Antes de falarmos das eleições de dia 25 de Maio, como avalia todo o processo eleitoral interno? Tivemos até um pedido de impugnação junto ao Tribunal Constitucional…
As eleições têm sempre algumas peripécias, o que acabou também por acontecer nas eleições internas do PAICV, em que se ultrapassou a dinâmica puramente política, recorrendo a instituições como o Tribunal Constitucional. Faz parte do jogo democrático. Há instâncias a que se pode recorrer e as candidaturas, não estando de acordo, recorreram a outros órgãos. Tudo se acabou por esclarecer, o que acaba por tornar o processo mais transparente e por legitimar todos os candidatos. Assim, encaro com naturalidade o recurso a órgãos como o Tribunal Constitucional. Na dinâmica da democracia dos partidos no século XXI, isso é natural e demonstra a vitalidade da própria democracia interna, preparando os partidos para o jogo a nível nacional.
É natural, mas criou-se alguma fricção dentro do partido. Inclusive, houve o afastamento do requerente, Jorge Lopes, da gestão da base de dados…
Há sempre fricção interna nestes tipos de disputa. É normal e natural encarar isto como um jogo democrático, com cada um assumindo as suas responsabilidades. Uma candidatura, ou um militante, neste caso Jorge Lopes, achou que deveria impugnar a candidatura e fê-lo. O Tribunal Constitucional fez o seu papel e decidiu. Entretanto, a candidatura de Francisco Carvalho também entendeu que ele [Lopes], enquanto secretário-geral adjunto e coordenador de bases de dados do partido, não poderia estar a dirigir essas áreas, o que também é normal.
Depois de todo este processo, as eleições resultaram numa vitória expressiva para Francisco Carvalho. Que leitura faz desta vitória e do significado dos números alcançados?
Efectivamente, os militantes do partido falaram, e falaram de forma clara. Umas eleições internas com quatro candidatos, nas quais os militantes escolheram, com cerca de 60% dos votos, Francisco Carvalho, mostram uma vitória inequívoca e expressiva, que lhe confere novas responsabilidades. Ele deve fazer a leitura correcta da confiança que o povo do partido depositou na sua candidatura, transformando esta confiança em projecto credível para a governação do país, que é o derradeiro embate político, em 2026, com a actual maioria que está a governar. Os próprios candidatos adversários já reconheceram esta vitória inequívoca, podemos dizer até massiva. Ganhou em todas as ilhas, excepto Fogo e Brava, e nos Estados Unidos, portanto, não há sombra de dúvida de que os militantes queriam e querem Francisco Carvalho à frente dos destinos do partido.
Acima de Francisco Carvalho ficou a abstenção, que terá sido de mais de 60%. Numas eleições tão importantes para a vida partidária, como é que vê esta abstenção?
Vejo-a no quadro da dinâmica das abstenções em todas as eleições em Cabo Verde. Mas, não esqueçamos que entre 30 de Março [data inicialmente prevista para a eleição] e 25 de Maio, houve também alguma desmotivação, por tudo aquilo que aconteceu. Ainda assim, na dinâmica das disputas internas, a maioria dos militantes não vai votar. Foi sempre assim no PAICV e nos outros partidos. Encaro isto com naturalidade, mas é preciso que Francisco Carvalho e a equipa que vai constituir no Congresso façam a correcta leitura desta abstenção para criar uma dinâmica que seja capaz de mobilizar todos os militantes para a vida interna do partido. As abstenções vão fazer parte do caderno de encargo do presidente eleito e sua equipa. É um desafio acrescido.
Dentro dos desafios, o partido sai das eleições com algumas fracturas internas. Acredita que vão ser sanadas?
