momento da Segunda Guerra Mundial que continua actual, porque, olhando para os 30 artigos, não podemos dizer que nenhum tenha sido completamente alcançado. Por outro lado, também é importante lembrar que falar dos direitos humanos é falar de um processo. Nada está garantido porque estamos a falar de investimentos, de promoção permanente, de educação e da própria cultura. Temos é que fazer um esforço contínuo e investir cada vez mais na cultura e na promoção dos Direitos Humanos.
Mas estamos a assistir a retrocessos? Por exemplo, muitas vezes, em nome da segurança, os próprios Estados atropelam os DH.
Eu não diria retrocesso, mas diria que não estamos a trabalhar para garantir em pleno a promoção dos DH. A maior parte dos países ratificou as convenções internacionais, o que implica uma obrigação de cumprimento. Portanto, o Estado é o primeiro garante desses direitos, e quando é o próprio Estado a violar esses direitos, é preciso ver que outras medidas podem ser tomadas para fortalecer essa imposição. Esses, eram direitos praticamente garantidos, e não podemos registar alguma violação que possa pôr em causa toda a conquista feita ao longo dos anos. É essa a minha perspectiva a nível mundial.
Foi uma declaração aprovada pelas Nações Unidas, mas temos visto um enfraquecimento da ONU e do Ocidente. Com a ascensão de alguns países que não têm uma tradição de respeito pelos DH, está confiante no futuro?
Confiante no futuro, estou. Basta lembrar o nosso hino nacional, quando diz que “o homem é a esperança”. Recentemente, no dia 3 de Dezembro, ao assinalar o Dia Internacional das Pessoas com Deficiência, vi alunos surdos, com educação especial, a entoar o hino nacional em língua gestual. Foi um momento que renovou a minha esperança de que podemos construir um mundo melhor e igual para todos. Mas reconheço que é um grande desafio, a nível geral. Quando falamos de DH, temos de falar das “gerações” de DH. A primeira geração, relacionada com os direitos civis e políticos, de forma geral, já está praticamente alcançada. Hoje, bem ou mal, podemos ver democracias consolidadas ou em curso em vários países. Isso mostra que, apesar das dificuldades, é possível avançar. A segunda geração tem a ver com direitos económicos e sociais, e os desafios são maiores. [A terceira geração é dos direitos colectivos, como o direito ao desenvolvimento ou o direito à auto-determinação dos povos.] Hoje, já se fala na Inteligência Artificial, e está-se a discutir a quarta geração, a bioética. Significa que, a nível mundial, estamos a trabalhar na avaliação técnica de toda essa projecção. Assisti [recentemente, em Marrocos] a uma homenagem que fizeram a Omar Azziman, um marroquino cuja história pode ser confundida com a própria história do seu país, no que toca à promoção e defesa de DH. Foi alguém que no meio de um contexto crítico conseguiu ter uma visão e trabalhar de forma participativa para que houvesse mudanças, inclusive na própria Constituição. Jurista de formação, foi um dos primeiros defensores de DH em Marrocos e foi na sua geração que se introduziram leis para defesa das mulheres, num momento em que muitos não acreditavam que tal fosse possível. Para além disso, também conseguiu incluir a educação para os DH no sistema educativo. Portanto, quando falo da esperança, é nesse sentido de que as pessoas fazem a diferença, mas é preciso que, de facto, em cada geração apareçam também líderes, que possam revolucionar e mostrar que precisamos ir para um caminho diferente.
Passando ao contexto específico de Cabo Verde, um país assumidamente defensor dos DH, mas que também tem desafios. Quais são para si os maiores problemas?
Quando falamos de Direitos Humanos não devemos hierarquizar porque todos os direitos são importantes e devem ser garantidos. Mas, se me pergunta, de todos os Direitos qual deve merecer mais atenção, enquanto desafio em Cabo Verde, eu digo que teremos que dar mais atenção às pessoas mais vulneráveis. Às crianças, por exemplo. Não podemos permitir que Cabo Verde continue a ter casos de abuso sexual. É uma área crítica que acredito que tem muito a ver com a nossa cultura, onde às vezes tentamos normalizar determinados comportamentos e atitudes. Portanto, é necessário termos um outro olhar sobre a questão e reforçar todas as políticas e as medidas que já estão em curso. Outro ponto importante diz respeito à criação de mais oportunidades para as pessoas com deficiência, uma realidade que exige atenção. É também inaceitável que mães tenham de deixar os filhos fechados em casa para poderem trabalhar, porque não tem um lugar onde essas crianças possam ser acompanhadas de forma técnica e pedagógica. É algo a que temos que prestar mais atenção, mas também temos que ter a consciência da falta de recursos de Cabo Verde. Aliás, mesmo países com mais recursos não estão a conseguir dar todas as respostas. Temos que ter uma visão equilibrada e pragmática e pensar quais as condições necessárias para que Cabo Verde possa, de facto, dar mais e melhor atenção a todas essas necessidades. Outro aspecto igualmente preocupante é a situação das pessoas com perturbações mentais, que muitas vezes ficam desamparadas, sem que nenhuma entidade assuma a responsabilidade por lhes prestar o apoio de que precisam.
