António Ludgero Correia : “Francisco vai ter alguma dificuldade em enfrentar Ulisses”

PorSara Almeida,30 mai 2025 7:57

As recentes eleições internas do PAICV abrem uma nova etapa para o maior partido da oposição. Ainda no rescaldo do escrutínio, em entrevista ao Expresso das Ilhas, José Sanches e António Ludgero Correia partilham o seu olhar sobre a vitória de Francisco Carvalho, os desafios internos e o futuro do partido, antecipando o rumo das próximas batalhas políticas em Cabo Verde. Leia aqui a entrevista do analista político, António Ludgero Correia.

Começando pela campanha, que foi relativamente atribulada. Como avalia todo este processo?

As campanhas têm as suas picardias, mas esta foi um tanto ou quanto estranha, porque não se tratava de adversários. O adversário do PAICV é o MpD. Tratava-se de camaradas que estavam a posicionar-se, defendendo os seus pontos de vista para a liderança do partido, mas o que aconteceu dava a ideia de que se estava perante uma luta com inimigos, e não com gente com quem se vai ter de contar para o verdadeiro combate que será em 2026, nas eleições gerais.

Diria que houve demasiada fricção?

Houve uma guerra de egos inflacionados e parece que se perdeu a noção do contexto: não era uma luta pelo poder do país, mas uma disputa interna que devia ter outros parâmetros, outros comportamentos. Os ânimos acabaram por se exacerbar, e agora torna-se bastante complicado o papel do vencedor na reunificação do partido e na preparação, em menos de um ano, para umas eleições que vão ser, agora sim, contra o adversário do partido.

Os resultados foram claros e a vitória de Francisco Carvalho foi expressiva. Era previsível um resultado tão folgado?

Era previsível. Durante a campanha, algumas atitudes e posicionamentos reflectiam a percepção geral de que Francisco estava muito bem lançado. Francisco tem pela retaguarda Santiago, que tem mais da metade da população e mais da metade dos militantes do partido. Quem controla Santiago, controla uma maioria. Creio que extrapolou para outras latitudes, mas tem um discurso que em Santiago funciona maravilhosamente bem. O pessoal teve receio de ser derrotado e tentaram eliminá-lo da lista de candidatos, mas creio que esse tempo extra de campanha que ganharam com a intervenção do Tribunal Constitucional beneficiou ainda mais Francisco Carvalho. Ele vitimizou-se, colocou-se na posição de vítima, e teve mais tempo para chegar aonde antes não tinha conseguido penetrar. O resultado acabou por reflectir isso. Creio que todos já sabiam que ele ganharia, e ele próprio tinha essa ciência e consciência. Agora, espero que tenha também ciência e consciência do trabalho que vai ter para tentar reunificar o partido, desfazer as clivagens que surgiram durante a campanha.

Acima de Francisco Carvalho ficou a abstenção, que ultrapassou os 60%. Como se explica a falta de comparência dos militantes nas urnas?

Acho que Francisco Carvalho precisa saber disto: os votos que ganham as eleições não são os votos dos militantes. Os votos dos militantes não chegam. Mesmo que todos os 36 mil votassem, é uma representação muito fraca do universo nacional de eleitores. Esperavam que aparecessem 26 mil, só apareceram 10 mil e tal, e isso mostra que as pessoas estão mais viradas para os embates em que há possibilidade de uma alternância no poder, em que podem acontecer coisas que mexem com a vida delas. Além disso, a forma como as pessoas que não alinhavam por determinada cartilha começaram a ser tratadas, deve ter inflacionado a abstenção. Repare-se ainda nos votos em branco. Quando numa eleição partidária, há 61 pessoas [NR: Os resultados finais apontam para 124 votos em branco, e não 61, como indicavam os dados provisórios conhecidos aquando da realização da entrevista] que se dispõem a ir às urnas, colocar um boletim em branco, isso não é um votante qualquer, nunca é. É gente que quer dizer claramente que nenhum dos candidatos lhe dizia nada, e é gente que pode interferir em outros momentos.

Francisco Carvalho é, de certo modo, um outsider do PAICV, no sentido em que não integrou as estruturas tradicionais do partido. Como é que vê, nesse contexto, a ascensão à liderança?

