Mais do que nunca, estamos numa altura em que um momento excepcional exige medidas excepcionais?
Como sabe, cada um de nós hoje está a enfrentar o desafio da sua vida. Olhando para trás, mesmo eu que já estou há quase meio século neste mundo, nunca tinha presenciado uma crise com este impacto para a humanidade e particularmente para Cabo Verde. Como já foi dito, é um tsunami económico em relação ao qual ninguém esteve e está preparado. Quem afirmar o contrário estará a mentir. Ninguém sabe hoje quais serão os verdadeiros impactos económicos desta crise. Até onde vai em termos de duração. E como será o mundo após esta crise. É uma crise que tem de ser gerida no dia a dia, com medidas que têm de ser tomadas com coração, com humildade, para em função da realidade poder ajustá-las para que possamos garantir duas coisas: uma, a protecção da saúde das pessoas e da saúde colectiva e, em segundo lugar, a protecção do emprego e dos rendimentos para os próximos meses, mais particularmente para os próximos três meses.
Nesse sentido, como podemos ver as medidas anunciadas esta terça-feira pelo governo?
O que foi conseguido é muito importante, um acordo entre os parceiros sociais para que a primeira geração de medidas possa avançar e, em função do acompanhamento e das necessidades do contexto, podermos tomar novas medidas. Nós temos em Cabo Verde algo como 206 mil empregos, dos quais, 80 mil estão no sector privado e 20 mil estão nos sectores do turismo e conexos, que estão a ser muito impactados pela crise da covid-19. Por isso, a preocupação primeira do governo e dos parceiros sociais é proteger o emprego, garantir os rendimentos e criar condições para que as famílias possam sobrevoar esta crise com o menor impacto possível. Seguramente, haverá sofrimento, ninguém pode evitar isso, o que podemos é minimizar o sofrimento das pessoas.
É esse o objectivo das várias medidas nas diversas áreas?
Sim. Em primeiro lugar, ao nível do mercado de trabalho, o que o Estado quer fazer, em termos muito simples e sem ir para os contextos jurídicos concretos, é evitar o desemprego, pagar 35% dos 70% do salário que as pessoas devem continuar a usufruir no caso de haver suspensão de contrato. Ou seja, o Estado, através do INPS, estará disponível para colocar 50% do salário bruto, neste caso 35%, e os empresários disponibilizaram-se para pôr os outros 35% e isto significa que vamos fazer tudo para evitar o desemprego. Para além disto, as empresas deixarão de contribuir para o INPS, haverá um diferimento para os próximos três meses, mas vamos também tudo fazer para injectar mais liquidez na economia através de linhas de financiamento no valor de 4 milhões de contos para as empresas que estão a actuar na economia cabo-verdiana e particularmente para as empresas que estão a actuar nos sectores mais afectados por esta epidemia.
Empréstimos com garantias do Estado que poderão ir até 100%.
Que poderá ir até 100% em função dos casos concretos. Estamos a negociar com os bancos para que os empréstimos aconteçam nas melhores condições possíveis, para que as empresas tenham empréstimos para a tesouraria, possam reestruturar os seus empréstimos de curto prazo para empréstimos de médio/longo prazo e também, no quadro da nossa relação com o Banco Central em matéria de coordenação da política monetária, orçamental e financeira, estamos a abordar as questões de existência de liquidez para o sistema financeiro e alguma flexibilidade nos critérios macroprodenciais e prodenciais para permitir que os bancos também possam negociar com os clientes um diferimento em relação aos prazos de pagamento das suas prestações, tendo em atenção o momento que estamos a viver. Para além disso, iremos pagar a tempo tudo o que são obrigações do Estado para com as empresas particulares, o que significa injectar mais um milhão de contos na economia nos próximos três meses. Ao nível fiscal, tudo o que é pressão fiscal sobre as empresas, nos próximos três meses também será aliviado, não haverá execuções fiscais, haverá um prazo de pagamento alargado após a crise e iremos ainda reduzir algumas taxas dos direitos de importação e criar as condições para que as empresas possam fazer o pagamento depois do próximo trimestre. Iremos avaliar ao fim destes 3 meses e depois negociaremos os termos dos pagamentos de impostos. Para além disso, tudo aquilo que são obrigações das empresas em matéria de alvarás e licenciamentos com prazos expirados vão ser automaticamente renovados.
