Wladimir Brito: “A primeira-dama não é uma figura constitucional. Não existe”

PorJorge Montezinho,30 ago 2024 10:12

O terramoto político já tem alguns meses, mas as réplicas permanecem e não se sabe quando vão parar. Enquanto se aguarda a decisão do Tribunal de Contas, multiplicam-se as críticas às justificações dadas pela presidência, das mais radicais às menos extremistas. Até porque, segundo o constitucionalista Wladimir Brito, neste processo toda a gente errou.

“Penso que há falhas recíprocas”, diz Wladimir Brito ao Expresso das Ilhas. “O Presidente da República mandou um pedido de regulamentação da matéria e o governo meteu aquilo na gaveta. Por outro lado, o Presidente da República não tinha base legal para atribuir um salário à mulher, porque nada estava regulamentado”.

No entanto, como recorda o constitucionalista e professor universitário, já anteriormente, na presidência de Jorge Carlos Fonseca, a questão tinha sido levantada pela então primeira-dama Lígia Fonseca e não houve regulamentação sobre a matéria. Era, na altura, Primeiro-Ministro José Maria Neves, que então considerou que o tema não era urgente.

A actual polémica surgiu em Dezembro de 2023, quando foi tornado público que a Primeira-Dama recebia um salário mensal bruto de 310.606 CVE, pago pela Presidência da República. Na altura, e embora reconhecendo não haver qualquer contrato formal com Débora Carvalho, a Presidência justificou o vencimento com base na manutenção do mesmo estatuto salarial que Débora Carvalho tinha no seu quadro profissional de origem.

Dias após ter estalado a controvérsia, o PR anunciou a suspensão do pagamento do salário da Primeira-Dama, bem como outras regalias, até que a situação fosse regulamentada por lei.

“A primeira-dama não é uma figura constitucional. Não existe”, sublinha Wladimir Brito. “Nos outros países, há primeiras damas que têm assumido uma função auxiliar do respectivo marido. Não tem qualquer nomeação, estatuto constitucional, nem sequer legal”.

“Não conheço nenhuma primeira-dama que seja funcionária da Presidência da República”, continua o constitucionalista. “Podem ter um gabinete, onde geralmente ajudam o marido em algumas causas sociais, até porque se criou essa ideia que a primeira-dama tem de ser uma pessoa bondosa, ter acções sociais, que provavelmente nunca fez anteriormente, mas passa a ser bondosa. Aceitando isto, ela tem o seu gabinete, programa a sua acção social, cria um secretariado próprio e a partir daí faz o que tem a fazer. Mas nunca com um ordenado público porque não é funcionária pública. Atribuir um ordenado à senhora significa criar um cargo público, ocupado só por uma categoria de pessoas – a mulher do Presidente da República”.

“Tem de ter muito cuidado com aquilo que se diz e se faz com a questão das teorias da primeira-dama”, aconselha Wladimir Brito. “Se não, o que vamos ter é uma confusão muito grande. A Dra. Lígia, por exemplo, nunca deixou de trabalhar como advogada enquanto foi mulher do presidente. Penso que a mulher do comandante Pedro Pires nunca deixou de trabalhar quando foi mulher do presidente. Aristides Pereira nunca atribuiu um ordenado à mulher. Há uma tradição das mulheres manterem o seu estatuto profissional”.

IGF e Tribunal de Contas

No dia 12 deste mês era divulgado o relatório da Inspecção Administrativa e Financeira à Presidência da República – realizado no seguimento de um pedido da própria Presidência – que, entre as conclusões, considerava que o salário auferido pela Primeira-Dama, Débora Katisa Carvalho, durante dois anos, não tinha enquadramento legal, pelo que deveria ser devolvido. O mesmo em relação ao vencimento atribuído, ao longo de 20 meses, à conselheira jurídica do Presidente da República, Marisa Morais, entretanto exonerada do cargo.

A devolução dos montantes, no valor de mais de 5 mil contos e mais de 2 mil contos, respectivamente, foi apenas uma recomendação que terá de ser efectivada pelo Tribunal de Contas, como escreveu o Expresso das Ilhas, na edição 1185, de 14 de Agosto.

No dia 24, seria a vez do Presidente da República reagir, em conferência de imprensa sem direito a perguntas, para dizer que a Primeira-dama já estava a trabalhar numa empresa nacional e que as remunerações recebidas tinham sido devolvidas, na íntegra, aos cofres do Estado.

Na mesma comunicação, José Maria Neves atacou o governo, que coresponsabilizou por toda a situação. “Tudo foi feito com transparência e no convencimento de que, no âmbito da lealdade e cooperação institucionais, o necessário e completo quadro legal seria produzido com celeridade”, disse o Chefe de Estado. “Neste sentido, todas as articulações foram feitas, foi elaborada e submetida uma proposta de nova lei orgânica, bem como foram criadas as condições necessárias no plano orçamental. Acredito que, a esta altura, todas as cabo-verdianas e todos os cabo-verdianos já perceberam o que é que aconteceu e, sobretudo, o que é que não aconteceu. Queira-se ou não, estamos perante uma nódoa na história do relacionamento sem rugas que deve existir entre os Órgãos de Soberania e, em particular, da cooperação e lealdade institucionais que favoreçam o bom desempenho de cada um deles”.

