Os guerrilheiros são colegas, irmãos, familiares e amigos, meninos com saudades de casa, das mães, da família e do futuro. No lado oposto estão outros também irmãos, familiares, companheiros ou desconhecidos com sonhos iguais aos nossos e também meninos frágeis e saudosos. O cheiro da guerra. A pólvora. A carta que não chega. As dores e as noites imensas. O napalm.
Por várias razões, hoje, mesmo correndo o risco de confundir datas, eu queria escrever sobre o motivo por que não consigo dizer aos meus sentimentos para escolherem apenas os amigos que pensam como eles, que tenham opções de vidas idênticas, que estejam do lado dos meus sins. Quem sou eu para estabelecer a verdade? Seria cómodo e poupar-me-ia justificações, mas a guerra sempre me pareceu cruel e sangro-me quando quero encaixá-la na vida.
Dois mil e vinte e dois. Há movimentação de tropas no mundo. Missões diplomáticas cruzam o espaço virtual ou não. A longínqua Ucrânia torna-se presença familiar na minha casa e nas minhas falas. O gelo solidifica o sangue nos campos de refugiados. Testam-se novas armas e novas fronteiras. Contabilizam-se balas e órfãos. Alargam-se as zonas do conflito russo-ucraniano. A Europa pesa os discursos e os quilómetros. Os Estados Unidos reescrevem calendários. As fábricas bélicas equilibram fortunas. A democracia tenta uma chance. A vasta mesa das conversações encolhe. O cinismo impõe estratégias.
Mil novecentos e sessenta e três. Final de tarde em Lisboa. Nada avisa sobre tragédias imediatas. Recebo um telegrama. É de um colega do Liceu, o Gladstone Germano, militar do exército português na então colónia da Guiné. As mãos tremem. Sento-me. Quando retomo a respiração leio: “O nosso Hércules Lobo evacuado para Lisboa ...”
Éramos amigos do liceu, colegas de todos os dias. A guerra foi uma situação que apareceu nas nossas jovens vidas sem querer saber o que pensávamos da sua injustiça, da sua justiça, das mortes, dos aplausos, das minas, da mata desventrada e sangrando, dos corpos parados a caminho de casa. Estávamos em lados diferentes, por razões opostas ou, mais seguramente, por razões desencontradas e o Gladstone pedia-me que não deixasse o Hércules sozinho, talvez no Hospital da Estrela. Eu nunca quereria isso.
Esqueço recomendações, proibições e regras. Ignoro linhas vermelhas Escondo-me dos camaradas.
Como chegar até ao nosso colega do liceu? Como chegar ao Hospital Militar dos queimados, um lugar quase proibido, eu, estudante de Cabo Verde na Metrópole, que não conhecia nenhum português, ou qualquer outra pessoa, com influência?
No dia seguinte quando chego à Escola do Magistério Primário vejo a Pagi, minha colega, portuguesa, menina rica, acho, porque ou vinha com o motorista ou algumas vezes, o pai, militar, vinha trazê-la ou buscá-la. Era a mais nova do curso e maquinava sobre a vida na África. Éramos amigas. Hoje, muitas vezes, ainda a procuro no mapa da minha saudade e encontro-a. Intacta e bela.
Doía-me a alma e supliquei-lhe que o pai militar aceitasse ajudar-me. Tinha de ir ao hospital ver o Hércules. – Vocês são namorados? – perguntou. - Sim. A palavra saiu forte e solidária. O que é mentira? O que é o amor? Ela abraçou-me e as nossas lágrimas eram iguais. Muito mais do que o sangue, se os pudéssemos investigar.
Dois dias depois o pai mandou o carro para me levar ao Hospital Militar em Amadora, se não estou em erro, à zona dos queimados. O condutor pôs-me a par da situação e das regras e acompanhou-me, sempre calado, até à zona da esterilização. Nunca tinha visto tanta dor sem doer. A morfina e outras drogas cumprindo. Em que lugar do peito se esconde a força que impede o grito e não nos deixa sucumbir?
Tentei um riso que quebrava as estradas por onde passava e sei que o nosso Lobo terá gostado de embarcar nesse riso que eu acabara de inventar.
Catorze de fevereiro de 2022, Dia dos Namorados ou de qualquer coisa que fale do amor. Mesmo que seja a guerra.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1057 de 2 de Março de 2022.