“Temos o Homo Sapiens, na origem, e o Homi Criolo, na síntese”

PorAntónio Monteiro,13 fev 2022 9:00

Com o seu tardio ensaio-manifesto sobre a crioulização, Mário Lúcio Sousa lança um novo olhar e nova luz e provavelmente muita polémica sobre o processo de miscigenação que o autor situa na Ribeira Grande de Santiago no séc. XV entre a África e a Europa, entre o branco e o negro do qual resultou o “Homi Criolo”.

Em entrevista via email ao Expresso das Ilhas a propósito do seu livro recentemente apresentado no país, Mário Lúcio Sousa sintetiza várias teses e conceitos-chave defendidos na obra.

O que nos quis dizer Mário Lúcio Sousa com o seu livro Manifesto a Crioulização?

Quis plasmar em forma de objecto de arte, através da semiótica dos manifestos, a história reflectida e escrita por nós mesmos, nós os crioulos. Quis evocar o nosso lugar na História e a nossa contribuição para as narrativas e as assunções identitárias.

Já agora, ocorre-me que o título é passível de duas leituras paralelas, ou a dois níveis diferentes.

Sim, uso o Manifesto como peça filosófica e literária e o seu próprio trocadilho com o verbo manifestar. Isto, para, ao mesmo tempo que reivindico o reconhecimento do que sou e postulo-o, também convidar a que me aceitem enquanto indivíduo crioulo que se manifesta livremente, com direito a ser do lugar que lhe cabe por escolha.

Por que é que evita no seu livro falar do conceito, do termo cabo-verdianidade?

Por causa da idade (risos). Sempre que acrescentas o sufixo dade, remetes para uma característica só sua, ou só de uma situação ou condição, conceitos que se estribam em atributos, sinais particulares e unicidade. Há um conjunto de elementos que definem o cabo-verdiano como povo e não um atributo em si. Todos esses elementos sintetizados dão um universo bastante plural.

Ser Crioulo e ser Cabo-verdiano. Qual a dimensão de cada um?

Ser Crioulo é uma dimensão; ser cabo-verdiano, outra. Fundem-se e alternam-se, às vezes. Ser Crioulo é nosso ser universal. Ser cabo-verdiano é nosso ser particular. Porém, dizer uma ou outra é para nós igual. Isso é muito bom, porque uma é cultura, outra, a naturalidade.

Por que considera a heterogeneidade uma das características mais marcantes da sociedade cabo-verdiana?

Possuímos características, no que diz respeito à diversidade, que repercutem nas mais diferentes manifestações culturais nas ilhas, visíveis na dança, na música, nas romarias, na literatura, no folclore, na arte, na língua, etc. Todavia, o cabo-verdiano sente que é detentor de uma “identidade crioula” própria e singular, ao mesmo tempo universal, com o seu lugar específico no Mundo. A heterogeneidade, porque temos um rizoma, várias procedências e confluências, é uma das características marcantes da sociedade cabo-verdiana.

Escreve que a língua crioula é das primeiras afirmações desta nova identidade. Acho que aqui não está a dizer nada de novo.

Ainda bem (risos). Precisamos do já dito, às vezes, para cimentar os nossos pensamentos, fazer referências aos predecessores e evocar algum consenso. Todas as sociedades que passaram, e passam, pelo processo da Crioulização, na base, também tiveram, e têm, o dilema das línguas. Enquanto língua, o crioulo é uma designação comum a uma família resultante da mistura das línguas africanas com outras línguas, na maioria dos casos, a do colonizador. Quando o indivíduo consegue “impor” que o outro respeite a sua língua materna, está a semear e a colher de forma inequívoca a sua identidade.

Que papel está reservado ao ALUPEC em toda esta história?

O ALUPEC tem o mérito de propor um alfabeto para a escrita do crioulo. É um marco histórico, uma base, pois, nas ciências, as verdades são sempre transitórias. Devido à sua matriz pioneira e referencial, o Alupec tornou-se também a sigla sinónimo de língua cabo-verdiana, ou do crioulo, um tronco a partir do qual se discutem as opções, as emoções. É um marco e, também, um divisor, porque, ao se assumir claramente como uma opção de escrita fonológica, coloca expressamente do outro lado os que preferem e defendem uma escrita etimológica. E isso é bom para a ciência, porque desse confronto há de sair uma luz.

Abre o seu livro com a afirmação que “o Crioulo começa sempre com um dilema. A Crioulização é esse processo de respostas aos dilemas. O seu melhor resultado é a síntese”. Podia comentar a sua afirmação?

Imagina um indivíduo que nasceu no séc. XV na Ribeira Grande de Santiago, entre a África e a Europa, o branco e o negro, a língua portuguesa e as línguas africanas, os ritmos europeus e os bantus, os instrumentos ibéricos e os mandingas, e essas dualidades não pertenciam ao mesmo mundo. Que fazer? Que ser? Como ser? O Crioulo é uma identidade de união dos eus que há em nós. A síntese, porque, juntou tudo e criou a sua.

