Cristina Duarte e as oportunidades da COVID-19 para África : Uma crise ao quadrado, a raiz dos problemas e as oportunidades da pandemia num continente sob paradoxo

PorSara Almeida,31 mai 2020 7:59

A crise da COVID-19 provocou dois choques em África, um externo e económico, outro interno, que é sanitário e sócio-económico. Dos choques surgem novos problemas e agudizam-se os velhos e os desafios só se poderão superar percebendo a raiz desses problemas. Numa análise suportada por dados bem concretos, Cristina Duarte parte dessa raiz e aponta caminhos para o desenvolvimento africano, oportunidades abertas num continente que vive sob o paradoxo de pedir com a mão direita e deixar escapar biliões com a mão esquerda.

O futuro é tecnológico e o desenvolvimento trilha-se pela inovação, luta aos fluxos ilícitos e melhoria das administrações fiscais.

Cristina Duarte falava esta segunda-feira, 25, em conferência “online” organizada pela Fundação José Maria Neves, para assinalar o Dia da África. Sob o tema “A África no século XXI: A pandemia da COVID-19 e os desafios de desenvolvimento” a economista e consultora sénior internacional, que foi também ministra das Finanças de Cabo Verde, começou por apontar a cronologia da crise.

Assim, como explicou, ao contrário do que aconteceu em outros epicentros da pandemia, a crise da COVID-19 em África começou por ser, “não uma crise sanitária interna”, mas um choque externo, de natureza económica.

Um choque que foi “resultado das medidas de lockdown tomadas por alguns epicentros do sistema” – a China e depois a Europa – que “são importantes mercados quer de importação quer de exportação para África”.

O ponto de partida é, portanto, diferente. O timing da propagação do vírus também. “Entre Março e Abril, África contava com entre 5 mil a 15 mil casos identificados da COVID-19”. Em torno de 20 de Abril, o continente tinha 22 mil casos. A 24 de Maio, contava já com cerca de 110 casos “identificados – esta palavra é importante, tendo em conta a fragilidade dos sistemas de recolha e processamento de informação em África”, sublinhou.

Esses dados mostram que apesar de o número de infectados em Março e Abril ainda não permitirem falar de números pandémicos, “África já estava a mergulhar numa profunda crise económica”. Essa crise, provocada pelo tal choque externo, prende-se com a evolução da pandemia nos referidos epicentros do sistema, que “provocou uma desestruturação das cadeias globais de valor, cujas participação africana é fundamental para a sua sobrevivência”.

O preço das matérias primas caiu a pique: 40% no caso do petróleo, cerca de 13% nos outros minerais – “e nós sabemos o quão África depende das receitas da exportaçao das suas matérias-primas”. A isto soma-se uma “redução significativa dos fluxos turísticos e das remessas e uma significativa fuga de capitais”.

Novamente os dados: “estima-se que entre Março e Abril, a nível dos países em desenvolvimento, tenha havido uma fuga de capitais na ordem dos 90 biliões de dólares” e um aumento dos custos de financiamento. “Ficou muito mais caro contrair dívida publica, os spreads da dívida soberana aumentaram em mais de 100 ponto base.”

Depois veio outro choque.

Choque interno

Depois, então, do primeiro choque, externo e económico, um segundo, agora provocado por causa endógenas.

Este choque interno tem duas vertentes, sendo a primeira de natureza essencialmente sanitária. Perante o mesmo África foi obrigada a “ter de investir num curtíssimo espaço de tempo no reforço do seu sistema de saúde, para enfrentar o aumento dos contágios”, o que “eventualmente não tem investido nos últimos 10 anos”: 44 biliões de dólares, segundo as estimativas.

Também para melhor compreender a dimensão da crise sanitária em África, Cristina Duarte contrapõe dados que se apresentam mundialmente sobre os contágios e mortes em África e outros locais, advogando que esses valores só são “aparentemente comparáveis”. “Só podemos comparar os 100 mil contagiados identificados em África com 1 milhão e tal nos Estados Unidos, se levarmos em conta também a capacidade de resposta”.