E quais são as queixas ou denúncias que a CNDHC tem recebido?
Temos a consciência de que as queixas que chegam à Comissão não representam a totalidade das queixas, porque existem vários canais disponíveis para denúncia. O ICCA e o ICIEG, por exemplo, têm os seus próprios canais. No caso da Comissão, as denúncias podem chegar de várias formas. Temos, nomeadamente, o número 8002008, criado em parceria com a Casa do Cidadão. As denúncias recebidas são tratadas e encaminhadas conforme o seu teor. Aquelas que dizem respeito directamente à violação de um direito humano, são tratadas internamente, mas há questões que não são da nossa competência, que encaminhamos para outras entidades: o Provedor de Justiça, o próprio Ministério Público, e outras. Este sistema permite que cada denúncia receba o tratamento adequado, com base na área de competência de cada instituição. Portanto, trabalhamos um pouco como interface. Em questões de ordem socioeconómica, por exemplo, nós não temos nenhum fundo, nenhuma responsabilidade na execução de políticas públicas. Mas, somos um vigilante no garante da não violação dos direitos que estão proclamados e consagrados na própria Constituição.
Mas quais são as principais problemáticas que vos chegam?
Temos denúncias, por exemplo, que envolvem questões familiares, que, por serem de natureza íntima, exigem um tratamento muito cuidadoso e confidencial. Às vezes as pessoas até criticam que não divulgamos [as denúncias], mas temos que saber tratar cada assunto com sigilo e dar a protecção às vítimas, nesse caso. Também recebemos algumas denúncias de reclusos ou detidos. Nesses casos, encaminhamos para os serviços competentes para obter informações e damos seguimento à questão. E fazemos relatórios anualmente, e várias visitas. Durante essas visitas, ouvimos as pessoas e, havendo alguma questão que mereça uma atenção diferenciada, fazemos chegar essas questões aos responsáveis de cada uma das instituições.
Recentemente, mencionou que era preciso uma maior articulação entre as várias instituições, bem como com a sociedade civil. Como tem sido essa articulação?
É preciso contextualizar. Essa afirmação foi feita no âmbito da 64ª plenária da CNDHC. A Comissão tem grupos de trabalho permanentes e temporários. Os permanentes estão no próprio estatuto, o que permite que haja maior eficácia nas respostas. Tem 30 comissários de várias instituições, incluindo serviços centrais do governo, sociedade civil, ONGs, sindicatos e partidos políticos. O que sentimos no terreno é que, os comissários que são indicados para integrar a Comissão, por um lado, nem sempre priorizam as actividades da CNDHC em detrimento das suas funções principais. Por outro, quando falo da falta de articulação, refiro-me, por exemplo, à resposta a problemas como a saúde mental. Temos várias instituições, tanto da sociedade civil quanto do próprio Estado e governo, que trabalham nessas áreas, mas sabemos que no terreno as respostas não são suficientes. Uma família que está em sofrimento precisa de uma resposta imediata. Muitas vezes, um recurso até existe, mas não está acessível à família ou à pessoa que dele precisa no momento certo.Outro exemplo: recebo um donativo e há uma associação como a Colmeia, que trabalha com crianças com necessidades especiais, com especialistas e que têm necessidade de determinados materiais que não se encontram no mercado. Se tenho uma parceria, por que não canalizá-la para essa instituição que trabalha especificamente com essa problemática? É nesse sentido que digo que é preciso mais sinergia, mais articulação. Estamos num país de parcos recursos, e, portanto, os recursos que aparecem devem ser utilizados de forma mais eficaz e eficiente. Um problema que existe é que, muitas vezes, algumas entidades querem destacar-se. Então precisamos ainda ganhar alguma maturidade institucional, mas penso que estamos a trabalhar nesse sentido. Entretanto, assinalou-se, no dia 5 de Dezembro, o Dia Internacional do Voluntariado, que é algo que ao longo dos anos tem vindo a enfraquecer. Precisamos de dar mais força a essa causa, porque só o governo não vai conseguir responder a todas as necessidades. É preciso que haja, de facto, uma mobilização maior e que todos tenhamos essa vontade de ver o Outro bem.