Já têm uma noção de qual será o impacto real desta crise na economia cabo-verdiana?
Estamos a falar de medidas extraordinárias no contexto em que a nossa melhor previsão para o crescimento económico para 2020 é de -4%, uma redução de 4%. Em que vamos perder algo como 500 mil turistas. Em que vamos perder, e isso já é garantido, entre 16 a 18 milhões de contos de receitas. Isso significa que mesmo neste contexto de grande aperto orçamental, de grande contracção ao nível do crescimento da economia, estamos a tomar essas medidas expansionistas com um único objectivo – aliás, as empresas que não se comprometerem com a manutenção dos postos de trabalho não poderão ter acesso aos benefícios que o Estado está a criar – manter empregos e rendimentos. Claro que numa situação limite, onde não há outra alternativa, temos sempre a situação extrema que é o desemprego, mas nesse caso temos o subsídio de desemprego [65% do salário bruto] e estamos a flexibilizar o acesso [bastam agora 2 meses de descontos e não há limites de idade] para que o máximo número possível de pessoas nessas condições possam ter acesso ao subsídio de desemprego.
Vai ser um custo enorme para o INPS, presumo.
Qualquer coisa como 2,8 milhões de contos, mas um sistema de segurança social que se preze tem de ser activo nos momentos de crise. Um sistema de segurança social que actue apenas em momentos de expansão económica é um sistema que não serve. A segurança social tem de servir o país nos momentos de crise e nos momentos de aflição. Após os três meses iremos ver como vamos criar o quadro de sustentabilidade. Por isso é que nos próximos três meses não podemos governar para a estatística, para os indicadores, nem para os rácios, temos de governar com o objectivo primeiro de proteger a saúde das pessoas, depois proteger o emprego e proteger os rendimentos, sempre com o sentido de equilíbrio e responsabilidade porque as medidas que tomamos agora são uma primeira geração. Ainda hoje [terça-feira] vamos criar uma comissão executiva, curta, que irá acompanhar a introdução das medidas e o contexto nacional e internacional e em função dessa avaliação poderemos, sempre que for necessário, tomar novas medidas, ou ajustar as medidas que estão em vigor. É importante chegar ao final desta crise em condições de podermos acelerar o crescimento económico. Vai ser necessário, obrigatoriamente, um orçamento rectificativo, porque em função desta realidade, deste corte abrupto e abismal das receitas públicas, temos de redefinir as prioridades, o quadro de financiamento interno, mobilizar parcerias internacionais para que possamos fechar o gap, neste caso, FMI, Banco Mundial, União Europeia, Luxemburgo, China, todos os parceiros que seguramente estarão connosco para que possamos gerir esta crise da melhor forma, o que significa, com o menor sofrimento possível para as pessoas.
Como é que o Estado vai pagar estas contas extraordinárias?
Essas contas estão todas feitas. Como disse, o INPS tem capacidade para aguentar os valores que já referimos, ao nível do Estado estamos a trabalhar para acelerarmos a execução orçamental. Mais, um conjunto de projectos e de financiamentos que tínhamos para os próximos quatro anos vai ser antecipado para o podermos usar com mais incidência nos próximos três meses, tudo o que tem a ver com o rendimento social de inclusão, projectos que têm a ver com a produção e dessalinização da água, projectos que têm a ver com o mundo rural. Todos os demais projectos que não possam ter um grande impacto ao nível do emprego e do rendimento devem ser, como é óbvio, reprogramados no quadro do orçamento rectificativo. Vai ser duro, tendo em conta que havia uma enorme expectativa, mas é o exemplo que dou, é como uma pessoa que tinha planeado comprar um carro, acontece uma doença grave num familiar próximo, tem de deixar de comprar a viatura para investir na saúde do familiar, se ele for humano. É isso que está a acontecer. Tudo o que são despesas que podemos adiar, sem comprometer o bom funcionamento do país e o bem estar das pessoas, será adiado. Claro que saúde será prioridade, saneamento será prioridade, agricultura será prioridade, outros investimentos serão prioridade só após a crise. Vamos gerir com sentido de responsabilidade, é claro que uma parte dessa intervenção será pela via do endividamento, que terá de ser pago com impostos futuros e com a dinâmica futura de crescimento, isso é que vai pagar as responsabilidades que temos de arcar hoje. Quanto menor for essa responsabilidade, mais fácil será a gestão, quanto maior, mais difícil será. A nossa responsabilidade será equilibrar o presente e o futuro, sem deixar que as pessoas fiquem a sofrer por causa da nossa decisão, ou por causa da nossa indecisão.
