Mindelact 2019: Nós perante nós mesmos

PorNuno Andrade Ferreira,23 nov 2019 7:51

Provocador e inquietante. Caiu o pano da XXV edição Festival Internacional de Teatro do Mindelo. Nos últimos anos, o evento reinventou-se e tornou-se lugar de desafio aos nossos próprios preconceitos. João Branco, presidente da Associação Mindelact, convida-nos a “descruzar os braços”.

O que fica de mais significativo deste Mindelact?

Acho que o que fica de forma muito clara é o Mindelact como plataforma de luta contra todos os tipos de preconceito, através da curadoria e do tipo de artistas que convidamos. Queremos que o festival seja um espaço de abrir mentes. Abrir para o conhecimento do que se está a fazer um pouco por todo o mundo a nível das artes performativas, mas também abrir as mentes para realidades diferentes daquelas que Cabo Verde tem. O Brasil é um caso sintomático. Eu sinto esta necessidade de me vigiar constantemente, porque todo o sistema está feito para estruturar um determinado tipo de pensamento que muitas vezes acaba por desembocar num preconceito, seja em relação ao machismo, ao racismo, ‘LBGTFobia’ ou outros. O Mindelact, este ano, foi muito feliz a esse nível, foi muito forte a esse nível e esperemos que possa continuar a ser essa tal plataforma de luta contra o preconceito.

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  A selecção de espectáculos reflecte preocupações existentes nas comunidades teatrais de cada um dos países representados?

O García Lorca dizia que o teatro que se faz num determinado país é sempre um espelho e a identidade de uma nação. Ao estudarmos as características das artes cénicas desse país acabamos por ter um espelho muito interessante daquilo que é a sua realidade contemporânea, a nível politico, social, económico. Isto não é novo e faz parte da própria natureza da arte cénica. Podíamos ter trazido espectáculos com registos mais naturalistas, com historias mais light, um teatro mais comercial. Numa curadoria, quando escolhes o espectáculo A, em detrimento de B, é uma escolha artística mas também é uma escolha política. Cada vez mais me parece que é importante que o Mindelact, enquanto evento da arte, alma e afecto, se posicione como um evento político, cujas escolhas têm a preocupação de dar o seu contributo para a luta politica que estamos a viver a nível global. O teatro tem que ter essa missão, como sempre teve, de nos colocar perante nós próprios. É a humanidade vendo-se a si mesma através de múltiplos espelhos. Pode ser um espelho que nos faça ver exactamente como somos, mas pode ser um espelho deformado. Não é obrigatório que a imagem que vem da plateia para o palco ou do palco para a plateia seja a imagem da realidade. 

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Nem é necessário que concordemos com ela. 

O que também é válido. 

Tivemos muito ‘teatro para pensar’. 

Evitar aquilo que chamamos de ‘teatro da pizza’. Vamos ao teatro como quem come uma pizza e passados cinco minutos já esquecemos o que vimos, assim como esquecemos o que comemos, a não ser que a pizza tivesse algum produto estragado. Um teatro que nos faça pensar, reflectir. Isto parece muito conspiratório, mas a verdade é que todo o sistema está concebido para que nós não pensemos na realidade que nos rodeia. Não pensando, não agimos contra ela, não procuramos outros caminhos. 

Muitos dos fenómenos políticos a que assistimos crescem, precisamente, da ignorância e do alheamento.

E há mentiras que se tornam verdades por causa dessa ignorância, que é alimentada. 

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Os 25 anos de Mindelact marcam, de alguma forma, um fim de ciclo? 

A ideia da edição deste ano, talvez em conjunto com a do ano passado, foi garantir que o Mindelact não é apenas uma plataforma de entretenimento e de troca de experiências, é muito mais do que isso. É uma plataforma de discussão politica, de provocação. Queremos que continue assim e continuaremos a trazer espectáculos que promovam essa reflexão, esse incómodo. Houve uma abertura muito interessante do público do Mindelo em relação às provocações que fizemos este ano, embora se visse muita gente de braços cruzados. Que o Mindelact sirva para que descruzemos mais os braços. Este continuará a ser um dos focos da nossa programação.

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Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 938 de 20 de Novembro de 2019. 

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Autoria:Nuno Andrade Ferreira,23 nov 2019 7:51

Editado porFretson Rocha  em  12 ago 2020 23:21

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