Teremos oportunidade de detalhar alguns assuntos, mas começaria por uma pergunta geral. Que país temos neste Julho de 2023?
Uma coisa que não se pode ignorar é que o contexto mundial tem sido difícil. A pandemia, cujos reflexos foram muito fortes e ainda se sentem, a guerra na Ucrânia, com a escalada inflacionista. Ainda temos incertezas, não se sabe quando é que esta guerra terminará e que impactos vai provocar. Também temos o impacto das alterações climáticas que, no caso de Cabo Verde, implicam secas severas. Todo o mundo está a passar por isto.
Há uma coisa que deve ser salientada. Ao contrário do que algumas previsões pessimistas apontavam, fizemos um bom combate à pandemia, conseguimos recuperar a economia depois da contracção de 2020, a maior de sempre. Mais do que recuperar, conseguimos a retoma da dinâmica de crescimento do emprego, da redução da pobreza.
Aquilo que eu defino como estado da Nação é um estado de optimismo. O país tem rumo, tem uma estratégia de desenvolvimento e tem uma agenda 2030. Não nos limitámos a gerir as crises. Temos níveis elevados de confiança, apesar dos problemas que existem.
Os dados macroeconómicos apontam para um crescimento da economia. Parece-lhe que este crescimento do PIB está a reflectir-se nas famílias e nas empresas?
É preciso ter em conta que já estávamos com uma dinâmica de crescimento antes da pandemia.
O crescimento económico reflecte-se sempre, só que não é suficientemente forte relativamente à abrangência de todas as situações, por isso é que, para além do país ter estado a crescer e ter recuperado, introduzimos um conjunto de medidas directas que vão no sentido de fazer as compensações. Todas as medidas de protecção ao emprego, ao rendimento, de inclusão social, particularmente dirigidas às situações de pessoas que perderam o emprego durante a pandemia, à situação das pessoas mais pobres, têm esse efeito de fazer com que o crescimento económico e a geração de emprego, através da actividade económica formal, fosse compensada e complementada com outras medidas.
A política activa de emprego, através da formação e qualificação dos jovens, é uma outra forma de fazer com que possamos criar oportunidades associadas à disponibilidade que esse próprio crescimento económico vai gerar.
O governo enfrentou recentemente uma moção de censura, chumbada pela maioria que o sustenta, relacionada com a questão da transparência na gestão de vários dossiers. Já lá vamos aos resultados produzidos, mas está satisfeito com a gestão, até política, desses mesmos processos? A gestão é, efectivamente, transparente?
Desde 2016, a oposição tem sido coerente e consistente, porque desde o início tem erguido a bandeira de tentar demonstrar que o governo é intransparente, que faz negócios obscuros, que faz privatizações sem transparência. Para nós, não há novidade nenhuma relativamente a este libelo acusatório, que já é uma imagem de marca da oposição, particularmente do PAICV.
No debate com o Primeiro-Ministro e no debate da moção de censura, demonstrámos que o governo não tem nada a temer quanto à sua actuação e intervenção, relativamente a esses dossiers, do Fundo do Turismo e Fundo do Ambiente.
Despoletámos todos os mecanismos para eventuais responsabilizações. Para além disso, o governo tem estado a intervir no sentido de melhorar ainda mais o quadro da transparência. Demos vários exemplos. Foi iniciativa deste governo o reforço das competências do Tribunal de Contas. A própria Inspecção Geral das Finanças foi reforçada no seu quadro de intervenção. Criámos o Conselho de Prevenção da Corrupção. Robustecemos as instituições. Relativamente à PGR, todo o trabalho, no quadro do seu desenvolvimento institucional, foi no sentido de fazer com que tenhamos uma actuação muito mais assertiva.
Nós confiamos nas instituições. Aquilo que o Tribunal de Contas venha a determinar, ou a própria ARAP, ou a PGR, terá de ser respeitado e terá que ter consequências. À partida, não vemos nada que incrimine o governo nestes dossiers, mas como se continua a bater na mesma tecla, remetemos às instituições, para terem o seu posicionamento.
Mas a gestão política não poderia ter sido feita de outra forma?
Não creio que o problema esteja na gestão política. Está na obsessão sistemática da oposição, particularmente do PAICV, relativamente a estas matérias. Sei que não vão parar, vão tentar continuar nesta mesma onda de suspeições e acusações, que não tem pés para andar, porque se tivesse, em 2021, o Governo teria perdido as eleições.