E como vê a interiorização dos DH? Os cidadãos têm consciência dos seus direitos e deveres?
Temos plena consciência de que há muito trabalho a fazer. Para o próximo ano, temos uma parceria com a AJOC e outras instituições da comunicação social, em parceria com a Unesco, para reforçar a capacitação dos jornalistas e dos órgãos de comunicação, no sentido de contemplarem esta abordagem. O que tem acontecido, eventualmente por causa da falta de recursos, é que quando há um evento, a cobertura jornalística limita-se ao discurso de abertura. Os jornalistas nem aparecem no encerramento para perceber as principais conclusões. Queremos envolver a comunicação social como parceira, não apenas para a cobertura, mas também para dar um tratamento adequado e estar por dentro das principais questões. Já reeditamos os 75 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em crioulo e em português, porque queremos intensificar a actuação no terreno. Não basta falar [de DH] ou fazer uma acção, de vez em quando. É necessário um trabalho contínuo. Houve o projecto de educação de DH para crianças, com instrumentos belíssimos, que devemos valorizar. Mas quando pergunta: as pessoas conhecem os seus direitos? Estamos em um país de direito, mas só damos conta desse direito quando ele falta. Precisamos de investir numa cultura de educação para os DH, temos que falar sim nos direitos, mas também nos deveres. Quando, por exemplo, vemos a situação de crianças ou jovens, não podemos apenas apontar a perda de valores, mas também a falta de responsabilidade de alguns pais. Recentemente, participei numa actividade para crianças com deficiência e notei que, na sua maioria, eram as mães que acompanhavam os filhos. Poucos pais estavam presentes. Isso revela um problema maior: como apoiar essas mães que, muitas vezes, têm um triplo trabalho — cuidar das crianças, garantir que tenham mais oportunidades e, ao mesmo tempo, sustentar a família. Essas mães precisam de apoio e tempo pois precisam de trabalhar para trazer o sustento para casa. Assim, chamaria a atenção às nossas políticas públicas, tanto a nível central quanto local, para começarem a colocar isso na agenda. Mobilizamos muitos recursos para festivais, se redireccionássemos parte desses recursos para investir nessas áreas, poderíamos ter um impacto significativo. Mesmo o conceito de parceria precisa de ser discutido. Muitas vezes, ser parceiro não significa contribuir com recursos financeiros, mas com outros tipos de apoio, como disponibilizar uma equipa técnica.
Falou das acções no terreno e também junto às escolas…
Foi produzido todo um material educativo, incluindo versões em braille, audiovisual, e até um jogo pedagógico. Também há um manual para os professores. Este material destina-se a crianças dos 5 aos 10 anos, e estamos a mobilizar recursos para darmos continuidade junto às outras faixas etárias, com linguagens apropriadas para cada grupo. Está a decorrer um estudo sobre a percepção da população sobre a CNDHC. Os resultados serão socializados antes do Natal, e nessa socialização vamos identificar áreas em que podemos melhorar, em termos de utilização de linguagem apropriada, para maior proximidade. Por exemplo, há dias vi uma criança dos seus seis anos, e ofereci-lhe uma brochura para a sua idade. A criança viu o material, achou interessante, mas rapidamente voltou para o seu jogo no tablet. Isso alerta-nos para o facto de que nessa idade já preferem material em formato digital. Estamos a trabalhar uma parceria com o NOSi, para ver se diversificamos, com o uso das novas tecnologias e materiais mais dinâmicos, alinhados com o mundo actual, que não podemos ignorar.
Falando de hoje. Como avalia, até agora, a implementação do II Plano Nacional de Acção para os DH?
O II Plano foi prorrogado até Setembro de 2025. Vamos avaliar a implementação com os indicadores e, ao mesmo tempo, preparar de forma participativa a implementação do III Plano. É importante destacar que, pelo facto de ter ratificado as convenções, Cabo Verde tem sido ciclicamente avaliado pelas Nações Unidas. Estamos no quarto ciclo de avaliação e com parcerias com universidades, pois queremos que haja mais interesse por parte dos académicos sobre estes temas. Um estudo interessante seria analisar as recomendações recorrentes dos quatro ciclos de avaliação. Cabo Verde recebeu 205 recomendações, que vamos divulgar, para que sejam conhecidas e sirvam de base para, no próximo ciclo, focalizarmo-nos nas principais questões identificadas. Para se ter uma ideia, neste quarto ciclo, e olhando os objectivos do desenvolvimento sustentável (ODS), 43% das 205 recomendações alinharam-se com o ODS 16, que trata de justiça, paz e instituições eficazes. Isso vai ao encontro do que temos estado a falar: a importância de sinergia, articulação e recursos. Depois, 13% têm a ver com a equidade de género.
