Começamos este balanço com um adeus. 21 anos depois de ter sido criado, o International Support for Cabo Verde Trust Fund foi oficialmente extinto em Julho deste ano, após promulgação do Presidente da República. O Trust Fund foi criado em 1998 e surgiu no quadro do Programa de Reformas Económicas com vista ao saneamento da dívida pública interna. De 1998 a 2000, foram desembolsados para o Trust Fund cerca de 100 milhões de dólares.
Grande parte deste dinheiro vai capitalizar o Fundo Soberano, solução estrutural para garantir às empresas acesso a financiamento para os seus investimentos, e desse modo driblar o crescimento anémico do PIB. O Fundo Soberano, que se pretende ter operacional em 2020, será gerido por um Conselho de Administração constituído por três membros. Nas suas duas décadas de existência, o Trust Fund rendeu quase 7 milhões de contos. “A gestão do International Support for Cabo Verde Stabilization Trust Fund (CVDTF), pelo Banco de Portugal, permitiu gerar, durante o período de actividade do fundo, rendimentos superiores a 63 milhões de euros, o que resultou numa taxa de rentabilidade acumulada de 3,08%”, lia-se no relatório publicado pelo Banco de Portugal sobre a gestão do fundo após a sua extinção.
Em Outubro, o INE informava que 43% dos trabalhadores cabo-verdianos não tem condições de trabalho digno. Falar de trabalho digno é falar “em trabalhos produtivos” que conferem “uma remuneração justa”, em que os trabalhadores têm acesso à protecção e segurança social, com liberdade de expressão para discutir direitos, oportunidades e equidade de género.
Em Agosto, o Expresso das Ilhas avançava a rota das privatizações e como, nos últimos meses de 2019 e primeiros de 2020, o governo ia alienar a sua participação nas empresas farmacêuticas, na Electra, na Cabo Verde Airlines, na CV Handling e como ia estabelecer acordos de concessão para as empresas que operam no sector portuário e de aeroportos. O objectivo final é acabar com os apoios financeiros às empresas estatais até 2022.
Em Julho, o Sal recebia o grande encontro cosmopolita do ano para a economia nacional, o Cabo Verde Investment Forum, uma plataforma de encontros entre quem queria investir e quem queria desenvolver projectos. Entre negócios a avançar e outros para concretizar, o CVIF2019 triplicou o valor financeiro pretendido inicialmente – de 500 milhões de euros, passou para os 1,5 mil milhões de euros.
Em números, o CVIF2019 teve mais de 400 participantes, entre empresários, instituições financeiras nacionais e internacionais e representantes de instituições públicas e privadas. Encontros registados contabilizam-se 119 (B2B) e em cima da mesa estiveram 41 projectos que reuniam as condições para ser apresentados no âmbito do evento, a maioria na área do turismo. Geograficamente, desses projectos, 13 são para o Sal, 12 para Santiago, 7 para São Vicente, 3 para a Boa Vista, todas as restantes ilhas têm um projecto cada uma.
No encerramento do encontro, a mensagem que o ministro das Finanças passou foi que o Estado não tem nada para dar a ninguém, mas serve para criar o ecossistema de investimento que deve ser aproveitado pelo sector privado. “Ninguém peça um tostão ao Estado. O Estado não pode estar a fazer divida internacional para dar aos cidadãos ou às empresas. O que há é um Estado que cria oportunidades, que empodera as empresas, que partilha riscos, que está em parceria efectiva com o sector privado para fazer as mudanças que o país precisa”, disse Olavo Correia.
O CVIF ficou marcado por vários projectos estruturantes para o país, como a empresa de transportes marítimos Inter-Ilhas, o novo hospital da Praia, ou o Ella Link, o novo cabo submarino de fibra óptica. Na altura, em entrevista ao Expresso das Ilhas, o ministro Olavo Correia sublinhava, “os empresários cabo-verdianos têm de ter projectos bancáveis e nós, governo, temos uma equipa permanente de consultores que recrutámos e pagamos para apoiar o sector privado. Por que ninguém vai financiar projectos sem ter projectos, não basta ter uma ideia. Os empresários têm de demonstrar serem capazes de criar valor com o dinheiro que lhes é entregue, caso contrário ninguém vai dar dinheiro”.