O grupo Vinci iniciou a gestão dos aeroportos. Se as coisas não correrem como esperado – e noutros casos não correram como esperado – o governo está preparado para intervir, reverter, renegociar e reenquadrar a concessão?
Em primeiro lugar, acreditamos e estamos confiantes de que vai correr bem. O ambiente que se criou, mais uma vez por parte da oposição, por parte do PAICV, é um ambiente de negativismo, “vai falhar”. Devem estar a rezar para que falhe.
Estamos convictos de que vai funcionar. Pela escolha de um parceiro estratégico de referência, como a Vinci, uma das cinco melhores empresas e grupos de gestão aeroportuária do mundo, a parceria com a ANA. O grau de compromisso estabelecido a nível do contrato de concessão foi feito com muito cuidado, com especialistas internacionais de alto nível a suportar e a apoiar o governo, portanto, estamos em crer e vamos fazer tudo para que corra bem.
Qualquer contrato de concessão, neste caso particular também, tem sempre cláusulas que permitem quer regaste, quer reversões, quer compensações e indemnizações para situações que eventualmente possam vir a correr mal. Mas temos de colocar o foco no sentido positivo, temos que trabalhar para que as coisas corram bem.
Não se podem construir histórias à volta de um ou outro caso que tiveram problemas. Está-se sempre a bater na tecla da Icelandair. Tivemos uma privatização que começou a produzir os seus resultados em 2019. O contexto internacional provocado pela pandemia atacou fortemente o sector dos transportes aéreos, abalou fortemente as condições de partida que estavam estabelecidas. A própria Icelandair entrou em dificuldades acrescidas e chegámos a acordo de que não haveria condições de continuar. Fizemos o resgate, mantivemos a empresa, recuperámos a empresa. Lá está a TACV a relançar-se novamente na sua actividade.
Não se vai, a partir deste caso, tentar desconstruir todo o futuro que pode ser realizado através de parcerias estratégicas, em condições e com parceiros diferentes.
São negócios em circunstâncias diferentes, mas o que é que o governo aprendeu com aquilo que não terá corrido tão bem com a Icelandair, com a primeira versão do contrato de concessão dos transportes marítimos, até com a Binter?
O que aprendemos, o que todos devem aprender, é que não se pode desconstruir ou destruir ou criar ambientes de caos, porque alterámos as condições de negócio, as condições da parceria ou mudámos de opção relativamente a parcerias.
Começo novamente com a questão da Icelandair. Foi realizada num determinado contexto e não se pode ignorar que tivemos a pandemia.
Em segundo lugar, a Binter entrou em Cabo Verde num processo que encontrámos quando chegamos no governo, em 2016. Na altura, a TACV não tinha os Boeings e tinha os ATR comprometidos, através de um contrato de leasing que não estava em cumprimento. Ou ficávamos sem transportes inter-ilhas, o que seria gravoso, ou permitíamos que uma companhia que já estava em condições de preparação para o seu licenciamento começasse a operar. A Binter começou a operar e a fornecer serviços em Cabo Verde. Chegou um momento em que encontraram uma via alternativa de saída, passando a sua participação através da TICV. Essa participação foi vendida à Bestfly e a Bestfly está a operar.
O importante aqui é que as operações, as actividades continuaram sem grandes distúrbios, sem grandes constrangimentos. Isso é que é fundamental manter.
Temos tido uma atitude diferente daquilo que existia anteriormente, quando se deixavam os problemas degradarem-se. Nunca ficámos parados a contemplar. Enfrentámos de frente, construímos soluções, demos respostas.
Qual é o prazo razoável para pensarmos numa TACV mais bem preparada para o mercado e não dependente do Estado? Porventura, preparada para a sua reprivatização…
Primeiro, avales são garantias para permitir que a empresa vá à banca se financiar com garantias suplementares por parte do Estado. Damos garantias também em relação a outras empresas. Em segundo lugar, em quase todas as companhias do mundo, nas situações a que os países têm estado sujeitos relativamente às crises, os governos têm estado a injectar milhões para salvar as suas companhias de bandeira, porque há valores maiores a proteger.