Ou seja, estaremos a falar de um orçamento rectificativo onde a prioridade irá para os investimentos públicos que criem emprego?
Emprego e para os sectores fundamentais: saúde, onde já fizemos um primeiro reajustamento; tudo o que tem a ver com água; tudo o que sejam planos e projectos com grande impacto na criação de emprego. Todos os demais investimentos têm de ser reprogramados, tendo em conta que temos de equilibrar o orçamento em face desse gap de receitas que já referi. E isto tendo em conta o cenário actual, não posso garantir que amanhã esse valor não seja superior ou inferior. Portanto, 18 milhões de contos. Dois milhões de contos já conseguimos encaixar no orçamento actual, temos cerca de 16 milhões de contos por equilibrar no OE de 2020, o que deve dar origem a um orçamento rectificativo com um corte muito forte nas despesas. De arrecadação de impostos previstos tínhamos qualquer coisa como 43 milhões de contos, ora desse valor 16 milhões já se foram.
Pouco menos de metade.
Já está a entender qual vai ser o exercício orçamental para o ano 2020. E no melhor dos cenários. Se o pico da crise em Portugal e na Europa for em Abril/Maio, até conseguirmos estabilizar a pandemia podemos dizer que 2020 será um ano muito difícil para o nosso país.
Mas isso é também fundamental, dizer a verdade às pessoas para que sejam parte da solução.
Repare, uma economia em que eu estava confiante que este ano atingiríamos os 7% de crescimento, em que já estávamos acima dos 6%, passar para uma recessão de 4% negativo, e que até pode ser maior, é uma alteração dramática. Perder 500 mil turistas num ano, é dramático. Ter um gap de 16 milhões de contos nas receitas, é dramático. Cabo Verde vai ser um dos países que mais vai sofrer o impacto desta pandemia, tendo em conta a nossa abertura ao exterior e a nossa dependência em relação ao turismo. Mas, como disse inicialmente, este é o desafio das nossas vidas e temos de nos mobilizar para o vencer. Não será fácil, mas temos de aguentar os próximos meses e em função da parte final reajustar o país em termos de políticas fiscais, de ambiente de negócios, de incentivos ao investimento, de reformas. O quadro pós-crise será muito desafiante, mas tenho a convicção que estamos preparados, enquanto povo e enquanto nação, para vencer este desafio. Que é enorme. Não será fácil, mas será possível. Todos nós, governo, patronato, famílias, iremos perder alguma coisa, para a ganhar no futuro, ninguém sairá ileso deste processo. O mais importante é ser equilibrado para que todos possamos sair com mais força no final deste processo. Olhando para trás, não vi nenhum ministro das finanças de Cabo Verde a ter de gerir uma situação desta natureza e nenhum país se preparou para isto. Se Portugal não está, se os Estados Unidos da América não está, se o Luxemburgo não está, se a União Europeia não está, Cabo Verde também não pode estar. Temos de ir buscar as energias onde existirem.
Nesta altura, e falo em relação às entidades internacionais, Cabo Verde deveria ser desobrigado das metas fiscais a que está sujeito?
Como já disse, nos próximos três meses não podemos governar para a estatística, para os rácios, nem para os indicadores. Nem para fora nem para dentro. Temos de governar centrado nos dois objectivos que já referi: saúde das pessoas e saúde colectiva e o emprego e os rendimentos, para evitarmos uma catástrofe social. Seguramente, depois da crise, reajustaremos todo o quadro orçamental, monetário e de política financeira, mas nesta fase temos de gerir o país com esses dois objectivos. Por isso temos de revisitar as metas ao nível da dívida pública, do défice orçamental, porque quer queiramos quer não, mesmo que não fizéssemos nada, só o impacto externo já obrigaria a um incumprimento de todos os rácios. Claro que quanto menos tempo demorar a crise, mais fácil será. Quanto mais durar, mais difícil será para todos, mas terá de ser sempre um custo a ser suportado pela colectividade.
Os parceiros têm demonstrado abertura?