As eleições têm a ver com o momento em que acontecem. Veja-se o caso de Cavaco Silva em Santa Maria da Feira [Portugal, 1985]. Foi ao Congresso do PSD e saiu presidente do partido [sem ser inicialmente candidato], e logo a seguir foi eleito primeiro-ministro. No caso do Francisco Carvalho, foi sempre militante: dizem que não pagava quotas, é porque foi sempre militante. Teve cargos de direcção [no Estado, foi director-geral das comunidades], e esses cargos não são dados a simples simpatizantes. Na última eleição, com o Rui Semedo, ele decidiu não participar, de facto. Mas não é um outsider. É um fulano que se colocou de fora da “panelinha” para depois aparecer como uma pessoa que tem soluções que a “panelinha” não teve, o que é bastante diferente de ser um outsider. Até se falou da possibilidade de ele apresentar uma moção de estratégia sectorial, porque os estatutos permitiam que ele não se candidatasse naquela altura - não lhe convinha -, mas apresentasse. No entanto, nem isso fez. Num primeiro momento podia-se fazer a leitura de que era uma oportunidade que ele não podia perder, porque isso iria colocá-lo na pole position, ele não fez isso e trabalhou aqui na Câmara da Praia. Acho que o investimento dele é feito no trabalho, e as pessoas não estão habituadas a políticos que mostrem trabalho. Embora alguns considerem que o que ele mostra é pouco para a cidade da Praia, a verdade é que mostra trabalho. E até agora, ninguém o acusou de desvios, de corrupção, nem de nada parecido. Por isso, não é exactamente um outsider — é alguém que se colocou fora da panelinha para depois se apresentar contra ela, como um D. Sebastião, para resgatar o partido.

Falou em D. Sebastião. Há quem o apelide de populista por aparecer com soluções “miraculosas”?

Propostas de solução. Porque ele diz no seu discurso as coisas que as pessoas querem ouvir, mas que as pessoas querem ouvir, e o que ele pode fazer, não coincide.

Acha que há algum fundamento na crítica de populismo?

As promessas fazem parte das campanhas, mas devem ser coisas que se possam cumprir minimamente sem criar problemas extra. Quando chegou à Câmara da Praia, prometeu que iria baixar todas as taxas, algumas já baixas, na ordem dos 90% e cumpriu. Só que, ao fazê-lo, acabou por se auto-excluir dos contratos-programa com o Governo. É que, quando se reduz taxas sobre serviços dessa natureza, a leitura que se faz é a de que estava a renunciar a receitas. Ora, quem renuncia a receitas não pode concorrer a programas do Governo Central, que são destinados a quem tem insuficiência de recursos. Os contratos-programa são para os municípios que têm insuficiência de recursos, para poderem executar projectos, porque é nos municípios que o país realmente acontece. Mas, se um município abre mão de receitas próprias, cria-se um problema. No caso das passagens aéreas, não ouvi directamente, mas terá falado em baixar o preço para 5 contos. Ora, as passagens têm um custo real de 15 contos. E se vai vendê-las por 5, alguém tem de cobrir os 10 que faltam, porque não vai ser a transportadora aérea a suportar essa diferença. Seria o Tesouro. Com as contas que nós conhecemos do nosso Tesouro, há margem para financiar passagens aéreas a esse nível? Uma subvenção, ainda vá, mas se se está a pensar subvencionar cada uma dessas passagens em volta de 10 contos, fica difícil ao Tesouro Público aguentar esse encargo. E se o Tesouro não suporta, não é o chefe do governo, pessoalmente, que o vai fazer. Se ele sabe que alguém teria de pagar esses dois terços que suprime e promete, é grave; se não sabe, é mais grave ainda.

Entretanto, cada líder imprime o seu cunho ao partido. Como acha que será o PAICV de Francisco Carvalho?

Francisco Carvalho vai ter que reconstruir o PAICV à sua imagem e semelhança. O partido já leva 10 anos de travessia do deserto. Ficou meio órfão com o afastamento de José Maria Neves, de quem dependia muito. Essa orfandade nunca chegou a ser colmatada por Rui Semedo que, além disso,

tem o pecado de, ao anunciar que não se voltava a candidatar, se demitir completamente das suas responsabilidades, que vão até o dia de dar posse ao futuro presidente. As coisas começaram a acontecer sem que ele tivesse mão no partido, e isso deixou o PAICV numa situação complicada, que se agravou agora com as clivagens surgidas durante a campanha. Então, o novo PAICV é esse que vai ser construído e cabe a Francisco Carvalho reconstruir o partido à sua imagem e semelhança, que seria, novamente, um partido de militantes, de gente indo às reuniões, dos comitês de base e os órgãos do partido funcionando. Creio que se pode antecipar um problema: não direi divórcio, mas um certo um certo afastamento dos mais velhos, os ditos barões do partido. Se já estavam com um pé fora, creio que agora vão ficar completamente de fora, o que pode ser um tanto castrador para o partido.