Com a chegada do segundo aparelho, estaremos a criar as condições para que a recuperação comece a ser feita de forma mais acelerada, porque o negócio da aviação civil é feito com aviões. Para se ter rendimento, tem de se ter aviões a voar. Vamos ter a necessidade de mais aparelhos, para podermos fazer mais penetração nos mercados, mais rotas, mais passageiros, para a empresa entrar num nível de sustentabilidade.
Haverá ainda a necessidade de suporte do governo e chegaremos a um ponto em que iremos novamente questionar a procura de um parceiro estratégico que garanta a expansão da própria companhia.
Qual o prazo razoável para que isso aconteça?
Não vou definir prazos. Depende de factores que muitas vezes não controlamos. Ainda estamos num cenário internacional de algumas incertezas.
Em relação aos transportes marítimos, está satisfeito com aquilo que resultou da renegociação do contrato de concessão?
Sim. Já começámos a sentir os efeitos, a nível da regularidade das ligações, do cumprimento de algumas garantias dessas ligações. Mas quero dizer que ainda não estamos num quadro satisfatório. Pretendemos que haja ainda mais regularidade, menos situações de interrupção das ligações, por causa de avarias ou manutenção dos barcos. É por isso que estamos a trabalhar afincadamente para podermos dotar o país de mais barcos.
Sobre os quatro navios para transporte inter-ilhas que o governo vai adquirir, estes serão explorados pela empresa concessionária, mas continuarão a ser propriedade do Estado, é isso?
Sim. Não vai haver nenhuma oferta como se insinuou. O Estado não se vai endividar, para depois oferecer, não. Os navios serão sempre propriedade do Estado e serão afectos à concessão em condições que serão estabelecidas, ainda com maiores vantagens, porque os custos financeiros das operações de financiamento dos navios não serão imputados ao Estado, porque é o próprio Estado a assumi-los nas aquisições. Isso vai fazer com que as indemnizações compensatórias também baixem e terá reflexos na viabilidade e na sustentabilidade da própria concessão.
Falemos sobre segurança pública e criminalidade. Praia, São Vicente, recentemente, Brava... Não acha que está aqui a falhar qualquer coisa? O que é que o governo prevê fazer para se interromperem estes ciclos de criminalidade urbana?
É continuar a dar o bom combate à insegurança e à criminalidade. A acção policial, as operações especiais, a própria lei das armas. A acção repressiva tem de continuar. Isso é importante, porque também é preventivo, porque as pessoas não podem sentir que estamos num país onde é fácil fazer e praticar assaltos, roubos ou crimes mais graves.
Ao mesmo tempo, temos estado a actuar e a intervir para reduzir o nível de reincidências. A reintegração é importante, mas leva tempo a produzir efeitos.
A responsabilidade social, familiar, são importantes. Não quer dizer que o Estado transfere a responsabilidade para as famílias. O Estado tem a responsabilidade maior de garantir a segurança, mas as famílias, em casa, devem ter cuidados relativamente à educação, à boa integração familiar. Isto tudo é importante e são movimentos que podem levar algum tempo a produzir efeitos.
Sabemos que hoje há mais relatos de casos. A própria comunicação social faz o seu papel, há mais exposição pública de casos, por isso também se transmite mais essa sensação de insegurança. Temos de trabalhar com isto, é o mundo que temos, a situação que temos. Aquilo que garanto é que há determinação do governo para despistar e intervir, particularmente, nos domínios onde se alimenta esse tipo de criminalidade: armas, drogas, bebidas alcoólicas, a própria actuação a nível das cidades, das localidades, do cumprimento dos horários dos estabelecimentos, da facilidade com que se fazem eventos que chegam até de manhã, regados com álcool de forma descontrolada.
Estamos a intervir e a actuar, no sentido de permitir que a própria Polícia Nacional tenha mais acção, em concertação com a IGAE e com as instituições de fiscalização e de autoridade municipal.
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Em que ponto está o processo de criação do Hospital Nacional de Cabo Verde?
O processo está em curso. Há toda uma montagem técnica e também financeira, há uma equipa de trabalho multidisciplinar. Quando tivermos tudo fechado, igualmente na componente que tem a ver com financiamento, iremos dar mais informações. Queremos, pelo menos, iniciar a sua concretização durante o nosso mandato.
