Um mundo de ofendidos desconfiados

PorJorge Montezinho,23 fev 2025 8:14

Os tempos para a economia são incertos, mas para a sociedade o cenário não é diferente, como mostra o último Barómetro de Confiança Edelman, que avalia, há 25 anos, a confiança das pessoas. E em quem confiamos afinal? Não é nos governos, nem nas instituições; nestes tempos inconstantes, confiamos em marcas e em empresas. Por outro lado, indica também esta recolha que aconteceu em 28 países, há um crescente sentimento de injustiça e desigualdade e isso leva às queixas. Um cenário global já espelhado também em Cabo Verde, como revelou, há pouco tempo, um estudo da Afrosondagem.

Os medos económicos transformaram-se em ressentimentos/queixas — esta é a principal conclusão do Edelman Trust Barometer de 2025. Há uma mudança profunda no sentimento popular, um movimento que vai para além da polarização política e desemboca numa defesa agressiva dos interesses próprios. Como visto nas eleições do ano passado, os cidadãos levantaram as vozes contra as empresas, os governos e os ricos. Partidos foram expulsos nas democracias ocidentais, incluindo EUA, Reino Unido, França, Alemanha e Canadá.

Os rancores começaram porque há a convicção que o sistema é injusto, os negócios e o governo pioram tudo e os ricos ficam cada vez mais ricos. A alienação da sociedade começa a ser tão profunda que quase dois terços dos entrevistados temem ser discriminados, um aumento de 10 pontos percentuais em relação ao ano anterior. Até mesmo os que ganham muito estão cada vez mais preocupados em transformarem-se em vítimas — um aumento de 11 pontos, para 62%. Três quartos dos entrevistados preocupam-se com o facto dos respectivos salários não acompanharem a inflação e há uma profunda preocupação com a perda de empregos (por causa do impacto de inovações como a automação) e com a globalização (62% preocupam-se com os conflitos comerciais internacionais).

Como escreve Richard Edelman, CEO da Edelman – empresa global de comunicação fundada em 1952 – “estas queixas vêm de quatro pré-condições, que se vêm acumulando na última década. Primeiro, há uma falta generalizada de crença num futuro melhor. Também há uma divisão crescente na confiança entre os estratos de rendimento mais alto e mais baixo. Os próprios líderes institucionais falharam. Globalmente, dois terços dos entrevistados preocupam-se com jornalistas, funcionários do governo e CEOs que mentem intencionalmente. E há cada vez menos factos consensuais. Quase dois terços dos entrevistados acham difícil diferenciar entre notícias de uma fonte confiável e desinformação”.

Qualquer abrigo numa tormenta

No fundo, o barómetro mostra uma crescente erosão da credibilidade em instituições outrora consideradas pilares da sociedade. E em tempos de tempestade as pessoas estão a olhar para as empresas como portos seguros, segundo o estudo que decorreu em 28 países – Brasil foi o único da CPLP que participou e Quénia, Nigéria e África do Sul os únicos africanos – e ao qual responderam mais de 33 mil adultos.

A crise global de confiança nas instituições é real, acentuada por um crescente sentimento de injustiça e desigualdade. É um cenário onde a confiança em governos, media tradicional e até mesmo ONGs desce, e apenas as empresas cresceram no indicativo de competência e ética, com um aumento de confiança que subiu 19 pontos percentuais desde 2020.

Nesta edição do 25º aniversário do Edelman Trust Barometer há uma mudança profunda na aceitação de acções agressivas, com polarização política e medos cada vez maiores a dar origem a um sentimento generalizado de protesto.

O relatório de 2025 – que tem o título de “Trust and the Crisis of Grievance” (“Confiança e a crise da queixa”) – aponta para um profundo sentimento de melindre e pessimismo, impulsionado pela percepção de que os governos e as empresas mais poderosas respondem a interesses específicos, beneficiando os ricos enquanto a população luta com dificuldades.

