O princípio da zona livre de comércio em África

PorJorge Montezinho,5 jan 2020 9:34

O ano económico de 2019 teve altos e baixos. O crescimento do país continuou, mas Cabo Verde também perdeu posições no ranking da competitividade. Eventos internacionais chamaram investidores de todos os cantos do mundo ao arquipélago, mas as condições laborais foram consideradas deficitárias. Já a nível continental, este foi o ano do início da grande revolução comercial em África, com a operacionalização da zona económica livre, a maior algum dia criada no mundo.

Começamos este balanço com um adeus. 21 anos depois de ter sido criado, o International Support for Cabo Verde Trust Fund foi oficialmente extinto em Julho deste ano, após promulgação do Presidente da República. O Trust Fund foi criado em 1998 e surgiu no quadro do Programa de Reformas Económicas com vista ao saneamento da dívida pública interna. De 1998 a 2000, foram desembolsados para o Trust Fund cerca de 100 milhões de dólares.

Grande parte deste dinheiro vai capitalizar o Fundo Soberano, solução estrutural para garantir às empresas acesso a financiamento para os seus investimentos, e desse modo driblar o crescimento anémico do PIB. O Fundo Soberano, que se pretende ter operacional em 2020, será gerido por um Conselho de Administração constituído por três membros. Nas suas duas décadas de existência, o Trust Fund rendeu quase 7 milhões de contos. “A gestão do International Support for Cabo Verde Stabilization Trust Fund (CVDTF), pelo Banco de Portugal, permitiu gerar, durante o período de actividade do fundo, rendimentos superiores a 63 milhões de euros, o que resultou numa taxa de rentabilidade acumulada de 3,08%”, lia-se no relatório publicado pelo Banco de Portugal sobre a gestão do fundo após a sua extinção.

Em Outubro, o INE informava que 43% dos trabalhadores cabo-verdianos não tem condições de trabalho digno. Falar de trabalho digno é falar “em trabalhos produtivos” que conferem “uma remuneração justa”, em que os trabalhadores têm acesso à protecção e segurança social, com liberdade de expressão para discutir direitos, oportunidades e equidade de género.

Em Agosto, o Expresso das Ilhas avançava a rota das privatizações e como, nos últimos meses de 2019 e primeiros de 2020, o governo ia alienar a sua participação nas empresas farmacêuticas, na Electra, na Cabo Verde Airlines, na CV Handling e como ia estabelecer acordos de concessão para as empresas que operam no sector portuário e de aeroportos. O objectivo final é acabar com os apoios financeiros às empresas estatais até 2022.

Em Julho, o Sal recebia o grande encontro cosmopolita do ano para a economia nacional, o Cabo Verde Investment Forum, uma plataforma de encontros entre quem queria investir e quem queria desenvolver projectos. Entre negócios a avançar e outros para concretizar, o CVIF2019 triplicou o valor financeiro pretendido inicialmente – de 500 milhões de euros, passou para os 1,5 mil milhões de euros.

Em números, o CVIF2019 teve mais de 400 participantes, entre empresários, institui­ções financeiras nacionais e internacionais e repre­sentantes de instituições públicas e privadas. Encontros registados contabilizam-se 119 (B2B) e em cima da mesa estiveram 41 projectos que reuniam as condições para ser apresentados no âmbito do evento, a maioria na área do turismo. Geograficamente, desses projectos, 13 são para o Sal, 12 para Santiago, 7 para São Vicente, 3 para a Boa Vista, todas as restantes ilhas têm um projecto cada uma.

No encerramento do encontro, a mensagem que o ministro das Finanças passou foi que o Estado não tem nada para dar a ninguém, mas serve para criar o ecossistema de investimento que deve ser aproveitado pelo sector privado. “Ninguém peça um tostão ao Estado. O Estado não pode estar a fazer divida internacional para dar aos cidadãos ou às empresas. O que há é um Estado que cria oportunidades, que empodera as empresas, que partilha riscos, que está em parceria efectiva com o sector privado para fazer as mudanças que o país precisa”, disse Olavo Correia.