“Se fizermos a ponte com um pouco de humor, não desmerecido para a ocasião, temos, nas duas margens, o Homo Sapiens, na origem, e o Homi Criolo, na síntese”. Está a querer dizer que o Homi Criolo é a coroação da evolução humana?

Não. Como, por vezes, os imãs, os sacerdotes muçulmanos, costumam explicar, o Islão não é a única religião, é a última, no sentido da história temporal das religiões. Tirando o proselitismo natural dessa explicação, o Homi Crioulo, em todo o Planeta, é o termo que pode abranger tanta gente quanta a designação genético-cultural de Sapiens, porque há crioulos em todos os continentes. Mesmo que usássemos o termo povos, estes, em muitos casos, são fragmentados pelas etnias, religiões, territórios. O Crioulo não é uma etnia, não é uma religião, não se confina a um território, é uma assunção cultural, um sentido de pertença, é um estar na Relação.

Por que é que a Crioulização é um belo exemplo da história das relações humanas. E por que é novo na história da humanidade?

É novo não apenas por ser recente, mas por sair fora dos padrões de catalogação que nos foram legados. A Crioulização desafia os elementos clássicos para atribuir gentilícios, como são o território, a ascendência, o grupo étnico, religioso ou cultural, a tez, o aspecto, a língua, etc., embora não isenta dos mesmos. Em Cabo Verde, começamos a falar de Nação Crioula a partir do século XVII, quando uma consciência individual de reconhecimento social e cultural, encabeçada pelos literatos, os homens com poder económico, etc., criou grupos sociais de sólida representação e representatividade. Esse exercício da Crioulização vai estabelecer in crescendo um pensamento de comunidade, de sociedade, de nação.

Escreve que o Crioulo começa por ser uma conduta e, logo, uma assunção. Como assim?

A aceitação do Outro constitui o primeiro sinal da Crioulização. Aqui, o gesto ou a conduta de aceitar, como em todos os fenómenos, exigiu, e exigirá sempre, no mínimo, duas pessoas e uma situação. É a assunção de uma cultura em que a identidade do ser não é dada só pelo lugar de origem, pela fé que professa, ou pelos seus progenitores, mas pela escolha de pertença e de apropriação.

Diz que um indivíduo pode escolher uma terceira identidade que soma, sintetiza, ou se abre para o Outro, ser Crioulo. Podia desenvolver esta ideia?

Tradicionalmente, cada identidade estabelecida exclui a outra. Nunca se considerou o afecto e a empatia como elementos de formação de identidades. A carga emotiva que caracteriza os indivíduos crioulos vem alterar isso. Porque o crioulo pega nas suas múltiplas origens, sintetiza-as e abre-se a outras identidades concomitantes. Acaba com as identidades estanques, ou com o que Amin Malouf chama Identidades assassinas.

Afirma que Crioulo é de onde se sente bem. O que é que significa aqui “onde”?

Primeiramente, é dentro de nós; logo, na relação com o Outro, na pertença da comunidade, no exercício diário da felicidade, da integridade, mas sempre na manifestação completa de sua identidade. Não importa de onde vem o indivíduo, importa onde ele está e se realiza, e para onde quer ir.

Por que é que o Crioulo é uma identidade-síntese comunicativa com todas as diferenças?

O Crioulo desafia a catalogação inventada das cinco raças, a fixação pelos continentes e as fronteiras intransponíveis das cores da pele. O Homi Criolo erige-se como aquele que é graças aos outros. Antes, multiculturalismo precisava de vários indivíduos com diferentes origens. No Crioulo, um indivíduo porta várias culturas. Nada é previamente desenhado. É construção permanente. É Crioulo quem quer, pois a cultura escolhe-se, e isso é possível, graças à libertação do passado que a identidade crioula traz, e à nova relação do indivíduo com as suas ascendências e colaterais.

Afirma num dos capítulos que Crioulo é o indivíduo da era pós-moderna, do pós-rancor, do pós-nação. Podia comentar?

A noção de que estamos todos no mesmo barco, ou na mesma plantação, abriu espaços inéditos para o perdão, para o luto. Foi essa sabedoria anciã que salvou a revolução haitiana e voltou a ser aplicada na África do Sul pós-Apartheid e no Rwanda pós-genocídio. Isso é pós tudo, é futuro constante. É salvação da Humanidade.

O Crioulo professa-se?

O Crioulo professa-se. E pratica-se. Na fala, na arte, na visão, na abertura, na relação com a pluralidade, no exercício de uma particularidade universal.

Por que defende que o conceito de Crioulo ultrapassa a mestiçagem?

O Crioulo não tem no “mestiço” a sua condição essencial. É preciso distinguir a Crioulização do que se convencionou chamar de Mestiçagem. Originalmente, o mestiço é uma contingência genética, resultado de misturas biológicas de indivíduos de diferentes tipologias, em que o sujeito-resultado é passivo, pois estas misturas não dependem da sua acção, mas da própria dinâmica da reprodução da espécie. Acolho o conceito de Mestiçagem, na acepção que lhe dá, por exemplo, a escola antropológica francesa de Lyon, de Laplantine, porque o desliga da sua raiz genética, para lhe conferir uma acepção bastante semelhante à que aqui é exposta através do conceito de Crioulo. Por vezes, os conceitos nascem com uma determinada raiz biológica e depois abandonam essa raiz. Aconteceu o mesmo com híbrido, que também nasceu no contexto da biologia e hoje, nomeadamente depois da obra de Néstor García Canclini, passou a significar expressões artísticas (e não só) de cruzamentos culturais ou disciplinares.