Este cenário é agravado pela desconfiança nos líderes, com a maioria da população global a acreditar que autoridades governamentais, empresariais e jornalistas disseminam, de forma intencional, informações falsas – que, curiosamente, a maior parte dessas mesmas pessoas partilha nas suas redes sociais sem verificar as fontes.

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Trust Barometer: Destaques em números

Queda na confiança institucional: O índice global de confiança é de apenas 56, indicando que a maioria da população desconfia das instituições.

Desconfiança em líderes: 70% das pessoas acreditam que líderes governamentais induzem as pessoas ao erro intencionalmente.

Desigualdade de confiança: A diferença na confiança entre pessoas de alto e baixo rendimento chega a 24 pontos percentuais em alguns países.

“Grievance” (Queixa): 61% da população global demonstra um sentimento de queixa moderado ou alto contra empresas, governo e os ricos.

Activismo hostil: 40% da população aprova o activismo hostil como estratégia para promover mudanças, com maior adesão entre os jovens (53% na faixa etária de 18 a 34 anos).

Pessimismo com o futuro: Apenas 36% acreditam que a próxima geração estará em melhor situação.

Medo de discriminação: Atingiu um recorde histórico, com aumento de 10 pontos percentuais em relação a 2024.

Empresas em destaque: São vistas como a instituição mais competente e ética, com aumento de 19 pontos nestes indicativos desde 2020.

Confiança nos empregadores: Caiu 3 pontos percentuais em relação a 2024 e 7 pontos percentuais desde 2018.

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O cenário em Cabo Verde

Os cabo-verdianos também estão a perder a confiança na democracia e nos seus representantes, como se ficou a saber depois de apresentados os resultados do inquérito realizado pela Afrosondagem, que mostrou a queda generalizada dessa confiança em todas as instituições da República. Uma avaliação negativa do desempenho das instituições, somada a uma relação algo tensa entre Primeiro-ministro e Presidente da República e ao declínio das condições de vida são apontados como possíveis causas para esta perda de credibilidade.

O cenário evidenciado pelo estudo sobre a qualidade da democracia e da governação em Cabo Verde é, no geral, bastante negativo. Entre os temas abordados, que vão da avaliação do desempenho do governo, às maiores preocupações dos cabo-verdianos, passando pela percepção da corrupção, destacaram-se a queda na confiança e avaliação de desempenho das instituições. Numa comparação com dados de 2022 houve “uma tendência de descontentamento” e uma menor confiança em todas as instituições.

De acordo com os dados apresentados, o Presidente da República viu a confiança cair de 65% (em 2022) para 40%, enquanto o Primeiro-ministro, em quem confiavam 57% dos inquiridos em 2022, teve a confiança de apenas 31%. Ambos registam o índice de confiança mais baixo desde, pelo menos, 2005.

A Assembleia Nacional viu a confiança cair de 48% para 29%; enquanto o executivo camarário (presidente e vereadores) passou de 46% para 30%. Os partidos da oposição também não têm a confiança da população: mais de metade da população (52%) confiava neles em 2022, no último estudo só cerca de três em cada dez cidadãos (29%) expressaram essa confiança.

A confiança na Comissão Nacional de Eleições caiu para metade: de 61% em 2022, passou para 31% em 2024. Na justiça, a confiança nos tribunais desceu de 60% para 42%. Nem os líderes religiosos escapam à tendência, passando de 64% para 45%, e a Polícia, em quem 60% dos inquiridos confiavam em 2022, foi vista como confiável por apenas 45%.

No desempenho económico, a avaliação melhora ligeiramente em relação a 2022, mas continuou reprovadora. Nove em cada 10 inquiridos (91%) consideram que o Governo falhou em manter os preços estáveis (92% em 2022); 84% achou a redução da pobreza mal gerida (88% em 2022); 83% avaliaram como má ou muito má a criação de empregos (86% em 2022); 78% avaliaram negativamente a melhoria da condição de vida dos pobres (79% em 2022) e 66% disseram que o governo não está a gerir bem a economia (68% em 2022).