O CVIF ficou marcado por vários projectos estruturantes para o país, como a empresa de transportes marítimos Inter-Ilhas, o novo hospital da Praia, ou o Ella Link, o novo cabo submarino de fibra óptica. Na altura, em entrevista ao Expresso das Ilhas, o ministro Olavo Correia sublinhava, “os empresários cabo-verdianos têm de ter projectos bancáveis e nós, governo, temos uma equipa permanente de consultores que recrutámos e pagamos para apoiar o sector privado. Por que ninguém vai financiar projectos sem ter projectos, não basta ter uma ideia. Os empresários têm de demonstrar serem capazes de criar valor com o dinheiro que lhes é entregue, caso contrário ninguém vai dar dinheiro”.

Em Outubro, descobrimos que Cabo Verde estava (cada vez) menos competitivo. Depois de ter caído 6 posições em 2018 (passando da posição 105 em 2017 para 111 em 2018), em 2019, Cabo Verde caiu mais uma posição no Ranking Global da Competitividade, passando para a posição 112, num universo de 141 economias avaliadas. Segundo o documento divulgado pelo Fórum Económico Mundial, estabilidade macroeconómica e saúde foram os sectores onde o país tem o melhor desempenho sendo a dimensão do mercado e a capacidade de inovação os principais constrangimentos. A queda, explicou ao Expresso das Ilhas Luís Teixeira, coordenador da Unidade para a Competitividade, deveu-se às reformas que o governo tem vindo a fazer desde que entrou em funções. “A subida de escalão é uma maratona e nós estamos num país que não tem o hábito de fazer reformas”.

Mas houve também polémicas em 2019. Em Abril, o Expresso das Ilhas avançava que a Câmara de Comércio de Sotavento tinha suspendido as missões empresariais a Portugal. A recusa continuada de vistos a empresários cabo-verdianos fez perder a paciência à Câmara de Comércio de Sotavento. O Conselho directivo, em sessão ordinária, resolveu não só interromper qualquer contacto com Portugal como encorajou os seus associados a procurarem outros parceiros e fornecedores fora de Portugal. Estes obstáculos não eram novos, mas daquela vez acabou a paciência da entidade que representa os empresários cabo-verdianos. “Estamos a dar um grito de alerta. Temos estado a reclamar e ninguém reage, as coisas continuam na mesma”, como disse Jorge Spencer Lima.

E em Novembro, o Tribunal de Contas anunciava ter detectado irregularidades na gestão do Fundo do Ambiente. Muitas ilegalidades suscetíveis de responsabilidade financeiras e potenciais outras ilegalidades que podem concretizar-se em matéria de foro criminal, foram as conclusões comuns aos três relatórios, publicados TC, e que diziam respeito à verificação interna da conta de gerência do Fundo do Ambiente para os anos de 2012, 2013 e 2014. Segundo o TC, há cerca de 500 mil contos para serem repostos e entre os responsáveis aparecem os nomes de Moisés Borges, antigo Director Geral do Ambiente, e de Antero Veiga, ex-Ministro do Ambiente.

A lista dos eventuais desvios era grande: falta de transferência de verbas para os municípios, receitas da taxa ecológica que entraram nos cofres do tesouro e que não batem certo com os montantes transferidos para o Fundo do Ambiente (FA), despesas de funcionamento da Direcção Geral do Ambiente/Ministério do Ambiente Habitação e Ordenamento do Território pagas com dinheiro do Fundo do Ambiente (cujas verbas se destinam, exclusivamente, ao financiamento dos projectos elegíveis), processos que não obedeceram à tramitação regulada (na verdade, o esquema formal nunca foi aplicado), projectos financiados cujos objectivos são de eligibilidade duvidosa (desde dinheiro para comprar botes e motores, até verbas para o pagamento de propinas e subsídios, ou quantias para fóruns), projectos financiados sem a apresentação de pedidos de apoio ou candidaturas, projectos financiados com candidaturas apresentadas fora do prazo, projectos financiados sem o parecer da Unidade de Apoio à Gestão do Fundo do Ambiente (esta estrutura nunca foi operacionalizada), tranches de financiamento sem a apresentação de justificativos das despesas realizadas, contratos sem o visto do Tribunal de Contas, pagamentos não justificados, pessoal contratado para cargos que não existiam ou nunca foram criados e falta de informação sobre o funcionamento do Fundo do Ambiente e os financiamentos de projectos. Face a todas estas anomalias, nenhum dos três relatórios de contas foi aprovado pelo TC e os documentos seguiram para o ministério público, por haver suspeitas de crimes.

