Orlanda Ferreira, Presidente do INPS : “O direito à protecção social é um direito humano”

PorJorge Montezinho,11 abr 2020 8:41

Parte da mitigação dos impactos que a crise do Covid-19 vai provocar em Cabo Verde estará nas mãos da previdência social. E a factura vai ser pesada, as contribuições que deixarão de entrar e os apoios sociais que começarão a sair vão custar ao INPS quase 4 milhões de contos. Orlanda Ferreira, presidente da instituição, diz ao Expresso das Ilhas que mais importante do que olhar para os números é responder a uma situação que ninguém previa.

O INPS está preparado para responder a todas estas medidas extraordinárias?

O direito à protecção social é um direito humano consagrado na nossa Constituição. No momento em que os nossos beneficiários precisam da protecção social para assegurar a compensação no rendimento, é fundamental que estejamos preparados para responder dentro daquilo que já está estabelecido nos regulamentos e leis, assim como as demais medidas excepcionais que foram decretadas pelo governo.

Já fizeram as contas, presumo, quanto é que isto vai custar aos cofres do INPS?

Não gostaria de trazer números para não passar a ideia de que nesse momento vale muito mais os números e as estatísticas. Mas, justifica a necessidade de nos focarmos numa análise mais próxima possível da situação. Significa que construímos alguns cenários prováveis em conformidade com as medidas adoptadas. E nestes cenários tivemos em conta o subsídio de desemprego, que já é uma prestação a que os trabalhadores têm direito mas que trouxe outras variáveis, o isolamento profilático obrigatório equiparado a subsídio de doença, o rendimento solidário dirigido aos trabalhadores do Regime Especial de Micro Pequenas Empresas (REMPE), e a possibilidade de perda de contribuições por suspensão de contrato de trabalho, apesar de temporárias. O REMPE é um dos regimes cuja gestão é compartilhada com as Finanças, e devo dizer que se encontra inscrito no INPS aproximadamente, 11 mil trabalhadores e no âmbito da Resolução extraordinária [resolução nº 58/2020], cabe ao INPS o pagamento do rendimento solidário aos inscritos ativos e com salário até vinte mil escudos. Ainda temos as situações que foram decretadas pelo Parlamento, em que abre a possibilidade da entidade empregadora suspender o contrato de trabalho ao invés de fazer despedimento. Havendo confirmação da DGT, a entidade empregadora poderá requerer ao INPS a compensação equivalente a 35% do salário pago e ainda ficar isento do pagamento das contribuições. E temos uma outra situação em que a entidade empregadora decide pelo não encerramento da sua empresa, mas diminui o volume dos negócios na ordem dos 30% comparativamente ao período homologo, neste caso o trabalhador continua a trabalhar e a entidade empregadora é isenta de pagar as contribuições na parte que lhe toca. Todas essas situações, um dos cenário construídos, aponta para os 3,8 milhões de contos, em termos de perdas de contribuições e prestações.

E se estes apoios financeiros forem alargados? Por quanto tempo o INPS consegue responder?

A esperança é que a crise seja curta, que retomamos a normalidade dentro de pouco tempo. É uma bruta incerteza, quanto à duração e profundidade dessa repentina crise. Por isso que as medidas devem ser sempre sujeitas a ajustes. O cuidado que nós temos na gestão da previdência social em outros momentos fica agora mais do que evidente que é necessária a garantia da sustentabilidade. Se houver continuidade, é evidente que no ano de 2020 vai ser terrível. Ninguém escapa. Empresas encerram, trabalhadores no desemprego. Tudo isso terá impacto sobre a Previdência Social.

No fundo é um cenário em que as receitas das contribuições descem e a despesas com a protecção social sobem. Como é que um contexto destes afecta a sustentabilidade da segurança social?

Neste momento o que mais importa é que consigamos vencer a pandemia, de respondermos a uma situação que ninguém previa que pudesse mudar as nossas vidas desta forma, apesar do futuro estar a frente de todos nós. Como disse, o direito à protecção social é um direito humano e devemos, neste momento, acudir os nossos beneficiários que contribuem para o sistema nos termos dos direitos. Não é possível recuperar o País economicamente se as empresas e os trabalhadores não estiverem a produzir.

A preocupação principal é o imediato e não o futuro, é isso?

Temos de o fazer ao mesmo tempo. De imediato, disponibilizar as prestações e ao mesmo tempo ter presente o futuro. É evidente que a execução ao mesmo tempo implica o cumprimento das leis, pelos direitos dos segurados e avaliar permanentemente os efeitos da crise da Covid-19. Uma crise que afasta até as pessoas entre si. O governo estará atente e todos nós, as medidas de carácter económico, social poderão ser revistas ou ajustadas. Estou convencida que com esse mundo virado de avesso, a sociedade de uma forma geral ficará mais consciente que a inscrição no sistema de previdência social é um dever pelo que poderemos sair mais fortalecidos.

É também o momento para que empregadores e trabalhadores percebam a importância da segurança social?