Em Outubro, descobrimos que Cabo Verde estava (cada vez) menos competitivo. Depois de ter caído 6 posições em 2018 (passando da posição 105 em 2017 para 111 em 2018), em 2019, Cabo Verde caiu mais uma posição no Ranking Global da Competitividade, passando para a posição 112, num universo de 141 economias avaliadas. Segundo o documento divulgado pelo Fórum Económico Mundial, estabilidade macroeconómica e saúde foram os sectores onde o país tem o melhor desempenho sendo a dimensão do mercado e a capacidade de inovação os principais constrangimentos. A queda, explicou ao Expresso das Ilhas Luís Teixeira, coordenador da Unidade para a Competitividade, deveu-se às reformas que o governo tem vindo a fazer desde que entrou em funções. “A subida de escalão é uma maratona e nós estamos num país que não tem o hábito de fazer reformas”.
Mas houve também polémicas em 2019. Em Abril, o Expresso das Ilhas avançava que a Câmara de Comércio de Sotavento tinha suspendido as missões empresariais a Portugal. A recusa continuada de vistos a empresários cabo-verdianos fez perder a paciência à Câmara de Comércio de Sotavento. O Conselho directivo, em sessão ordinária, resolveu não só interromper qualquer contacto com Portugal como encorajou os seus associados a procurarem outros parceiros e fornecedores fora de Portugal. Estes obstáculos não eram novos, mas daquela vez acabou a paciência da entidade que representa os empresários cabo-verdianos. “Estamos a dar um grito de alerta. Temos estado a reclamar e ninguém reage, as coisas continuam na mesma”, como disse Jorge Spencer Lima.
E em Novembro, o Tribunal de Contas anunciava ter detectado irregularidades na gestão do Fundo do Ambiente. Muitas ilegalidades suscetíveis de responsabilidade financeiras e potenciais outras ilegalidades que podem concretizar-se em matéria de foro criminal, foram as conclusões comuns aos três relatórios, publicados TC, e que diziam respeito à verificação interna da conta de gerência do Fundo do Ambiente para os anos de 2012, 2013 e 2014. Segundo o TC, há cerca de 500 mil contos para serem repostos e entre os responsáveis aparecem os nomes de Moisés Borges, antigo Director Geral do Ambiente, e de Antero Veiga, ex-Ministro do Ambiente.
A lista dos eventuais desvios era grande: falta de transferência de verbas para os municípios, receitas da taxa ecológica que entraram nos cofres do tesouro e que não batem certo com os montantes transferidos para o Fundo do Ambiente (FA), despesas de funcionamento da Direcção Geral do Ambiente/Ministério do Ambiente Habitação e Ordenamento do Território pagas com dinheiro do Fundo do Ambiente (cujas verbas se destinam, exclusivamente, ao financiamento dos projectos elegíveis), processos que não obedeceram à tramitação regulada (na verdade, o esquema formal nunca foi aplicado), projectos financiados cujos objectivos são de eligibilidade duvidosa (desde dinheiro para comprar botes e motores, até verbas para o pagamento de propinas e subsídios, ou quantias para fóruns), projectos financiados sem a apresentação de pedidos de apoio ou candidaturas, projectos financiados com candidaturas apresentadas fora do prazo, projectos financiados sem o parecer da Unidade de Apoio à Gestão do Fundo do Ambiente (esta estrutura nunca foi operacionalizada), tranches de financiamento sem a apresentação de justificativos das despesas realizadas, contratos sem o visto do Tribunal de Contas, pagamentos não justificados, pessoal contratado para cargos que não existiam ou nunca foram criados e falta de informação sobre o funcionamento do Fundo do Ambiente e os financiamentos de projectos. Face a todas estas anomalias, nenhum dos três relatórios de contas foi aprovado pelo TC e os documentos seguiram para o ministério público, por haver suspeitas de crimes.