Todos. Estamos a negociar com o FMI, o Banco Mundial, a União Europeia, o BAD, e há uma abertura para ajudar Cabo Verde quer antecipando os valores previstos para este ano e para os anos seguintes, como também aumentando o envelope para que possamos fechar o gap. Neste momento, com base nos dados que temos, para continuar a nossa programação iremos precisar de qualquer coisa como 100 milhões de euros da comunidade internacional. Portanto, temos de ter uma ajuda externa muito forte, mas temos de reajustar o orçamento para permitir que, não havendo entrada desses recursos, não haja um desequilíbrio macroeconómico do país que possa pôr em causa o futuro.
Tão importante como enfrentar esta crise será o primeiro dia pós-crise.
Exactamente, não podemos estar sem energia no primeiro dia pós-crise, com um quadro orçamental descontrolado, com uma dívida pública descontrolada, sem reservas para fazer face às importações, etc., temos de gerir tudo isso com equilíbrio para que no primeiro dia pós-crise estejamos em condições para continuar a correr, para fazer crescer a economia cabo-verdiana de forma inclusiva e para continuar o desenvolvimento do nosso país.
Temos estado a falar de várias questões, mas há uma ainda por responder. Como será assegurado o rendimento dos trabalhadores informais?
Vamos apresentar ainda esta semana, ou no primeiro dia da semana seguinte, um programa para o sector informal. A nossa solução é simples, e temos condições para ter um programa muito forte, acelerar o rendimento social de inclusão e inclusão pela via do rendimento. Vamos negociar com os nossos parceiros internacionais, neste caso o Banco Mundial e a União Europeia, parceiros que financiam esse programa, para que possamos acelerar o que estava previsto no orçamento para todo o ano para os próximos três meses. Portanto, com o sistema de micro finanças, 300 mil contos de linha de financiamento, com o rendimento social de inclusão que vamos aumentar o envelope de forma substancial, mas depois comunicaremos, com a actividade produtiva que vamos incentivar, mas também com medidas que iremos adoptar de formação profissional e de protecção das famílias com crianças, com idosos, penso que reuniremos as condições de protecção social para aqueles que não estão cobertos pela sistema de previdência social.
Tanto mais que se houver uma quarentena mais forte no país, com as pessoas a terem de obrigatoriamente ficar em casa, essas pessoas que precisam de procurar o seu rendimento diário não irão aceitar um confinamento mais permanente.
Claro que se avançarmos para uma situação de quarentena, as medidas terão de ser mais musculadas. Esperemos não ter de chegar a esse ponto, mas encontraremos também solução, de certeza. Por isso é que as medidas estão a ser tomadas de forma gradativa. Não estamos a usar, nesta primeira fase, todas as munições que temos. Há outras para utilizar caso venha a ser necessário. Portanto, vamos primeiro aplicar estas medidas, utilizá-las até ao limite dos montantes previstos e do alcance ao nível económico e social. Se viermos a apertar ainda mais a situação do ponto de vista da quarentena teremos de muscular as medidas, os impactos serão maiores do ponto de vista financeira, mas teremos condição para intervir. E quando falo de condições falo de nós todos, as famílias têm de entrar, as empresas têm de entrar, o Estado tem de entrar, os sindicatos têm de entrar, para que todos juntos possamos partilhar os recursos, os meios e as vontades e podermos evitar o sofrimento das pessoas. Repito, estamos perante o desafio das nossas vidas e desafios desta natureza são para ser vencidos. Não obstante a dimensão do problema e das implicações para Cabo Verde estamos determinados a tudo fazer para que nos próximos meses possamos evitar o sofrimento das pessoas, proteger a saúde das pessoas e preparar-nos para daqui a três meses fazer as correcções e depois continuar a dinâmica de crescimento. Ou seja, estamos a trabalhar a dois níveis: a curto prazo, mitigação; e depois o futuro. Porque quero que o país esteja com a energia suficiente para que no primeiro dia que decretarmos o termo desta crise possamos retomar a nossa dinâmica de crescimento. Todos os países do mundo têm paisagens, montanhas, praias, produção, mas a coisa mais bela que existe no mundo são as pessoas e cada pessoa é uma pessoa. Não tenho dúvidas que o mundo. Colectivamente, vencerá este desafio, mas a questão que se coloca é evitar que uma pessoa sequer pague as consequências dessa crise. O nosso papel, enquanto governo, é proteger a pessoa, cada pessoa.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 955 de 25 de Março de 2020.