Basta olhar para o número de camas e ventiladores para desfazer a possibilidade de comparação. “África, neste momento, tem mais ou menos 20 mil camas nas unidades de tratamento intensivo, o que dá mais ou menos um rácio de 1,7 camas por cem mil habitantes”. A China tem um rácio de 3,6 camas por 100 mil/hab; a França 5,8 camas e os Estados Unidos 29, quase 30.

Mais números: excluindo o Norte de África e a África do Sul, o resto da africa subsariana tem 3.500 ventiladores, os Estados Unidos têm 160 mil ventiladores (para uma população que é um terço da africana).

Lockdowns e a (in)formalidade

A segunda vertente deste choque interno tem a ver com a adopção, de forma até “indiscriminada”, dos lockdowns (confinamentos) e outras medidas restritivas para conter a velocidade dos contágios

Ora, conforme a análise da conferencista, essas “medidas restritivas, estão a demonstrar um baixo grau de efectividade do ponto de vista sanitário, mas com um enorme impacto negativo do ponto de vista económico”.

Retrato, impacto e consequências. Há uma “elevada concentração da população urbana em bairros degradados”: cerca de 43,5% da população africana vive em cidades (600 milhões), e destes, 56% vive em bairros degradados. 34% dos africanos não tem acesso à água e sabão, nem acesso a sistemas de previdência social. A nível das cidades, o lockdown está a provocar uma ‘desurbanização’, porque “uma das características da informalidade africana é a sua elasticidade, a sua flexibilidade em adaptar-se as situações de crise. Então, perante a crise, essa informalidade “regressa ao mundo rural em busca da solidariedade tradicional e familiar”. A expansão do vírus resultante deste êxodo inverso ainda não é um fenómeno muito conhecido, aponta a economista.

Tudo somado, o duplo choque, externo e interno (na sua dupla dimensão) “são dramáticos para África”. Estima-se que 150 milhões de africanos (numa força de trabalho continental total de 440 milhões) serão afectados quer pela via do desemprego, quer pela via do rendimento disponível.

“Só 140 milhões constituem força de trabalho formal, 300 milhões dos 440 milhões têm emprego no sector informal, é emprego que a esta altura, está a sofrer consequências terríveis da actual crise”.

Hoje é já consensual: África conhecerá a sua primeira recessão económica em 25 anos (menos 2,6% do PIB) e entre 5 a 30 milhões de pessoas serão empurradas para a pobreza extrema.

Raiz dos problemas

Para enfrentar este cenário é necessário ir à raiz dos problemas. Assim, há aspectos importantes para compreender a crise, os desafios para o desenvolvimento e as oportunidades criadas.

A nível global, a pandemia veio levantar várias fragilidades e questionamentos. Mostrou que o mundo globalizado está impreparado para gerir uma pandemia global e há um vácuo que deriva da inexistência de estrutura de governação global “que tenha accountability”. Mesmo espaços regionais consolidados e com elevado grau de institucionalidade, como a UE, “mostraram não ter mecanismos regionais devidamente afinados para enfrentar choques externos”. Além disso, “uma das grandes lições desta crise COVID” é pôr a nu as opções de austeridade e downsizing no sistema público de Saúde, apostando no privado. Esta questão leva a uma outra que é a do papel e espaço de acção do Estado, que se salienta nesta crise.

“O pensamento liberal está a chegar à conclusão que a duplicidade de posicionamentos que reinou nos últimos 30/40 anos não está a dar grandes resultados particularmente em momentos de crise”, considera.

A nível local, Cristina Duarte é directa: “África não tem dinheiro e mais grave do que não ter dinheiro, não tem instituições para enfrentar esta crise”.

“África chega a 2020 com elevados défices fiscais, crescentes custos de endividamento, desvalorização das moedas e forte redução das receitas fiscais. Para enfrentar esta crise económica e sanitária, a UNECA estima uma necessidade de 200 biliões de dólares. Cem para enfrentar a componente sanitária e 100 biliões para financiar as medidas de estímulo fiscal”, elencou.

A ‘falta’ de dinheiro para enfrentar a crise leva à análise de quatro aspectos que são “a raiz dos problemas”.

