Criado em 2024, o Instituto de Modernização e Inovação da Justiça (IMIJ) nasceu com um mandato claro: modernizar, integrar e tornar mais eficiente todo o ecossistema da Justiça cabo-verdiana. Para além da gestão e administração operacional do Sistema de Informação da Justiça (SIJ), cabe-lhe assegurar a modernização dos sistemas e subsistemas de Registos, Notariado e Identificação, bem como dos serviços prisionais e demais componentes do sector. O SIJ é o projecto mais estruturante deste novo ciclo. O seu desenvolvimento é anterior à criação do IMIJ, mas foi no último ano que que ganhou o impulso decisivo. Hoje, todas as 17 comarcas do país já utilizam o SIJ na tramitação digital do processo penal, garantindo cobertura nacional e um nível de uniformização até agora inédito. Nas palavras do presidente do IMIJ, Juvenal Pereira, o objectivo é atingir uma integração plena de todos os órgãos judiciais num horizonte de cinco anos e garantir, em três, um SIJ estável, consolidado e capaz de reduzir substancialmente o volume de papel e de consumíveis ainda utilizados.
Navegam num mar de equilíbrios delicados, entre o desafio da modernização tecnológica e a autonomia intrínseca aos órgãos da Justiça. Como é que têm conseguido esses equilíbrios?
É uma excelente questão. O trabalho foi projectado num quadro de cooperação, de diálogo permanente com outros actores e entidades e autoridades do sistema judicial, sendo certo que o seu papel se resume ao âmbito tecnológico. De facto, a Justiça é um sector grande, com vários players, e a articulação tem de ser muito sensível, mas tem sido muito boa, porque temos tido o apoio de todos os órgãos que fazem parte do sistema judicial. E agimos, também, naturalmente, em estreita articulação com a tutela.
Toca num ponto que me parece importante. A Justiça não se resume aos tribunais e combina um conjunto de actores, com os quais o IMIJ também trabalha.
Sim, sim. A Justiça é um sector grande, tem vários actores e tem de haver articulação. Por isso mesmo, temos conseguido avançar muito rapidamente, num ano, com resultados muito satisfatórios, tendo em conta que ainda estamos na fase da implementação, consolidação e expansão do próprio Sistema de Informação da Justiça (SIJ).
A partir de que pressupostos começaram a construir essa transformação digital da Justiça?
O pressuposto advém, sobretudo, da necessidade de todos perceberam que a Justiça poderia funcionar melhor se alicerçada em meios tecnológicos. Estamos a falar de sistemas, subsistemas, aplicações, equipamentos, infra-estruturas. Daí que os próprios desafios deste processo se resumam a isso mesmo: criar uma instituição como o IMIJ, dotada de recursos humanos que são profissionais de tecnologias de informação e comunicação, para criar as condições tecnológicas para que os profissionais da Justiça possam ter meios e condições para realizar, da melhor forma possível, os seus serviços.
Julga que a existência do IMIJ foi fundamental para que, desta vez, o processo de digitalização tenha avançado rapidamente?
Foi fundamental, sem dúvida nenhuma. Não havia essa estrutura vocacionada para o desenvolvimento tecnológico. Essencialmente, tem a ver com a configuração, com a visão política, posso dizer assim. E, do ponto de vista tecnológico, uma liderança que seja capaz de levar o projecto a outro nível.
O SIJ é a espinha dorsal da Justiça digital. Na prática, de que forma o sistema responde às necessidades dos tribunais e dos diferentes operadores da Justiça?
Efectivamente, o SIJ é o principal sistema dentro da edificação do sistema judicial na perspectiva digital, tecnológica. Em tão pouco tempo, conseguimos fazer a implementação do sistema em todas as comarcas de Cabo Verde. Estamos a falar de 17 comarcas, incluindo a comarca de São Miguel, inaugurada recentemente. De Santo Antão à Brava, todos os juízes, procuradores, oficiais já tramitam digitalmente o processo penal através do SIJ. E também já temos, nesta altura, só para ter uma ideia, cerca de 18 mil autos, que provêm da Polícia Nacional e da Polícia Judiciária, totalmente digitais. Esse volume traduz-se numa estimativa de poupança de cerca de um milhão de folhas de papel. Temos hoje 17 comarcas, todas elas integradas em torno do mesmo sistema, partilhando informação entre colegas e tramitando o processo digitalmente. Todos os profissionais da jurisdição penal já também utilizam mecanismos de assinatura digital qualificada, que é o mecanismo utilizado a nível internacional nesse tipo de prática. Por outro lado, já estamos na fase final de formação e preparação para a produção de uma versão de lançamento da tramitação digital do processo civil e, a partir daí, também os magistrados da jurisdição cível passarão a ter as mesmas condições de trabalho, a mesma facilidade e a mesma celeridade.
Têm encontrado resistência? Sabemos que mudar práticas enraizadas nem sempre é fácil.