E em relação aos investimentos previstos para São Vicente? A maternidade do Baptista de Sousa, o centro ambulatório…
A nova pediatria e maternidade do HBS estão com processo seguro. É um financiamento da cooperação chinesa, brevemente será lançado. Relativamente ao centro ambulatório, temos tido alguns problemas na sua conclusão, mas também com o Fundo Kuwait já encontrámos uma solução para desbloquear a fase final.
Uma das áreas-chave identificadas pelo governo é a economia digital. Em que ponto faremos a transição da fase em que o país investe para aquela em que o país começa a colher frutos desse investimento?
No próximo ano, seguramente. Na Praia, uma parte do Parque Tecnológico já está com ocupação e em funcionamento. Estamos a apontar ainda para este ano para a conclusão de todo o investimento. Em São Vicente, toda a parte física, que tem a ver com as instalações, ficará concluída. No próximo ano, estaremos a operar em pleno, quer em São Vicente, quer na Praia, criando condições para a instalação de empresas, de startups, e produção de serviços a partir desses parques.
Cabo Verde estabeleceu com Portugal um mecanismo de reconversão da dívida em financiamento climático. Esta solução poderá ser replicada junto de outros credores?
Sim, essa é a nossa intenção. Com Portugal houve vontade política de fazer acontecer este acordo, que vem na linha daquilo que têm sido as grandes discussões e decisões a nível internacional. Concretizámos uma ambição que começa com o serviço da dívida que vence até 2025, cerca de 12 milhões de euros, para depois estender à totalidade do stock de dívida, que é de cerca de 140 milhões de euros.
Relativamente a outros países, com os quais temos dívida bilateral, também estamos em processo de contactos, para ver se conseguimos a sua adesão.
Mas o fundo climático e ambiental não se alimenta apenas da reconversão da dívida. Também terá a contribuição de donativos, do próprio Orçamento de Estado, irá integrar instrumentos de financiamento como green bonds e blue bonds.
Será usado para investimentos em que áreas?
Estou a falar do uso do Fundo Climático e Ambiental para aceleração da transição energética, reduzir a nossa dependência de combustíveis fósseis, para a economia azul, para a estratégia de água, assente na dessalinização, e para o aumento da eficiência energética e hídrica.
Se reduzirmos a dependência dos combustíveis fósseis, com introdução de energias renováveis, estaremos a ter um impacto directo na balança de pagamentos e estaremos a ter um impacto directo na factura energética para as empresas e para as famílias.
A diplomacia cabo-verdiana sempre foi muito pragmática. Estamos num tempo marcado pelo ressurgimento de ‘muros’, em que se espera cada vez mais que os países escolham ‘um dos lados’. Como é que Cabo Verde se coloca perante este ‘novo tempo’ das relações internacionais?
O pragmatismo, muitas vezes, liga-se ao grupo dos ‘não alinhados’. Os ‘não alinhados’ foram um grupo com algum alinhamento neutro. Em Cabo Verde, o seu pragmatismo continua, mas continua também no quadro dos nossos interesses, no quadro das relações que fomos construindo e das relações que também nos dão sustentabilidade e confiança para o futuro, ao nível das nossas relações, quer económicas, quer de integração da nossa diáspora, quer relativamente à nossa ambição de parcerias.
Defendemos, e no caso deste governo fomos muito claros, uma parceria privilegiada com a União Europeia. Com os EUA, temos uma relação muito estreita, que deriva muito do peso da nossa diáspora. Os EUA são um parceiro de referência, assim como a UE, ao nível da segurança e da defesa, que é a aliança que queremos estabelecer, incluindo o Reino Unido.
A nossa integração africana deve ser potencializada também a partir destas relações que estabelecemos com os nossos parceiros de referência.
A China é um parceiro de referência para Cabo Verde, relativamente à parceria para o desenvolvimento.
Este quadro está bem definido e tomamos as nossas posições salvaguardando este quadro de relações estruturantes, que queremos que sejam estabelecidas com previsibilidade e com confiança, no quadro da defesa dos nossos próprios interesses, enquanto Nação.
Têm sido prometidas medidas para melhorar a sustentabilidade da comunicação social privada. Quando é que essas medidas surgirão?
Estamos a trabalhar nisto, nas questões fiscais, de mercado, particularmente da publicidade. Vou fazer um ponto da situação no Estado da Nação. Estamos a trabalhar para ter um quadro de previsibilidade relativamente a essas medidas. Serão anunciadas no momento próprio.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1130 de 26 de Julho de 2023.