Quase vinte anos depois (a última lei orgânica é de 2002) o governo diz que se justifica a aprovação de uma nova lei, dotando o Banco Central de um novo quadro normativo. No fundo, refere o executivo, há uma necessidade do Banco Central se organizar adequadamente para poder enfrentar os desafios económicos e financeiros actuais.
Entre as alterações mais significativas, estabeleceu-se o princípio da participação legislativa do BCV, uma vez que a presente lei orgânica não pode ser alterada ou revogada sem que a respectiva iniciativa legislativa seja sujeita ao seu parecer.
O Estado garante também a cobertura das perdas que o BCV possa sofrer em resultado de operações de assistência de liquidez de emergência e de outras operações de interesse público especificamente destinadas a proteger a estabilidade do sistema financeiro, assegurando o Estado, através de reforço do capital, que o BCV disponha dos fundos próprios necessários para o exercício das suas funções.
As atribuições do Banco foram reformuladas, no entanto, estabeleceu-se uma clara hierarquia das atribuições do Banco, sendo que a principal consiste na manutenção da estabilidade dos preços.
Elimina-se ainda a possibilidade da concessão de descobertos ou qualquer outra forma de crédito ao Estado pelo BCV, pondo-se fim ao regime de transitoriedade do empréstimo existente para duas décadas, na linha do que se advogou no Programa do Governo.
Uma outra medida que, segundo o governo, reforça a dimensão financeira da independência do Banco de Cabo Verde, reside no facto de passar a aprovar o seu próprio orçamento, apenas com audição do Conselho Fiscal e do Conselho Consultivo, sem qualquer influência governamental.
Apesar da nova lei incorporar grande parte das sugestões apresentadas pelo Conselho de Administração (CA) do Banco de Cabo Verde, traz algumas novidades com as quais o CA não concorda, como se lê no parecer do Banco de Cabo Verde a que o Expresso das Ilhas teve acesso. A principal, o artigo 58º, que prevê a dissolução do conselho de administração por resolução do conselho de ministros. É a primeira vez (esta será a sexta lei orgânica do BCV) que se introduz esta possibilidade.
“Nem mesmo quando tinha a natureza de empresa pública [estatuto que acabou em 1996] o seu CA podia ser dissolvido como agora se pretende”, lê-se no parecer do BCV. “Que se conheça, não há registo de idêntica previsão em orgânica de banco central, pelo menos entre aqueles dos países que nos são próximos, e do rol dos instrumentos de reforço da autonomia dos bancos centrais não se conhece a recomendação de sugerir a introdução da dissolução do CA”.
“Se pode o CA ser objecto de inquérito enquanto conduz os destinos do banco, está a retirar-se a esse órgão as condições idóneas, morais e reputacionais, indispensáveis à boa condução dos destinos de um banco central, pondo em risco o cumprimento da missão que essa instituição executa com exclusividade a nível nacional e que é essencial e indispensável ao normal funcionamento do país enquanto Estado soberano e membro da comunidade das nações”.
Além disso, refere o documento, “a necessidade de dissolução do CA do BCV nunca se cogitou ao longo da existência desta instituição, sendo que havendo necessidade de se exigir responsabilidade individual de cada um dos seus membros, incluindo o governador, há bastantes instrumentos ao nível da actual lei orgânica que facilita essa tomada de decisão”.
Em conclusão, o CA “é de parecer que a nova lei orgânica não deve introduzir esse instituto jurídico, sugerindo a eliminação da previsão que consta no artigo 58º da proposta, na medida que essa previsão fragiliza a estabilidade dos mandatos, pode influenciar o governador ou qualquer membro do CA no desempenho das suas funções, reduz a autonomia de cada um dos administradores em relação aos demais membros do conselho e anda na contra-mão do reforço da autonomia do BCV que a presente iniciativa legislativa diz preconizar”.
Mandatos de seis anos
Outra alteração proposta que não agrada ao CA do BCV tem a ver com os mandatos do governador, dos administradores, dos membros do conselho fiscal e do conselho consultivo, que passam a ter a duração de seis anos. Segundo o parecer do Banco Central, “pela sua própria natureza, qualquer mandato renovável incorpora laivos de instabilidade”, pelo que “o CA pugna por um mandato único e estável de 8 anos para o governador e os administradores”.
Contactado pelo Expresso das Ilhas, Carlos Burgo, antigo governador do BCV, concorda que se justifica a apresentação de uma proposta de actualização, “visando capitalizar a experiência na sua implementação e promover o seu ajustamento à evolução entretanto registada tanto a nível internacional como na gestão macroeconómica do país”.
Apesar de reconhecer a “bondade” de algumas propostas de alteração, esta, na opinião do economista, “não consubstancia nenhuma alteração estrutural e fica aquém do que o próprio Governo se propôs no seu programa. O Governo assumiu o propósito de reforçar a independência do banco central, principalmente através da consagração da nomeação do Governador pelo Presidente da República e da interdição do financiamento monetário do Estado. Por limitações constitucionais, não é possível realizar o primeiro objectivo, já que, não tendo havido a revisão da Constituição da República, não é possível alargar os poderes do Presidente da República pela via da legislação ordinária”.
No que diz respeito ao financiamento do Estado pelo BCV, “mais do que promover alterações legais, importa cumprir o que já está consagrado na lei e rejeitar o recurso a subterfúgios para contornar a Lei Orgânica”, sublinha Carlos Burgo. Em outro pilar essencial da autonomia, a capitalização do banco central pelo Estado, sempre que necessário, “também, o que importa é, mais do que promover nova legislação, cumprir o já estatuído na legislação em vigor. Sem a possibilidade de capitalização pelo Tesouro, perde significado o poder do banco central aprovar o seu próprio orçamento”.
E em relação ao objectivo de reforçar a autonomia do banco central, alargando a duração do mandato do Governador e dos demais membros do Conselho de Administração para seis anos, “esse objectivo”, conclui o antigo governador do BCV, “seria prosseguido de forma muito mais eficaz com um único mandato de sete ou oito anos, sem possibilidade de renovação”, concordando assim com o parecer do actual conselho de administração do Banco Central.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 955 de 18 de Março de 2020.