Também em Novembro, ficámos a conhecer os “avisos à navegação” do GAO. O Grupo de Apoio Orçamental esteve em Cabo Verde para mais uma missão de revisão e apesar das perspectivas, para 2019 terem sido positivas, o grupo deixou também alguns avisos, como prudência com as ZEE, a necessidade de regularização das dívidas ao INPS ou ainda “a necessidade de um mecanismo de acompanhamento das recomendações feitas pelo Tribunal de Contas”.
Terminamos com a que já foi considerada maior revolução em África depois do fim do colonialismo, a operacionalização da Zona de Livre Comércio. O Gana, ficámos a saber em Julho, vai receber a sede que vai acolher o secretariado. No mesmo dia, a fase operacional do Acordo de Livre-Comércio Continental Africano (AfCFTA na sigla em inglês) foi lançada durante a cimeira de chefes de Estado e de Governo da União Africana (UA), que decorreu em Niamey, no Níger.
A aplicação do acordo será gerido por cinco instrumentos operacionais: definição das regras de origem dos produtos, fórum de negócios online, monitorização e eliminação de barreiras não-tarifárias, sistema de pagamentos digitais e criação do Observatório de Comércio Africano.
O AfCFTA permitirá criar uma das maiores zonas de livre-comércio desde a criação da Organização Mundial do Comércio, abrangendo uma população de 1,2 mil milhões de pessoas, com um Produto Interno Bruto (PIB) acumulado a ascender a 2,5 biliões (milhões de milhões) de dólares (cerca de dois biliões de euros) em 2050.
O acordo de livre-comércio pretende estabelecer um enquadramento para a liberalização de serviços de mercadorias e tem como objectivo eliminar as tarifas aduaneiras em 90% dos produtos.
Os países podem implementar a redução de tarifas durante um período prolongado no caso das mercadorias sensíveis ou manter as tarifas existentes para os restantes 10% de produtos.
Todos os países lusófonos assinaram o acordo, mas apenas São Tomé e Príncipe depositou os instrumentos de ratificação.
“O AfCFTA tem o potencial de aumentar substancialmente o comércio dentro de África e de apoiar o desenvolvimento económico sustentável do continente”, escreveu Carlos Lopes, antigo secretário-executivo da UNECA, em resposta ao Expresso das Ilhas. “Os beneficiários do AfCFTA não são apenas os grandes actores empresariais, serão também os cidadãos comuns”.
No entanto, embora o comércio contribua para o crescimento, também implica custos, e os seus benefícios poderão ser distribuídos de forma desigual entre e dentro dos países. Muitas vezes, os decisores políticos estão, justificadamente, preocupados de que uma maior integração das suas economias com as de outros países possa beneficiar umas indústrias e prejudicar outras, afectar negativamente os rendimentos e as oportunidades de emprego em determinados sectores e em determinados níveis de competências e reduzir as receitas fiscais [Os impostos representaram 13,6% do PIB de Cabo Verde em 2018, segundo números do INE].
O comércio intra-regional em África tem crescido. As importações intra-regionais como percentagem do total de importações quase que triplicaram ao longo das duas últimas décadas, situando-se agora entre os 12% e 14% (cerca de 100 mil milhões de dólares), como resultado do aumento do comércio na região graças às novas comunidades económicas sub-regionais.
“Gostemos ou não, África está atrasada em numerosos aspectos, e agora terá de correr uma maratona com a rapidez dos melhores velocistas. E a AfCFTA pode ajudar a mudar a situação do continente”, concluiu Carlos Lopes, antigo Secretário-geral da UNECA.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 944 de 01 de Janeiro de 2020.