“O Crioulo é produto de um processo que começa no século XV e que nasceu em Cabo Verde”. Explique-se.

O facto de estarmos perante um território que funcionou, quase sempre, como um laboratório, uma terra que não estava habitada quando foi pisada pelos europeus, por um lado; e, por outro, a ausência de uma cultura autóctone ou indígena, que pudesse ser subjugada, com toda a violência que isso implica, contribuíram para o nascimento do fenómeno imprevisível da Crioulização. Essa apropriação que os cabo-verdianos fizeram do território ilhéu foi determinante como berço do fenómeno da Crioulização.

Penso que no capítulo Atlântico, Matrimónio da Humanidade segue em parte a tese defendida por António Carreira no seu livro “O Crioulo de Cabo Verde – surto e expansão”. Só que lhe acrescenta um elemento novo: o Atlântico. Como justifica a sua tese?

A ilha foi importante no processo de Crioulização, confinou a pessoa, prendeu-a num espaço aberto, estreitou as suas relações, eliminou-lhe fronteiras, e deu-lhe um espaço comum. O Atlântico tornou-se, então, não só um caminho para os diasporizados, mas o seu próprio continente. Tornou-se um destino, não de chegada, mas de existência, de partilha. Estamos a falar dos cinco milhões de homens, mulheres e crianças ali sepultados, atirados borda afora dos barcos negreiros, e também da cultura que emergiu dessa travessia. A Crioulização engendrou-se no espaço do Atlântico. Sem referências locais com que pudéssemos recriar etnias, tribos ou nações, rapidamente tivemos que procurar uma identidade no futuro, onde coubessem todas as nossas referências, tanto as simbólicas, como as concretas. Uma identidade cultural individual sem referências no passado remoto foi dramática, mas foi aproveitada como uma oferenda. Em parte, sinalizámo-la como uma identidade atlântica, não baseada na definição do território (mas no meritório).

Por que é que afirma que o Crioulo é um estado mental?

Cedo chegámos a esse entendimento de que o Crioulo é um estado mental. Nasce do autoconhecimento individual, depois incorpora-se na memória do colectivo. Todos, mestiços ou não, podem habitar esse estado e encontrar nele um espaço concreto de manifestação.

Mais à frente no livro escreve que a desocupação é física, mas a descolonização é mental. Podia explicar esta tese?

O tema da descolonização é, quase sempre, tratado de um modo unidireccional, no qual o protagonista é sempre o descolonizador e nunca o antigo colonizado. Isto tem a ver com a origem temporal que se atribuiu à descolonização. Para o antigo colonizador, a descolonização é um fenómeno que coincide, ou que se inicia, com a retirada da administração colonizadora. A nossa vivência sugere-nos outra leitura. Do ponto de vista histórico e político, a descolonização tem início sempre séculos antes da sua aceitação pela administração colonial. A descolonização é, assim, uma conquista do colonizado e não uma atitude do colonizador. A descolonização é um fenómeno engendrado na barriga do colonizador, mas a consciência do colonizado antecede a do colonizador sobre a matéria da descolonização. Isto é, a descolonização não pode ser reduzida à retirada das tropas e da administração. A descolonização é produto de uma história colectiva, de um processo secular. Ninguém se lembra de descolonizar aquele que não quer ser descolonizado. Por isso escrevi que a desocupação é física, a descolonização é mental.

Escreve num dos últimos capítulos do livro que enquanto persistir a ideia de soberania não haverá paz. Podia desenvolver esta ideia?

A frase não é minha. Disse-o, e bem, Alain W. Watts, no seu magnífico livro L’éloge de l’insécurité: “Enquanto persistir a ideia de soberania não haverá paz”. Tirando algumas excepções, estamos marcados por uma relação internacional feita em nome da acumulação da riqueza. Em defesa dessas mesmas acumulações, unhas e dentes atómicos são usados para rechaçar o semelhante, custe o que custar, e defender o feudo das nações e a soberania.

Não acha que é um anacronismo escrever um manifesto em pleno século XXI? Aliás, nem o Movimento Claridade achou necessário escrever um manifesto.

O novo interpela-nos. Existem muitos manifestos literários e o Surrealista, de 1924, tirou o pioneirismo aos Claridosos. Ora, com a Crioulização tudo é novo. É um Manifesto individual (risos), a primeira pessoa do indicativo presente do verbo Manifestar. Manifestei o que há em mim. Dei a minha contribuição.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1054 de 9 de Fevereiro de 2022. 

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Autoria:António Monteiro,13 fev 2022 9:00

Editado pormaria Fortes  em  2 nov 2022 23:27

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