“O que o governo fez foi não ter tomado uma decisão”, sublinha Wladimir Brito. “Se tivesse dito que não ia aprovar, eventualmente o Presidente não teria dado o ordenado. Há aqui uma co-responsabilidade de ambas as partes. O Presidente enviou uma proposta para ser regulamentado. O governo meteu na gaveta e o Presidente, negligentemente, atribuiu um ordenado”.

De qualquer forma, explica o constitucionalista ao Expresso das Ilhas, qualquer alteração teria de partir da iniciativa Parlamentar. “Teoricamente, tendo em conta que se trata de uma questão de um órgão de soberania relativamente a outro órgão de soberania, penso que deveria ser o Parlamento a regulamentar e não o governo”.

Na mesma comunicação ao país, José Maria Neves afirmou que nas acções da Presidência da República não houve má-fé, desejo de ludibriar, ou “o propósito de produzir benefícios injustificados para si ou para terceiros”.

“O grande problema”, sublinha Wladimir Brito, “é que há aqui aquilo a que poderia chamar negligência grosseira. Ou seja, o Presidente da República teria de consultar a sua equipa jurídica para saber até que ponto poderia atribuir ou não um ordenado. Dizer que a senhora deixou de trabalhar na função profissional que tinha, isso foi uma opção pessoal. Não pode daí tirar consequências remuneratórias que a lei não permite nem prevê. Se tivesse dúvidas pedia um parecer externo para saber o que podia ou não fazer”.

O estatuto de primeira-dama

E agora, o que fazer? Alterar ou não a Magna Carta para regulamentar a existência da primeira-dama? Wladimir Brito é taxativo: “Não. Absolutamente. Não há justificação. Essa é uma questão meramente protocolar. Os cônjuges, homens ou mulheres, limitam-se a um tratamento um pouco diferenciado pelo facto de serem casados com o mais alto magistrado da nação, acompanhando-o a cerimónias. O resto resolve-se com proposta do orçamento da Presidência para despesas de segurança, representação e com um secretariado, que pode não ser permanente. A primeira-dama não pode propor tarefas próprias. As tarefas que propõe têm de ser autorizadas pelo Presidente porque ela não tem um estatuto, nem constitucional nem legal, para decidir mexer no orçamento da Presidência”.

Entre os críticos às acções do Presidente da República, há quem diga que José Maria Neves já não tem condições para continuar a exercer o cargo, como o jurisconsulto Casimiro de Pina [ver entrevista], ou o antigo deputado e ex-presidente da câmara da Praia, Jacinto Santos, que escreveu que “o Presidente violou a Constituição e a lei, pelo que o problema político de fundo subsiste: o Presidente da República não está em condições políticas de cumprir com uma das suas principais funções: ser guardião da Constituição e das leis e garante da unidade da Nação. Fez mea culpa, mas não tirou as consequências políticas dos seus actos, antes quis partilhar as suas responsabilidades com outros actores políticos. Estamos em presença de um Presidente sem condições para exercer a sua magistratura moral e política acima do jogo político-partidário. Fica cada vez mais difícil a sua sustentabilidade política como o mais Alto Magistrado da Nação!”

Wladimir Brito considera este cenário exagerado. “Temos de ver até que ponto as renúncias podem ser banalizadas sob pena de os presidentes passarem a vida a renunciarem por actos políticos. O máximo que podem fazer, se assim entenderem, e em Cabo Verde constitucionalmente não há muita margem para isso, seria discutir o caso no Parlamento e se entendessem que havia uma grave perturbação do bom funcionamento institucional, então propor isso. Mesmo assim, de acordo com a Constituição cabo-verdiana, é um pouco difícil avançar por esse caminho”.

O mais importante, diz o constitucionalista será repensar as relações entre o Presidente da República e o governo para evitar a guerrilha institucional. “É preciso mais diálogo. O Presidente é um órgão de soberania que pode emitir opiniões. A magistratura de influência não serve apenas para apoiar o governo, também serve para criticar. O facto de o Presidente ter emitido opiniões, com as quais até podemos não estar de acordo, faz parte do jogo. Se um presidente não pode falar, passamos a ter um presidente calado ou um que passa a vida a elogiar o governo. Isso seria uma aberração completa. Têm de se assumir com naturalidade as críticas de ambas as partes”, concluiu.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1187 de 28 de Agosto de 2024.

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Autoria:Jorge Montezinho,30 ago 2024 10:12

Editado porAndre Amaral  em  16 set 2024 17:21

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