A partida todos os que têm uma actividade económica devem estar inscritos no sistema de previdência social, porque o regime é obrigatório. Sabem da importância da segurança social, mas ficará mais reforçado essa consciência. Trata-se de uma oportunidade para reflectirmos, para questionarmos as nossas atitudes e os nossos comportamentos e para levarmos a sério a necessidade da protecção social.

A segurança social tem um papel preponderante nas medidas de mitigação do impacto económico da pandemia, mediante as prestações disponibilizadas e a isenção do pagamento de parte das contribuições, são na verdade recursos lançados para o mercado e que poderão contribuir para o regresso à normalidade.

Estas medidas de protecção social associadas aos estímulos de natureza fiscais terão um impacto satisfatório nesse momento. Dentro desse pacote de protecção social, cinco das medidas são assumidas pelo INPS, dirigidas às empresas assim como aos trabalhadores, e a conjugação destas medidas é que vai mitigar as consequências consideradas devastadoras desta pandemia.

Quando diz isso é tendo a consciência que o país não deixará de enfrentar uma crise social, apesar de todos os apoios. Têm já alguma projecção? Uma antecipação do que irá acontecer?

Como disse, ninguém escapa. Todos nós estamos perante uma grave experiência que segundo especialistas os efeitos da crise financeira de 2008 já está praticamente garantido. No entanto auguro que saiamos vencedores e com o trabalho abnegado de todos, que a economia retome a sua trajectória, apesar de ser bem devagar. A economia dos países com quem temos fortes relações precisarão também de retomar. Não estamos isolados no mundo, dependemos muito do exterior. Sem famílias a comprar, o consumo privado diminui e com isso o impacto sobre a economia, sem mercado de vendas, sem aviões para trazer os turistas devido ao impacto também nos os países de origem, a nossa economia vai recuar e muito.

Há pensadores a dizer que este é o acontecimento mais extraordinário de todos e tem de ter uma resposta à altura. Sabemos que os países com um sistema bem desenvolvido de segurança social serão capazes de navegar melhor pela crise. Acha que este é também um momento de teste ao sistema cabo-verdiano?

Pode ser um teste, e uma oportunidade para reflectirmos, como já disse. Há pensadores que já prevêem que a economia de alguns países pode recuar a níveis do século passado, com uma recessão de 15%. Neste momento, todos os países estão sob a mesmo caminho, isso implica uma reflexão global e medidas estratégicas acertadas.

Têm analisado os impactos nos outros países para conseguir projectar o que poderá acontecer em Cabo Verde?

Em Cabo Verde somos um país com um pouco mais 500 mil habitantes, um país arquipelágico e com muitas vulnerabilidades, mas também com algumas vantagens. Vai depender em muito de nós, da nossa capacidade de alavancar e criar as condições de retoma da nossa economia. Os parceiros estratégicos são fundamentais nesse novo caminho que teremos de traçar. Cabo Verde faz parte do mundo e se tivermos em conta que uma percentagem elevada do crescimento da nossa economia deve-se ao turismo, a retoma desse sector vai ser importante. No entanto, é o momento de reforçarmos as nossas estratégias baseadas em outros eixos.

Por falar nisso, considera que este é também o momento certo para que os governos possam avaliar as vulnerabilidades das suas economias e do próprio sistema de segurança social?

Felizmente que todos nós já conhecemos as nossas principais vulnerabilidades. Não existe um estudo que não coloca ênfase nas nossas vulnerabilidades: somos ilhas, um país pequeno, com um mercado exíguo para o desenvolvimento das actividades económicas, etc., essa reflexão existe. Agora, esta pandemia penso que vai reforçar muito mais a convicção de que a segurança social deve ser colocada como uma necessidade premente. Vários estudiosos consideram que os países que têm uma segurança social forte, sustentável e a funcionar, conseguem ultrapassar as crises com mais facilidade do que os países onde isso não acontece. 54% dos trabalhadores estão fora da previdência social, 46% dos trabalhadores estão inscritos e brevemente deixaremos de beneficiar do bónus demográfico. Esta relação justifica a necessidade reforçarmos a inscrição sistema de segurança social. Os benefícios são dirigidos aos inscritos e, com situação regularizada e activos. E os outros que não estão inscritos? É claro que o governo já identificou uma série de medidas direccionadas para esse outro grupo, que está a ser gerido pelo ministério da família através do Centro Nacional de Pensões Sociais, mas se estivessem inscritos no sistema de segurança social é evidente que essa franja da população seria muito menor do que a percentagem que o governo vai ter de assumir através do Orçamento do Estado.

Ou seja, quando falámos há pouco das oportunidades, esta pode ser também a oportunidade para aumentar a formalização da economia cabo-verdiana?

Uma das maiores dificuldades enfrentada com a no âmbito da extensão da protecção social é a informalidade. Uma grande parte dos trabalhadores liberais, dos ambulantes, das trabalhadores domésticos, ou seja, os de conta própria em geral não estão nem inscritos nem fazerem parte do cadastro social. Temos essa oportunidade de fazer os seus registos e passarem a constar no regime não contributivo ou no regime contributivo. Se estivessem registados ou inscritos todo o trabalho estaria facilitado neste momento. Uma forma também de contribuirmos para o trabalho digno.