Sim. Têm de ser sanadas, demonstrando a maturidade dos candidatos e das candidaturas. Uma coisa é o jogo interno para a escolha do presidente. A campanha terminou na sexta-feira e tudo ficou encerrado no domingo à noite com a eleição do presidente do partido. Neste momento, o PAICV tem um único presidente, e será com base na equipa que ele vai constituir, na moção que vier a ser aprovada no Congresso, da orientação política nacional, que o partido será dirigido. Portanto, não haverá fricções. A disputa faz parte da democracia, é natural e até saudável; é o sal da Democracia. A vitalidade do partido foi demonstrada com os quatro candidatos que se apresentaram a estas eleições, agora é necessário que quem ganhou, ganhe com magnanimidade, e que quem perdeu o reconheça com sentido de responsabilidade. Aquilo que os une no PAICV e que os moveu a estas eleições é muito superior àquilo que os separa. A causa maior é Cabo Verde e as disputas internas terminaram.
Francisco Carvalho é, de certo modo, um outsider do PAICV, no sentido em que não integrou as estruturas tradicionais do partido.
Os candidatos são todos diferentes, cada um com o seu estilo, cada um com a sua formação académica, cada um com a sua vivência social e política e cada um com a sua experiência político-partidária. Francisco Carvalho, se calhar, é visto como outsider dentro do PAICV, mas eu discordo: tem o seu percurso. E veja-se o que acontece em muitos países. Por exemplo, em Portugal, Cavaco Silva quando chegou à liderança do PSD também não era do aparelho. O próprio José Maria Neves disputou [a liderança] com Felisberto Vieira que na altura era vice-presidente do PAICV. Ora, é preciso ver que os militantes escolheram um estilo de liderança. Os militantes, aqueles que na verdade têm o poder de escolher, escolheram este líder para este tempo e para o futuro, porque a perspectiva dos militantes pode ser diferente da perspectiva de um ou outro líder ou antigo líder dentro do PAICV. Os militantes têm pela frente o desafio de levar o país adiante, enquanto enfrentamos os problemas reais do nosso país real. Escolheram um tipo de liderança com um estilo próprio. É alguém que ganhou as eleições autárquicas na Praia em 2020 e em 2024, com uma maioria também expressiva. Alguém que tem vindo a somar vitórias cada vez mais expressivas, tanto nas disputas autárquicas como, agora, internamente. É também importante fazer essa leitura a nível nacional e na diáspora: como é que ele foi votado agora? Nas outras ilhas de Cabo Verde, como votaram? E, se calhar, os militantes do PAICV escolheram um líder específico para os desafios do país. De nada vale ter líder com um percurso que começa no JPAI, passa por todos os órgãos do partido, e depois não ganhar o país. Porque o PAICV não precisa só de um presidente. O PAICV precisa de um presidente para ganhar as eleições legislativas e governar o país, colocando a estratégia, a visão do PAICV na dinâmica transformadora do país. Vejo que, necessariamente, os militantes escolheram um líder com um percurso e um perfil para os desafios do país.
Mas que tipo de liderança será essa, na sua opinião?
Uma liderança congregadora, dialogante, humilde e muito operativa. Que trabalhe, antes de mais, na organização interna do partido — estruturas, sectores, comissões políticas, a nível nacional — mas que tenha capacidade de dialogar, construir coesão interna. E que também tenha capacidade de dialogar com a própria sociedade, porque nenhum partido ganha eleições somente com os militantes. Nenhuma liderança sozinha consegue levar avante um projecto vitorioso. É preciso que haja uma dinâmica, uma interacção com a sociedade civil, com as ONGs e com todos aqueles que têm um papel activo na resolução dos problemas do país. Então, tem que ser uma liderança dialogante, internamente, mas também com a sociedade, para poder, assim, criar alternativas de governação para o país. Entretanto, nas eleições de 1 de Dezembro, vimos que o partido está a ter uma outra aceitação e ganhou pela primeira vez as eleições autárquicas. O povo a nível local já confia no PAICV. Agora, é preciso que ele capitalize essa confiança e possa também a nível interno criar uma dinâmica própria para vencer outras eleições.
Na mesma linha, que tipo de oposição, sob liderança de Carvalho, podemos esperar?