Também em Novembro, ficámos a conhecer os “avisos à navegação” do GAO. O Grupo de Apoio Orçamental esteve em Cabo Verde para mais uma missão de revisão e apesar das perspectivas, para 2019 terem sido positivas, o grupo deixou também alguns avisos, como prudência com as ZEE, a necessidade de regularização das dívidas ao INPS ou ainda “a necessidade de um mecanismo de acom­­panhamento das recomendações feitas pelo Tribunal de Contas”.

Terminamos com a que já foi considerada maior revolução em África depois do fim do colonialismo, a operacionalização da Zona de Livre Comércio. O Gana, ficámos a saber em Julho, vai receber a sede que vai acolher o secretariado. No mesmo dia, a fase operacional do Acordo de Livre-Comércio Continental Africano (AfCFTA na sigla em inglês) foi lançada durante a cimeira de chefes de Estado e de Governo da União Africana (UA), que decorreu em Niamey, no Níger.

A aplicação do acordo será gerido por cinco instrumentos operacionais: definição das regras de origem dos produtos, fórum de negócios online, monitorização e eliminação de barreiras não-tarifárias, sistema de pagamentos digitais e criação do Observatório de Comércio Africano.

O AfCFTA permitirá criar uma das maiores zonas de livre-comércio desde a criação da Organização Mundial do Comércio, abrangendo uma população de 1,2 mil milhões de pessoas, com um Produto Interno Bruto (PIB) acumulado a ascender a 2,5 biliões (milhões de milhões) de dólares (cerca de dois biliões de euros) em 2050.

O acordo de livre-comércio pretende estabelecer um enquadramento para a liberalização de serviços de mercadorias e tem como objectivo eliminar as tarifas aduaneiras em 90% dos produtos.

Os países podem implementar a redução de tarifas durante um período prolongado no caso das mercadorias sensíveis ou manter as tarifas existentes para os restantes 10% de produtos.

Todos os países lusófonos assinaram o acordo, mas apenas São Tomé e Príncipe depositou os instrumentos de ratificação.

“O AfCFTA tem o potencial de aumentar substancialmente o comércio dentro de África e de apoiar o desenvolvimento económico sustentável do continente”, escreveu Carlos Lopes, antigo secretário-executivo da UNECA, em resposta ao Expresso das Ilhas. “Os beneficiários do AfCFTA não são apenas os grandes actores empresariais, serão também os cidadãos comuns”.

No entanto, embora o comércio contribua para o crescimento, também implica custos, e os seus benefícios poderão ser distribuídos de forma desigual entre e dentro dos países. Muitas vezes, os decisores políticos estão, justificadamente, preocupados de que uma maior integração das suas economias com as de outros países possa beneficiar umas indústrias e prejudicar outras, afectar negativamente os rendimentos e as oportunidades de emprego em determinados sectores e em determinados níveis de competências e reduzir as receitas fiscais [Os impostos representaram 13,6% do PIB de Cabo Verde em 2018, segundo números do INE].

O comércio intra-regional em África tem crescido. As importações intra-regionais como percentagem do total de importações quase que triplicaram ao longo das duas últimas décadas, situando-se agora entre os 12% e 14% (cerca de 100 mil milhões de dólares), como resultado do aumento do comércio na região graças às novas comunidades económicas sub-regionais.

“Gostemos ou não, África está atrasada em numerosos aspectos, e agora terá de correr uma maratona com a rapidez dos melhores velocistas. E a AfCFTA pode ajudar a mudar a situação do continente”, concluiu Carlos Lopes, antigo Secretário-geral da UNECA.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 944 de 01 de Janeiro de 2020. 

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Autoria:Jorge Montezinho,5 jan 2020 9:34

Editado pormaria Fortes  em  23 set 2020 23:21

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