Se pudermos resumir, essa reflexão sobre a segurança social do futuro não será tanto sobre algo novo, mas sim sobre algo mais amplo.

Uma protecção social mais abrangente aos grupos profissionais de difícil acesso e mais inclusiva. Um dos grandes objectivos do nosso plano estratégico é a Extensão da Protecção Social, aliás trata-se de uma recomendação da Associação Internacional de Segurança Social e da Organização Internacional do Trabalho. Fixamos como objectivo alcançar até 2021, 50% da população empregada. Quando apelamos à inscrição na segurança social é precisamente para responder a este grande desafio de trabalho digno.

Ninguém estava preparado para o cenário que estamos a enfrentar. Como é que o INPS operacionalizou todo este plano em tão curto espaço de tempo?

Uma situação que não prevíamos. O Instituto Nacional de Previdência Social é uma instituição reconhecida pela organização e que sempre pautou pela responsabilidade na gestão. O meu sentimento é de que todas as sucessivas administrações têm procurado fazer uma boa gestão e sempre preocupado com a sustentabilidade muito embora a estrutura demográfica de Cabo Verde ainda tem ajudado. Temos um sistema funcional, temos uma estrutura orgânica bem definida e bem identificada as atribuições de cada Unidade Orgânica, de forma que é muito mais fácil agir imediatamente desde que haja orientações claras. O que nos dificulta pontualmente é ausência de actualização dos dados dos beneficiários, alteram os contactos e não comuniquem, mudam de emprego e não informem; por exemplo, poderíamos começar já a efectuar o pagamento do rendimento solidário, mas porque não vamos iniciar de imediato? Porque temos um número de razoável de trabalhadores inscritos no REMPE que nunca quiseram disponibilizar o número de identificação bancária. Se tivessem feito, poderíamos começar a pagar a totalidade do rendimento solidário. O que vamos fazer? Pagar de imediato aos que fazem parte da nossa base de dados através de transferência bancária e para os outros estamos a negociar com um dos bancos para criarem uma conta simplificada para que possamos fazer o pagamento o mais rápido possível.

A rapidez é, de facto, fundamental nestas respostas às crises. Em Cabo Verde, as avaliações foram as correctas e as acções foram as certas?

Acredito que sim, falo no âmbito da protecção social. As medidas tomadas em Cabo Verde vão ao encontro das medidas recomendadas pela Associação Internacional da Segurança Social e da própria Organização Internacional do Trabalho. Constatei que outros países tomaram medidas idênticas aos que foram tomadas em Cabo Verde. De todo o modo tudo depende da durabilidade da pandemia, pelo que e como já disse o Governo está atento e fará as correcções ou ajustes que achar mais razoáveis e viáveis.

De qualquer maneira, esta crise vai ser um choque transversal para toda a sociedade, inclusive para a segurança social.

Vai ser transversal, ninguém vai escapar, os profissionais de saúde que cuidam de nós vivem momentos de ansiedade, e evidentemente a segurança social não fica de fora. O choque é sobre o sistema de forma global: financeiro, económico social. O BCV tomou as suas medidas, o Governo, o Parlamento. Todos os sectores envolvidos quer através de medidas de política monetária, medidas fiscais, medidas de protecção social, todas elas combinadas são transversais a toda a sociedade. O mais importante é a protecção das famílias. Promovendo condições para o empregador, para o trabalhador, estamos a proteger a família, o emprego, e logo a garantia do rendimento.

Não há economia sem as pessoas mentalmente preparadas para retomar a normalidade.

A minha convicção e dos colaboradores do INPS que retornando a situação normal, retoma a normalidade e que cresceremos muito mais com a normalidade. Devo, contudo, dizer que as entidades empregadoras numa situação de isenção devem continuar a entregar as folhas de ordenado e salário no INPS directamente ou através de fos.online. Porquê? Porque temos de continuar a garantir a protecção dos trabalhadores em termos da sua carreira contributiva para efeito de contagem de tempo de desconto. Mesmo numa situação de suspensão do contrato de trabalho ou de redução de volume de negocio, as folhas devem ser entregues no INPS para podermos ter equivalência no registo da carreira contributiva do trabalhador e sem o penalizar.

O INPS vai recuperar algum do dinheiro que agora está a disponibilizar?

Recuperar como!? O subsídio de desemprego e o subsídio de doença são prestações previstas e da responsabilidades do INPS. Há medidas excepcionais aprovadas no âmbito do Conselho de Concertação Social e decretadas pelo Governo e pelo Parlamento, que juridicamente devemos cumprir. Somente para o rendimento solidário é que o INPS poderá ser ressarcido por parte do governo. Nas demais medidas com impacto de carácter excepcional não se prevê qualquer compensação de imediato. Vamos ter de aprovar um orçamento rectificativo. No entanto devo dizer em se verificando eventualmente uma dificuldade, o ultimo garante é o Estado de Cabo Verde. Esperamos não ter esta necessidade tão cedo.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 958 de 8 de Abril de 2020. 

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Autoria:Jorge Montezinho,11 abr 2020 8:41

Editado porDulcina Mendes  em  18 jan 2021 23:21

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