O capitalismo falhou

Regressamos ao Barómetro Edelman 2025. Os ricos são vistos como personagens com um papel maligno na sociedade. Dois terços dos entrevistados acreditam que os ricos não pagam os impostos apropriados e as leis que os defendem prejudicam “pessoas como eu”. Muitos acham que o capitalismo falhou. Mais da metade dos entrevistados acredita que o capitalismo faz mais mal do que bem — 53% entre a população em geral, incluindo 55% de pessoas entre os 18 e os 34 anos.

Muitos também sentem que os sistemas políticos predominantes estão exaustos. Apenas um terço dos entrevistados acredita que aqueles com diferentes visões políticas “seguem as regras” e menos de metade (44%) confia nos que têm diferentes convicções políticas. O governo é desacreditado em 17 dos 28 países avaliados. E para muitos, a violência pode ser necessária. Mais de metade dos jovens aprova um ou mais dos seguintes métodos de activismo hostil para promover mudanças: atacar pessoas online, espalhar desinformação intencionalmente ou ameaçar/cometer violência contra pessoas/propriedades.

Nações com baixa confiança refletem níveis agravados de queixas. Na Alemanha, 41% das pessoas, em média, confiam em instituições na sociedade e 69% dos entrevistados sentem um sentimento moderado ou maior de queixas. Em Singapura, 65% confiam em instituições e apenas 39% apresentam queixas. Isto ilustra uma relação inversa: quanto maior a confiança que as pessoas têm nas suas instituições, menos queixas uma sociedade tem. Em resumo, a confiança é a moeda definitiva.

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Restaurar a confiança e construir otimismo no meio de uma crise

1- As queixas devem ser tratadas

As falhas institucionais dos últimos 25 anos geraram queixas em todo o mundo, sufocando o crescimento e a inovação. Para liderar durante esta crise, compreenda as realidades económicas das partes interessadas, defenda interesses partilhados e crie oportunidades para o optimismo.

2- A empresa tem licença para agir

Aqueles com um maior sentido de queixa estão mais inclinados a acreditar que as empresas não estão a fazer o suficiente para resolver os problemas sociais. Para lidar com estas expectativas, perceba quais são as suas obrigações, aja em nome dos seus stakeholders e defenda a sua organização.

3- As empresas não podem agir sozinhas

As empresas, o governo, os meios de comunicação social e as ONG devem trabalhar em conjunto para abordar as causas básicas das queixas e permitir a confiança, o crescimento e a prosperidade. Invista nas comunidades locais, informação de qualidade e competências profissionais. Entregue resultados que beneficiem todos de forma justa.

4- Com confiança, o optimismo supera a queixa

Quando não se pode confiar que as instituições farão o correcto, as queixas aumentam e as perspetivas turvam-se. Para dissipar as queixas e aumentar o optimismo, dê prioridade e restaure a confiança na sua organização e nas comunidades locais.

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O Edelman Trust Barometer

É um levantamento global realizado online com a população em geral. As perguntas são programadas, traduzidas, localizadas e concluídas em 28 países à volta do mundo, com amostras demograficamente representativas de cada população.

O objetivo é compreender o motivo das pessoas por trás das opiniões que têm, utilizando perguntas detalhadas e análise sofisticada de dados para entender como atitudes pessoais se ligam e influenciam forças sociais maiores. O Edelman Trust Barometer analisa esses movimentos à medida que surgem, ganham destaque e caem em desuso.

O calendário de publicações começa com o lançamento global do Edelman Trust Barometer em Janeiro. Seguem-se os relatórios especiais que exploram temáticas específicas, como a influência da geração Z nas marcas, geopolítica ou tendências de confiança dentro de um sector, como tecnologia ou saúde.

“A nossa ambição é que cada pesquisa do Edelman Trust Barometer revele novos insights e dados valiosos, que possam promover uma compreensão profunda da confiança e das forças que modelam o nosso mundo”, sublinha a empresa de comunicação. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1212 de 19 de Fevereiro de 2025.

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Autoria:Jorge Montezinho,23 fev 2025 8:14

Editado porAndre Amaral  em  23 fev 2025 8:56

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