Muito sinceramente, até fiquei surpreendido pela positiva nesse aspecto. Não encontrámos nenhuma resistência à utilização do sistema. Muito pelo contrário, encontrámos profissionais que já estavam conscientes da importância e da necessidade de utilizar o sistema e que deram contribuições positivas para melhorarmos algumas funcionalidades.
Falemos sobre os ganhos, aqueles que já são mensuráveis e os que se perspectivam.
Para nós, o maior ganho é colocar os profissionais da Justiça a trabalhar em rede, desde a polícia até ao último juízo, porque o SIJ não se cinge aos tribunais de primeira instância. É um sistema muito bem concebido, permitindo que, mais tarde, tribunais de outros níveis possam também integrar o sistema. Antevejo todos os órgãos do sistema judicial e judiciário cabo-verdiano devidamente integrados no SIJ num horizonte de 5 anos e um SIJ estável e consolidado num horizonte de 3 anos, com redução gradual e substancial do volume de papel e de outros consumíveis. Com o sistema, tudo fica mais rápido e haverá maior disponibilidade para os profissionais da justiça se dedicarem a actividades mais importantes.
Parece-lhe razoável dizer que, depois de termos um SIJ devidamente consolidado, quer no processo penal, quer no processo civil, teremos uma justiça melhor e mais rápida?
Acredito que sim, porque o SIJ é um dos instrumentos fundamentais para termos uma Justiça mais rápida. É uma visão política e tecnológica que, do meu ponto de vista, é acertada. Claro que, depois, outras acções e outras participações terão de convergir com aquilo que é a disponibilidade do sistema e a sua performance para que, no conjunto, seja alcançado o objectivo de celeridade na realização da Justiça.
Gostava de olhar para o futuro. Certamente que o SIJ sofrerá actualizações e evoluções ao longo dos anos, à medida que as necessidades e a disponibilidade tecnológica assim o determinem. Falo, por exemplo, da questão da inteligência artificial (IA). O que é que antecipa, não só no SIJ, mas na Justiça, em geral?
Por ser profissional da área das tecnologias, da informática, tenho acompanhado a evolução da IA um pouco por todo o mundo, em vários sectores, e no sector da Justiça, particularmente. Como sabe, a IA não é uma área científica e tecnológica nova, existe desde os anos 50. Nos Estados Unidos, temos soluções de IA que são utilizadas no campo da Justiça há várias décadas. Estão a ser criadas soluções de agentes assistentes muito interessantes, que se podem aplicar também ao sector da Justiça, sendo certo de que o uso da IA não é para realizar a Justiça, mas uma ferramenta que permite a organização, a estruturação de dados e documentos de primeira linha. A utilização da IA como ferramenta para facilitar a organização da informação, muitas vezes com uma precisão muito superior à capacidade humana, com margem de erro muito reduzida em relação àquilo que os humanos podem cometer. Não para agora, mas estamos a explorar esta tecnologia, para ver como é que o seu uso poderá, de forma controlada, trazer mais benefícios, mais ganhos e mais celeridade ao nosso sistema judicial. Se eu for um profissional treinado, com prompts próprios consigo instruir a IA a elaborar um requerimento ou uma declaração ou um despacho nos termos que quero e ela é capaz de fazer um documento de 20, 50 páginas, ou até mais, em fracções de segundo - se bem instruída. Eu, enquanto profissional de Justiça, o que me caberá depois é a validação do documento produzido. Em vez de demorar uma semana, 15 dias, posso, em apenas 5 minutos, ter um documento consistente, cuja validação e finalização dependem de mim.
Já aqui falou sobre o desafio do alargamento do SIJ ao civil, mas pedia-lhe para olharmos um pouco mais à frente. O que antecipa?
No horizonte de 5 anos, vejo um sistema totalmente implementado e consolidado, com todas as suas peças a funcionar devidamente, com todos os processos digitais, com todos os processos físicos já digitalizados e integrados no sistema, com todos os profissionais de Justiça a trabalhar no sistema, sem recurso ao papel ou com recurso mínimo. Um sistema robusto, que nos permitirá explorar, como disse há pouco, a utilização de IA, sobretudo no campo de processamento de língua natural. Vejo a possibilidade de informatização das salas de audiência, em que qualquer interveniente em sala, o sistema seja capaz de, automaticamente, gerar documentos, relatórios ou outro tipo de documentos a partir desse áudio. Uma sala de audiência inteligente. Antevejo um sistema que corresponderá àquilo que é a ambição de Cabo Verde para a transformação digital do sector da Justiça. Ousaria dizer que teremos condições para, caso todas as acções sejam desenvolvidas de forma convergente, reduzir drasticamente as pendências, porque a produtividade será maior e a celeridade também. Em cinco anos, seremos capazes de, em conjunto com todas as partes, todas as entidades, reduzir substancialmente as pendências e aumentar drasticamente a celeridade.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1255 de 17 de Dezembro de 2025.
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