Como líder da oposição, Francisco Carvalho deve ser capaz de apresentar aos cabo-verdianos propostas credíveis e exequíveis para os problemas reais do país: justiça, segurança, educação, saúde, infra-estruturas, transportes aéreos e marítimos, privatizações, mundo rural, pesca, entre outros. São problemas que estão à vista de todos, que afectam directamente a vida dos cabo-verdianos, e Francisco Carvalho tem de oferecer propostas viáveis para os resolver. Tem que mostrar uma visão clara, e uma alternativa clara, sobre os problemas e, chegando ao poder, tem que demonstrar que, efectivamente, faz diferente. Porque o PAICV, quando chega ao poder, tem que demonstrar que faz diferente, que o seu líder governa diferente e que os problemas dos cabo-verdianos conseguem encontrar vazão dentro da panorâmica ideológica e social do PAICV. Portanto, esperamos um líder que, já na oposição, neste tempo que nos resta até às legislativas, apresente uma visão clara, objectiva, para os problemas do país e que no poder possa demonstrar que é possível governar diferente da forma como o país está sendo governado.
O que pude perceber durante as campanhas internas é que Francisco Carvalho nos diz que não podemos governar Cabo Verde como se governam países desenvolvidos. Ou seja, não podemos ter uma classe política de países do primeiro mundo, com os problemas do país a serem protelados. Trata-se de governar de forma diferente, de mostrar que é possível fazer mais e melhor. Aliás, o PAICV está, como se costuma dizer, obrigado a provar isso já na oposição, para poder ser a opção dos cabo-verdianos.
Para terminar, uma das críticas que é apontada a Francisco Carvalho é que é populista. Concorda com essa leitura?
Em Cabo Verde, às vezes, tentamos importar conceitos, sobretudo em termos ideológicos, que não têm nada a ver com a nossa realidade. Temos, neste momento, um governo que prometeu 45 mil postos de emprego, desemprego a um dígito, crescimento a dois dígitos, via rápida para o Tarrafal, novo hospital central para a Praia, 20 bolsas para as melhores universidades do mundo, privatizações dos TACV, 11 Boeings, etc, etc., - e ninguém disse que era populismo, que era demagogia. Francisco Carvalho não é populista e em Cabo Verde não há lugar para populismo. O que se pode notar de Francisco Carvalho, a partir destas eleições - 2020 e 2024 para a Câmara da Praia, e agora no plano interno - é que é um político que consegue analisar de forma coerente e consistente os problemas da população e apresentar propostas fáceis para as suas resoluções. Por exemplo, como é que é possível que, 50 anos depois da independência, o hospital central de Cabo Verde ainda não tenha um aparelho de ressonância magnética? Ninguém pode aceitar isso. Isto é populismo? Não. Ou que uma mulher, ao ter um bebé, tenha também de pagar dois mil escudos? O país pode fazer mais e melhor. O que eu acho é que ele é um político que a população já percebeu que resolve os seus problemas, que fala a linguagem do povo, vê as necessidades do povo e não as esconde. Fala delas abertamente. Como fala abertamente dos problemas e coloca o dedo na ferida em relação ao estilo de governação e forma de estar dos políticos, isso causa alguma mossa à classe política e não só. Não é populismo resolver problemas do povo, falar que o povo tem necessidade de isto ou daquilo, que temos problemas de saúde, educação, da qualidade da educação, entre outros. Esse é um termo que noutras paragens [pode fazer sentido], devido ao avanço da extrema-direita ou daextrema-esquerda, mas Francisco Carvalho fala é da necessidade do povo, concretamente. As análises que faz vêm na linha da sua formação em Sociologia. O papel de um sociólogo não é esconder um facto social, mas sim propor soluções. É isso que ele faz. Aliás, costumo até dizer, a brincar, que se se falar de populismo em Cabo Verde, entre os actuais políticos em activo em Cabo Verde, ninguém estaria salvo, porque sabemos como é que se faz a governação e as propostas governativas em Cabo Verde.
Leia também a entrevista ao analista político António Ludgero Correia, aqui.