A começar pelos fluxos ilícitos. “Seis por cento do PIB da África subsaariana perde-se em fluxos ilícitos que deixam” o continente. O valor médio é de 50 biliões de dólares anualmente e isto tem vindo a acontecer nos últimos 15, 20, 30 anos...”

Uma questão que a conferencista destacaria já na sessão de perguntas e respostas, apontando o paradoxo: “África com a mão direita mendiga por financiamentos, com a mão esquerda deixa sair 50 biliões”. Uma situação para a qual a crise de COVID-19 pode representar uma oportunidade de “colocar um ponto final”.

Há ainda o aspecto da colocação das poupanças africanas de longo prazo nos centros financeiros fora de África. Seriam, por exemplo, apenas necessários 12% dos activos dos investidores institucionais africanos para cobrir a necessidade de financiamento de infra-estruturas em África até 2025.

À “falta de dinheiro” junta-se a falta de instituições capazes e robustas para enfrentar as crises. Uma carência que passa pelos sistemas nacionais de saúde, os sistemas de previdência social com a sua baixa taxa de cobertura e “uma administração fiscal que não consegue gerar e mobilizar todos os recursos domésticos que a economia africana produz”.

E aqui, mais uma vez, a crise traz a oportunidade de “resolvermos as fragilidades das nossas administrações fiscais. Temos condições de duplicar, triplicar o volume de recursos financeiros endógenos para financiar o desenvolvimento”, aponta.

Mas ainda não é isso que acontece. Este cenário africano após 25 anos de crescimento económico interrupto deve interpelar tanto aos poderes públicos como à sociedade civil africana, considera.

A primeira conclusão a tirar “é que África terá experimentado um crescimento económico sem transformação estrutural”. E mesmo que continuasse a crescer entre 2015 e 2030, a uma taxa de 6 ou 7% como até aqui (e que a crise não vai permitir) apenas nove milhões de pessoas (em 417 milhões) sairiam da extrema pobreza. Sem esse crescimento, em recessão, o número vai aumentar.

Há a concluir também que as políticas públicas levadas a cabo nesses 25 anos de crescimento, “com conquistas em termos de boa governaçao, particularmente do ponto de vista macro económico não colocaram como seu epicentro o capital humano capaz de despoletar ou promover o desenvolvimento. Prova disso são os incipientes SNS, a baixa cobertura previdência social, etc.

Uma outra dimensão tem também a ver com políticas públicas e “com um paradoxo”. Nas últimas décadas, tem-se igualado “a gestão da pobreza, à gestão do desenvolvimento”. São gestões diferentes, assentes em paradigmas completamente diferentes, sublinha. Assim, “as políticas públicas africanas têm estado completamente concentradas em gerir a pobreza, não deixando espaço a essas mesmas políticas públicas para gerir a riqueza. Isto é o grande paradoxo africano”.

A antiga ministra aponta outro aspecto que decorre desse paradoxo. A centralização na gestão da pobreza, num continente rico, leva à raiz do problema: o baixo controlo dos fluxos economicos, fiscais e financeiros em África por parte de quase todas as naçoes africanas.

Assim, todas estas dimensões têm de ser “incorporadas de forma consistente e permanente nas políticas públicas “ para ultrapassar com sucesso a crise, “construindo um desenvolvimetno sustentável e inclusivo, mas acima tudo verde, para as próximas gerações”.

Por fim, Cristina Duarte defendeu “que as políticas públicas agarrem com força inovação e tecnologia”.

Para a economista, para sair na verdade da crise da COVID-19, os poderes públicos e a sociedade civil africana têm de abraçar sem complexos inovação e tecnologia” para ultrapassar os obstáculos e retomar “um crescimento económico que faça a entrega de desenvolvimento social.

“Precisamos da inovações tecnológicas porque temos um continente com elevado défice de infra-estruturação social e económica” e estas aliadas ao combate ao fluxo ilícito e melhoria da administração fiscal e resolução de outros problemas de raiz poderão colocar África no caminho do desenvolvimento sustentável.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 965 de 27 de Maio de 2020.  

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Autoria:Sara Almeida,31 mai 2020 7:59

Editado porFretson Rocha  em  11 mar 2021 23:20

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