Está em linha com o relatório do departamento de Estado dos EUA.
Exacto. Entretanto, estamos na fase final da implementação do Observatório de Direitos Humanos, um elemento fundamental para trabalharmos sempre com dados. Contamos com a importante parceria do Instituto Nacional de Estatísticas e estamos a fechar um acordo com o Observa Direitos Humanos do Brasil, uma instituição com vasta experiência na área e com um site dinâmico que permite à população acompanhar o cumprimento das obrigações e reforçar o papel da sociedade civil. Além disso, a pesquisa é um elemento importantíssimo para acompanhar e avaliar, porque se não tenho dados, não tenho como avaliar. Gostaríamos que todos dessem atenção a este projecto porque teremos de trabalhar em sinergia para recolher dados em outras instituições. Como mencionei anteriormente, as denúncias que chegam à comissão são apenas uma parte da realidade. Além disso, hoje, muitas denúncias chegam através das redes sociais. Então, precisamos também de ter uma pessoa dedicado que observe e acompanhe tanto os órgãos de comunicação social como as redes sociais para que haja uma dinâmica mais eficaz.
Essa vai ser função desse observatório?
Sim. Vamos ter essa capacidade para dar respostas. Além disso, está a decorrer a revisão do estatuto da Comissão, com o objectivo de torná-la mais robusta. Actualmente, contamos com 30 comissários, mas iremos avaliar se os perfis das instituições representadas são os mais adequados para garantir respostas eficazes ou se será necessário algum reajuste.
Quando é que o Observatório de DH entrará em funcionamento?
O observatório já foi concebido. Neste momento, aguardamos a resposta de uma candidatura feita à Unesco para obter a plataforma digital, pois a gestão manual de tantos dados não é viável. Enquanto isso, estamos a fazer todo o trabalho de preparação, alinhando os parceiros e construindo a metodologia para garantir uma implementação eficiente. Já validamos os indicadores e agora, com os resultados das recomendações, vamos socializá-lo a nível nacional, com todas as estruturas descentralizadas e trabalhar com os grupos de trabalho focalizados em cada matéria específica. Aproveito para falar de uma outra dinâmica em curso que é o envolvimento das empresas, um sector que tem estado mais afastado destas questões. Estamos a trabalhar para chegarmos junto às câmaras de comércio do Sotavento e Barlavento, de forma a termos um trabalho mais alinhado.
Por fim, o que espera que Cabo Verde tenha alcançado no próximo ano, quando celebrarmos os 77 anos da Declaração Universal?
Em primeiro lugar, um maior envolvimento do sistema educativo em todas as suas etapas, do pré-escolar ao universitário. As universidades ainda não incluem disciplinas dedicadas aos direitos humanos. Então, estamos a incentivar para mudar isso e vamos mobilizar recursos para que as universidades possam também oferecer, formações nesta área, cursos de especialização ou pós-graduação em DH, criando uma massa crítica que garanta a continuidade e a sustentabilidade das acções. O ponto-chave para assegurar um futuro sólido nesta matéria é a educação. Além disso, temos um papel forte na promoção dos DH e vamos utilizar todos os meios que já temos disponíveis e investir cada vez mais nisso. Temos um vídeo institucional e estamos a trabalhar na memória institucional, porque muitas vezes, nessa corrida de estafetas, vão-se perdendo memórias. Então, queremos resgatar todo esse percurso belíssimo que Cabo Verde tem feito ao longo dos últimos 20 anos na promoção dos DH. Queremos pôr em funcionamento o Observatório, o que fará uma grande diferença no processo de monitorização. Também queremos dar mais atenção à vítima, pois muitas vezes, após uma denúncia, ela sente que não recebe retorno, seja pela morosidade da justiça ou falta de recursos. Mas a vítima é a pessoa que mais precisa e, mais uma vez, nem sempre é a questão é o recurso financeiro, a reparação, mas a parte emocional, psicológica. É a pessoa sentir-se acolhida e saber que tem onde recorrer e ter essa assistência. Para isso, será necessário contar com uma equipa mais preparada, com uma formação especializada. Estamos a lutar para conseguir isso no próximo ano, através de contratação pública, e reforçar de maneira estratégica os recursos humanos. Entretanto, Cabo Verde foi escolhido para receber a 3.ª conferência dos Mecanismos Nacionais de Prevenção Africanos, que irá decorrer em Junho de 2025. Cabo Verde deve criar as condições necessárias para garantir um trabalho excelente, com a sua morabeza de sempre. Mas os desafios não são poucos e devemos estar preparados para enfrentá-los.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1202 de 11 de Dezembro de 2024.