Quando José Maria Neves assumiu a liderança não houve também uma certa ruptura?

O José Maria Neves não faz um corte total. Corta, mas mantém os cordões ligados. Chama Silvino da Luz para embaixador em Angola, manda Olívio Pires como embaixador [para a Alemanha] e conversava regularmente com outros. E havia a figura do Pedro Pires acima das candidaturas, que podia sempre fazer as pontes necessárias. Creio que desta vez vai ser mais complicado, porque Pedro Pires é visto como fazendo parte do grupo de apoio à candidatura que sofreu a maior derrota – porque há duas outras candidaturas que foram “a passeio”. O nome dele ficou ligado a essa candidatura derrotada, de Nuías Silva, e, mais uma vez, o partido fica órfão de uma ponte, de alguém capaz de ligar gerações. Mesmo pertencendo à geração mais antiga, Pedro Pires sempre foi visto como uma ponte, sempre conseguiu as connections necessárias para que não houvesse um corte. Agora, fica mais complicado. Francisco de Carvalho não reconhece este papel a Neves, que também nem o pode exercer por ser chefe de Estado.

Os olhos estão agora postos em 2026. Seja agora como oposição, seja como candidato, que contributo é que acha que Francisco Carvalho pode trazer?

Acho que neste momento Ulisses Correia a Silva já deve estar a soltar foguetes, porque sabe que Francisco Carvalho tem um discurso que mobiliza muito, mas aqui na Praia, em Santiago. Para as eleições legislativas, receio que até lá não tenha muito tempo, porque vai ter de reunificar o partido, e vai ter de fazer alianças dentro do próprio partido para poder cobrir uma área tão importante como o noroeste de Cabo Verde. Esse grupo formado por São Vicente, Santo Antão e São Nicolau tem uma idiossincrasia própria que é preciso penetrar. Se não se tiver uma boa conexão, é complicado. E Francisco tem pouco tempo. Ulisses, com as fragilidades que se conhecem, com os problemas conjunturais da governação, que não satisfazem, ainda assim mantém uma máquina que está em funcionamento desde 2016, que já ganhou grande experiência. Não esquecem as mágoas que têm do Ulisses, mas estão reunidos à volta dele. Não foram a votos, para garantir uma certa continuidade, muita estabilidade, e há gente produtora de discursos que poderá ajudar, e muito, a colmatar as eventuais fragilidades de Ulisses. Como acabámos de falar, o Francisco representa um corte com a geração anterior, enquanto o Ulisses mantém essa ligação. Repare-se na remodelação governamental que fez [com veteranos do MpD]. Essa gente traz mais valias na construção do discurso, traz mais valias em termos da penetração e Francisco vai ter alguma dificuldade em enfrentar Ulisses. Creio que Ulisses teria, não diria medo, mas talvez uma maior preocupação com Nuías Silva, que tem um discurso de um verbo fácil, convincente. Nuías poderia também dar sérias dores de cabeça ao Ulisses. Mas, Francisco já ganhou ao MpD duas vezes na Praia. Da última vez, ganhou pessoalmente a Ulisses que dizia querer a Praia a qualquer custo. Ainda assim, creio que a nível nacional vai ser muito complicado.

E como oposição? Será uma posição dialogante ou mais agressiva?

Acredito que Francisco Carvalho não é um homem de diálogo. Veja-se o discurso da vitória das eleições autárquicas, que fez no 1.º de Dezembro. Quem ganha, tem tendência a ser mais conciliador, a ser mais magnânimo, e ele não foi. Inclusive, cortou uma intervenção da Presidente da Assembleia Municipal, que tentava deitar água na fervura, dizer que o poder central e o poder local poderiam entender-se em algumas questões, para resolver os problemas, porque o país acontece no município. Ele pegou o microfone e foi na dele, cortando as amarras que a Clara Marques tentava estender. Portanto, isso não promete nada de bom em matéria de oposição. E uma oposição que tem apenas um ano para se afirmar não vai ser parceira, não vai ser cooperante, não deve. Aliás, não pode mesmo. Vai ter que mostrar que vale mais, que faria melhor e vai ter de contestar tudo quanto a outra parte faz para se poder afirmar. Isto, porque vai ter de se afirmar no contraditório ao poder que está instalado desde 2016. Pelo menos até as eleições, vai ser um “botá pá kebrá”. Depois, logo se vê.

Leia também a entrevista a José Sanches, aqui.

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Autoria:Sara Almeida,30 mai 2025 7:57

Editado porAndre Amaral  em  25 jul 2025 23:22

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